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A função da pena privativa de liberdade em um Estado democrático e pluralista de direito

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4. SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DA FUNÇÃO DA PENA ADOTADA NO BRASIL

Como foi exposto, o direito penal pátrio adota como funções da pena, no momento da sentença, a retribuição e a prevenção positiva e, no momento da execução, a prevenção negativa ou ressocializadora. Isso faz de nosso sistema penal, atual e, consoante com as mais modernas teorias sobre a função da pena. Contudo, cabe o questionamento sobre a constitucionalidade do exposto no diploma penal.

Kant, formulador da tese clássica do princípio da dignidade da pessoa humana, refutando as teorias preventivas da pena defendeu que:

a pena jurídica, poena forenses, não pode nunca ser aplicada como um simples meio de procurar outro bem, nem em benefício do culpado ou da sociedade; mas deve sempre ser contra o culpado pela única razão de ter delinquido: porque jamais um homem pode ser tomado como instrumento dos desígnios de outro, nem ser contado nos números das coisas como objeto de direito real, algo que possa ser usado como simples meio: deve ser considerado, em todas as ações, como fim em si mesmo [29].

Entender a pena como ferramenta para a inibição da delinquência fere de morte o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. A execução penal, com vistas à satisfação de interesses de política criminal é posição questionável frente ao que se propõe o Estado brasileiro. Nesse sentido, coloca-se o pensamento de Hegel:

“somente através da aplicação da pena trata-se o delinquente como um ser racional e livre. Só assim ele será honrado dando-lhe não apenas algo justo em si, mas lhe dando o seu Direito: contrariamente ao inadmissível modo de proceder dos que defendem princípios preventivos, segundo os quais se ameaça o homem como quando semostra um pau a um cachorro, e o homem, por sua honra e liberdade, não deve ser tratado como um cachorro” [30].

Antes de atacar a questão da ressocialização cabe ressaltar que “função ressocializadora” é um conceito relativamente vago, que divide opiniões quantos às principais teorias da prevenção especial, mínima e máxima. Contudo, hoje se chega a um consenso com relação à questão, de que a ressocialização estaria comprometida com a “melhoria social do condenado” [31].

Ao conceber a ressocialização como melhoria social ou adequação ao padrão de moralidade, fica patente a discriminação que o sistema penal faz do delinquente, como “doente”, “inferior” ou no mínimo “diferente”. Dessa forma, um dos pilares do Estado Democrático e pluralista de Direito em que vivemos sofre um abalo. Como é possível conceber a compatibilização da ressocialização com o princípio da igualdade propugnado no art. 5º da Constituição? Trata-se de uma posição incômoda, posto que o a ideologia da diferenciação adotada na ressocialização taxa aquele que comete um crime, como afastado da casta superior da sociedade, a composta pelos “socializados”, tornando-se, portanto, incapaz de receber as benesses plenas da convivência social[32].

Além disso, a condição de imposição de valores consoante à ressocialização vai de encontro ao modelo de Estado pluralista proposto no preâmbulo da Constituição. Em um Estado Democrático não é concebível que o poder estatal dite valores a serem seguidos pelo encarcerado, para que sua pena se cumpra de forma mais ou menos célere. A sociedade brasileira

não é uma sociedade monista; antes apresenta características de uma sociedade plural onde convivem em permanente ebulição, classes e grupos sociais econômicos, financeiros, culturais e ideológicos de tons variáveis e gradações cambiantes. Cuida-se, portanto de uma sociedade conflitiva, de interesses contrapostos ou antinômicos [33].

Parece-nos razoável inferir frente o exposto que a adoção das funções preventiva e ressocilizadora, nos moldes das teorias clássicas sobre a função da pena, revelam-se inconstitucionais. A solidez dos princípios jurídicos escorados no regime democrático de direito fornece base suficiente para a busca de penas mais justas e assentes aos direitos fundamentais. Concordamos, portanto, com as correntes que se têm convencionado denominar da “prevenção geral positiva limitadora”, notadamente a proposta de Hassemer exposta no tópico 1.5 supra, que adota a função da pena como a prevenção geral positiva:

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“a reação estatal perante fatos puníveis, protegendo, ao mesmo tempo a consciência social da norma. Proteção efetiva deve significar atualmente duas coisas: a ajuda que obrigatoriamente se dá ao delinquente, dentro do possível, e a limitação desta ajuda imposta por critérios de proporcionalidade e consideração à vítima. A ressocialização e a retribuição pelo fato são apenas instrumentos de realização do fim geral da pena: a prevenção geral positiva. No fim secundário de ressocialização fica destacado que a sociedade corresponsável e atenta aos fins da pena não tem nenhuma legitimidade para a simples imposição de um mal. No conceito limitador da responsabilidade pelo fato, destaca-se que a persecução de um fim preventivo tem um limite instransponível nos direitos do condenado”[34].


5. PODE A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE SE COMPATIBILIZAR COM O ESTADO DEMOCRÁTICO E PLURALISTA DE DIREITO EM QUE VIVEMOS?

Quando a prisão se converteu na principal resposta penológica, a partir do século XIX, criou-se o mito de que poderia ser um meio adequado para reforma do delinquente. Esse otimismo inicial desapareceu e hoje, sem exageros, pode-se falar em uma crise da pena restritiva de liberdade. Nesse sentido, afirma Augusto Thompson: “reformar criminosos pela prisão traduz uma falácia e o aumento de recursos, destinados ao sistema prisional, seja razoável, médio, grande ou imenso, não vai modificar a verdade da assertiva [35]”.

Além da flagrante incapacidade estrutural da prisão, no Brasil e em outros países, critica-se o próprio fundamento da pena de restrição de liberdade. O problema da prisão seria a própria prisão. Nesse sentido manifesta-se Antonio Molina, afirmando que,

A pena não ressocializa, mas estigmatiza, não limpa, mas macula, como tantas vezes se tem lembrado ao expiacionistas; que é mais difícil ressocializar a uma pessoa que sofreu uma pena do que outra que não teve essa amarga experiência ; que a sociedade não pergunta por que uma pessoa esteve em um estabelecimento penitenciário, mas tão somente se lá esteve ou não [36].

Desde 1882, Von Liszt, com o Programa de Marburgo, insurgiu-se contra as penas de curta duração, propugnando por soluções alternativas à privação de liberdade. Ou seja, desde que surgiu como padrão de reprimenda penal, a prisão já sofre críticas, que perduram até os dias de hoje. Veja-se que apenas com a Reforma Penal de 1984, o direito brasileiro adotou as penas alternativas, como função de minimizar a crise da pena de prisão[37].

As últimas reformas introduzidas no direito penal brasileiro, com seu desmedido rigor penal e aspecto intimidatório, haja vista as várias leis dos crimes hediondos (Lei 8.072/90, 8.930/94 e 9.695/98), se mostram retrocessos de direito penal máximo difíceis de sustentar. Por razões utilitárias e oportunistas, têm-se adotado leis com teor cada vez mais apelativo e simbólico, destoantes da realidade e das conquistas históricas de legislações alienígenas [38].

Durante encontro com empresários na cidade de São Paulo, no dia 13 de novembro de 2012, o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo qualificou o sistema carcerário brasileiro como medieval e disse que preferiria morrer a cumprir pena no Brasil por um longo tempo[39]. Se o ministro da Justiça, que tem como competência o “planejamento, coordenação e administração da política penitenciária nacional” [40] dá uma declaração nesses termos, é devido à extrema, notória e indiscutível precariedade do sistema prisional brasileiro. Dessa forma, entendemos que não precisamos nos estender em descrições das barbaridades existentes nesse sistema, dada a publicidade das notícias a esse respeito.

Os estabelecimentos prisionais brasileiros são expressamente violadores de garantias fundamentais, em flagrante desrespeito ao inciso XLIX do artigo 5° da Carta Maior. Esse artigo define que ‘’é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral’’, e pode ser entendido como uma das balizas mais importantes da pena privativa de liberdade, determinando que, relativamente aos fins que busca essa forma de pena, os meios utilizados para alcançá-lo sejam adequados com o respeito aos direitos fundamentais, em especial ao princípio da dignidade da pessoa humana. Apesar da clareza de seu texto, realizaremos uma leitura sistemática desse inciso da constituição com dois princípios constitucionais incidentes no Direito Penal, o da proporcionalidade e o da humanidade, com o objetivo de especificar e esmiuçar qual deveria ser seu alcance e incidência reais.

O princípio da proporcionalidade é tradicionalmente entendido como a exigência de que seja observada a proporcionalidade entre a gravidade do crime e a sanção a ele cominada e aplicada. Trata-se de uma importante conquista histórica, implicando a defesa dos indivíduos contra intervenções e penas desnecessárias e excessivas, que busca assegurar o caráter de necessidade e adequação da cominação penal: adequada porque a pena deve ter força suficiente para alcançar seu objetivo, necessária porque, dentre as opções de pena possíveis, deve-se escolher aquela que é o meio menos gravoso[41]. Esse princípio é recepcionado pela Constituição Federal, e pode ser percebido por alguns de seus dispositivos normativos, como o que determina a individualização da pena para cada situação concreta (art. 5°, XLVI), o que estabelece o cumprimento da pena em estabelecimento adequado às características do condenado (Art. 5°, XLVIII), e os que impõem maior rigor na punição de certos crimes (art. 5°, XLII, XLIII e XLIV).

O conceito jurídico desse princípio, de caráter constitucional e norteador da atividade legislativa em matéria penal, vêm sendo desenvolvido até hoje. A nosso ver, a incidência dessa noção de proporcionalidade não deve ser esgotada nos momentos de cominação e aplicação penal, alcançando também a execução da pena. Assim deve ocorrer porque, se as condições concretas e materiais de realização da pena privativa de liberdade não forem adequadas, expondo o apenado a toda sorte de influência negativa e danos, de lesão corporal, moral, psicológica até a própria morte, estaremos na verdade diante de uma pena corporal e infamante disfarçada, o que é expressamente vetado pela constituição no inciso III do artigo 5°. A mera previsão em abstrato dessa proteção e a determinação que exerce no momento da aplicação da pena não são capazes de assegurar ao preso uma pena proporcional, uma vez que se conhece o grau de barbárie e violência que o confinado é submetido.

O principio da humanidade, no Direito Penal, determina que o poder de punir do Estado seja exercido de forma humana e coerente com as conquistas civilizatórias e os direitos e garantias fundamentais. Disso resulta que as penas, tanto na cominação, na aplicação e na execução devem buscar a preservação da dignidade da pessoa humana e a conservação física e psicológica dos apenados. Esse princípio encontra-se presente na Constituição brasileira através, por exemplo, da proibição da tortura e do tratamento desumano e degradante (Art. 5°, III), da proscrição de certos tipos de penas (Art. 5°, XLVI), e das condições de realização da pena privativa de liberdade (Art. 5°, XLIX). Ademais, em defesa de penas norteadas por esse principio, invocamos o magistério de CesareBeccaria, que escreveu ‘’Poderão os gritos de um desgraçado nas torturas tirar do seio do passado, que não volta mais, uma ação já praticada? Não. ’’[42], ao explicar a futilidade de penas cruéis.

Apesar disso, não se pode esquecer que o Direito Penal não tem, necessariamente, caráter assistencialista, objetivando primeiramente uma justiça distributiva, através da atribuição de responsabilidade àquele que violou a ordem jurídica[43]. Portanto, a incidência do principio da humanidade nas penas, em destaque aqui a supressiva de liberdade, não visa negar o seu caráter retributivo, que é ‘’timbre real e inegável’’ [44] da mesma, importando, inevitavelmente, em certo nível de dano e sofrimento ao preso. O que se deve então é, dentro dessa inerente limitação, entender o principio da humanidade como um mandato de otimização, tal como pensado por Alexy, fazendo-o valer o máximo possível a partir da consideração dos demais princípios e regras do ordenamento e da realidade fática [45]. Isso implica necessariamente que as penitenciarias devem ter as condições concretas de infraestrutura e recursos suficientes para, enquanto punir, impedir a destruição física, moral e psicológica do condenado, o que tornaria a pena marcadamente inconstitucional.

O inciso XLIX do artigo 5° pode ser visto, nesse sentido, como a busca de compatibilizar a pena privativa de liberdade com o Estado Democrático de Direito. Sabe-se, como já foi dito, que a pena de prisão possui uma série de problemas que lhe são inerentes, resultando inevitavelmente em algum grau de padecimento físico e moral ao preso[46]. Entretanto, diferindo de posições extremadas, como a da Criminologia Critica de Alessandro Baratta[47], não acreditamos que deva ser abolida a instituição carcerária. A supressão dela somente poderia ocorrer na existência de alguma forma alternativa para proteção de bens jurídicos e, enquanto isso não ocorre, não se pode olvidar sua importância como forma de controle social importante para possibilitar a convivência social. A pena de prisão deve ser reformada, visto que não existem condições sociais, políticas, econômicas e culturais que permitam prescindir totalmente dela. Essa reforma deve adequar-se, segundo os princípios, direitos e garantias individuais, pelo principio da proporcionalidade, entendida como execução da pena sem que ela seja uma pena corporal e infamante disfarçada, e pelo principio da humanidade, entendido como mandato de otimização a ser aplicado na realidade o máximo possível.


6.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos com o artigo problematizar a questão da função e fins da pena no direito brasileiro. Entendemos que há um uso descompromissado e abusivo por parte de nossos dirigentes, com relação ao sistema penal. Abuso que atropela o princípio da intervenção mínima e de direitos e garantias constitucionais em nome de políticas públicas utilitaristas e de situação. O caráter de ultima ratio do sistema penal não se compatibiliza com tal perda de sentido. Urge-se pensar o direito penal buscando compatibilizá-lo com o Estado democrático de direito brasileiro.

A pena privativa de liberdade, como vimos, apresenta uma enorme quantidade de significativas falhas. Trata-se de uma forma do exercício do direito de punir que, não apenas na realidade brasileira, avilta e denigre o apenado, ferindo gravemente sua integridade moral e física. A prisão também não oferece um ambiente adequado para a reabilitação do preso, colocando-o em uma realidade violenta e opressiva, servindo na pratica para o embrutecimento deste que, diariamente, estará confinado em um local onde sofrerá toda sorte de influências negativas. Além de violadora de direitos e incapaz de educar, ela ainda apresenta limitada eficácia intimidativa, pois, como de forma lapidar afirmou Bitencourt, apesar da deficiência de dados estatísticos precisos para comprovar o fato, é inquestionável que a delinquência não diminuiu pela atuação do sistema penitenciário tradicional[48]. A adoção de função preventiva e ressocilizadora por parte do Direito Penal se constitui, portanto, em posição teórica controversa. Defendemos que as teorias que se têm convencionado denominar de prevenção positiva limitadora se compatibilizam melhor com as disposições de nossa Constituição.

    Apesar de tão duras criticas, acreditamos que a pena privativa de liberdade não deve ser suprimida. O mundo atual, em sua complexidade e pluralidade de comportamentos e possibilidades, na situação política e econômica em que vivemos, deve fazer uso dessa forma de controle social, não podendo abrir mão dela, situação que tornaria a convivência humana na sociedade contemporânea impossível. É certo, entretanto, que essa forma de pena deve ser transformada, a fim de respeitar os direitos fundamentais do apenado, assim podendo ele sofrer as conseqüências jurídicas pelo mal realizado a partir de uma perspectiva garantivista, que respeita os princípios da culpabilidade, da proporcionalidade e da humanidade e demais direitos e garantias.

 Uma leitura adequada do inciso XLIX do artigo 5° da Constituição brasileira, a nosso ver, implica o reconhecimento dessa contradição inerente da pena de prisão. Deve-se entender que, encarcerando o delinqüente, inevitavelmente ele sofrerá algum grau de violação de sua integridade física e moral, uma vez que ele será tirado do convívio e colocado em um ambiente com as características já debatidas, privado do exercício de sua liberdade e autodeterminação. Apesar disso, essa forma de controle social é indispensável e, sendo a historia da prisão correspondente não à sua progressiva abolição, mas a de sua continua reforma, ela deve ser harmonizada com as progressivas conquistas dos direitos humanos, a fim de que aquele submetido a ela pague na medida justa e com o mínimo de dano.

Sobre os autores
Leônidas Marques Fernandes

Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Piauí

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, Leônidas Marques; MIRANDA, Oannes. A função da pena privativa de liberdade em um Estado democrático e pluralista de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3764, 21 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25556. Acesso em: 23 dez. 2024.

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