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Teoria dos poderes implícitos no direito administrativo licitatório em que sejam participantes Microempresas (ME) ou Empresas de Pequeno Porte (EPP)

Agenda 26/11/2013 às 12:05

Se as ME e EPP podem até o momento da assinatura do termo contratual providenciar eventual prova de regularidade fiscal, também podem fazer correção/saneamento de documentos marginais, para regularizar eventuais vícios de forma/preenchimento.

I – Introdução

O presente artigo possui como argumento central demonstrar a pertinência da teoria dos poderes implícitos no âmbito da Lei Complementar n. 123/06, especificamente na hipótese procedimental de um pregão eletrônico. Aduz-se, pois, que o plexo de informações a serem prestadas por uma Microempresa (ME) e/ou Empresa de Pequeno Porte (EPP) no curso de uma licitação, seja em qual modalidade for, dispõe de uma série de prerrogativas, tanto insculpidas no normativo complementar, quanto da lógica dispensada ao sistema por força do imperativo de tratamento favorecido àquelas espécies empresariais, consoante enunciado do artigo 170, inciso IX, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

A hipótese principal é a de que, num dado procedimento licitatório, o tratamento mais favorável destinado às ME e EPP interpretado em conformidade com a Lei Complementar n. 123/06, indica alguns poderes implícitos disponíveis, sobretudo relacionados à flexibilização da burocracia, quanto à postergação de prazos para apresentação de documentos, utilização acentuada do princípio da instrumentalidade das formas, alargamento da possibilidade de comprovação de capacidade técnica da empresa licitante por intermédio de contratos antigos já celebrados ou que estejam em execução, registros de atividades demonstrados por documentos hábeis fornecidos por órgãos públicos, ou pelo objeto do contrato social da empresa, também possibilidade de regularização fiscal posterior, desde que respeitada a razoabilidade.

Processualmente, a discussão de tais problemas, que trabalhamos ainda no campo teórico-doutrinário, está sendo realizada, enquanto teses de mérito, em dois mandados de segurança impetrados na Justiça Federal de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em que pese ainda não sabermos ao certo se esta tese logrará êxito, é dever do leitor meditar a seu respeito, procurando identificar as razões ou mesmo as contradições do pensamento a seguir esposado.


II – Comentário sobre o caráter constitucional das ME e EPP na Constituição Econômica e na Justiça Social Corretiva

Prescreve o art. 170 da CFRB/88 (grifamos):

“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] IV – livre concorrência, [...] IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras que tenham sua sede e administração no País.”

       

De imediato podemos dizer que a inserção das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte no contexto de um tratamento diferenciado em nada obstaculiza os preceitos supramencionados da ordem econômica.

À medida que um dos seus fundamentos basilares é a busca pela justiça social, informando um telos imprescindível e materialmente constitucional, não há que se falar em afronta, sobremodo nos casos licitatórios, objeto principal da nossa pesquisa.

“De outra banda, é correto dizer que a liberdade de iniciativa econômica é um dos mais caros princípios da ordem econômica. O objetivo fundamental do desenvolvimento é por ele mais bem viabilizado. Ao contrário, toda vez que esta liberdade se faz ausente, o caminho trilhado é o inverso do telos constitucional. Quanto se fazem exigências desproporcionais para micro e pequenos agentes econômicos, sejam de ordem burocrática, fiscal, etc., pôe-se em risco, ao menos indiretamente, a liberdade de iniciativa econômica daqueles. Quando se procura evitar que o poder econômico abuse de sua condição, está sendo considerada a liberdade de iniciativa daqueles que estão alijados com a ilicitude derivada da atuação de outros. Ficam maculados em sua liberdade, com desprestígio para a teleologia adotada na ordem constitucional econômica.”[1]

Além disso, há no indigitado art. 170 menção expressa à deflagração de processo legislativo culminante na edição de lei própria à regulação das ME e EPP. Ora, o texto constitucional serve, in casu, de diretiva para que o Poder Público estabeleça o tanto quanto fora naquele previsto e programado, de modo que a insuficiência ou omissão ensejariam, justificadamente, mácula inequívoca da ordem econômica.

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Considera-se um estado de coisas em que o dinamismo mercantil demanda utilização do elemento normativo para que haja uma maior possibilidade de distribuição concorrencial na oportunização da livre iniciativa, enquanto acesso às parcelas menos afortunadas do empresariado, bem como àqueles empreendedores que, ou estivessem adentrando no mundo negocial ou expandindo suas empresas. Eros Roberto Grau pondera que:

“A pretexto da defesa da concorrência suprimiram-se as corporações de ofício, mas isso ensejou, em substituição do domínio pela tradição, a hegemonia do capital. A liberdade econômica, porque abria campo às manifestações do poder econômico, levou à supressão da concorrência.” [2]

Logo, é com respeito ao princípio da isonomia que a lei complementar 123/06 promulga diferenciação no que tange às ME e EPP; o desenvolvimento abaixo da média do empresariado brasileiro devia-se, justamente, aos fracos incentivos de um Estado que notoriamente intitulava-se (pela Constituição) como intervencionista, consoante o modelo neoliberal propugnado enfaticamente pelo texto magno.

De modo notório, por conseguinte, após a constatação das “imperfeições do liberalismo, no entanto, associadas à incapacidade de autorregulação dos mercados [que] conduziram à atribuição de nova função ao Estado.” [3]

Neste sentido:

“O subdesenvolvimento importa numa dinâmica de desequilíbrio econômico e de desarticulação social.  O desenvolvimento, por outro lado, se liga diretamente à atividade econômica (num sentido amplíssimo), cuja ordenação é feita a partir do texto constitucional. Este, por sua vez, adota como fundamentos da ordem econômica a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa (CF, art. 170). Não haveria de ser de outro modo. Entre os próprios fundamentos do Estado brasileiro (CF, art. 1º) estão os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.”[4]

Por conseguinte, o regime disciplinador das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte assume o caráter de correção àquele estado de coisas anteriormente tratado como desproporcional.

Haja vista, inclusive, ser a proporcionalidade[5] corolário imprescindível da nova ordem jurídica neoconstitucional[6] é deveras tranquilo aceitar a colocação daquelas modalidades ou espécies empresariais no rol de objetos de regulação específica, senão até proteção por parte do Estado, tornando-as, pois, materialmente constitucionais. 

A ingerência no campo econômico da empresarialidade deflagra a correta aplicabilidade do princípio da livre iniciativa e, neste sentido, corrobora para que as desigualdades antes manifestas sejam, com o tempo, reduzidas; afinal, sabe-se que não basta apenas um formal tratamento peculiar para a consecução dos fins constitucionalmente almejados, como um planejamento público, e público-privado (porquanto a economia regulada pelo Poder Público traz para o debate democrático nas necessidades e urgências do setor privado), na busca comum pelo desenvolvimento e pela nunca assaz pranteada justiça social.[7]

“A intervenção do Estado o capacitou a regular a economia, permitindo a inauguração da fase do dirigismo econômico, em que o Poder Público produz uma estratégia sistemática de forma a participar ativamente dos fatos econômicos. Na verdade, o intervencionismo compreende um sistema em que o interesse público sobreleva em relação ao regime econômico capitalista. O governo recebe certas funções distributivas e alocativas, isto é, busca proporcionar uma equânime distribuição de riqueza e fornecer a certas categorias sociais alguns elementos de proteção contra as regras exclusivamente capitalistas. Com esse tipo de atuação, o Estado procura garantir melhores condições de vida aos mais fracos, sem considerar seu status no mercado de trabalho, e ainda corrige o funcionamento cego das forças de mercado, estabelecendo parâmetros a serem observados na ordem econômica. De todos esses fatores, importa que, intervindo na economia, o Estado, por via de consequência, atende aos reclamos da ordem social com vistas a reduzir as desigualdades entre os indivíduos.” [8] 

É ainda importante motor da concorrência. Ora, a partir do instante em que a livre iniciativa é tomada a pela perspectiva da prestação e oferecimento plúrimo de bens e serviços aos seus destinatários, concorrência é substancialmente ampliada, favorecendo, desta maneira a irrigação do mercado com modalidades prestacionais sempre inovadoras.

Vê-se, portanto, a evolução do aspecto concorrencial no bojo da Lei Complementar 123/06, sobremaneira ao constatá-la no âmago das licitações, âmbito geralmente coartado a certas empresas tidas como experientes no ramo.

O Estado hoje permite, pela segurança promovida pelo Direito, que as ME e EPP, a partir de um modelo estruturado de participação, tenham a equitativa oportunidade de integrarem procedimentos licitatórios e vencê-los nos casos preferenciais, bem como nos demais, desde que preenchidos os requisitos documentais exigidos no instrumento editalício.

Enfim, não houve ruptura com a ordem econômica, inobstante a perfeita adequação de uma concepção ideológica ao defasado espectro de oportunidades do micro e pequeno empresário. Houve sim a correção histórica de uma desigualdade; a reestruturação lógica do sistema pluriparticipativo de mercado no que tange à contratação com a Administração Pública. 

O alargamento dos horizontes de contratação por intermédio das licitações às micro e pequenas empresas garante eficiência àquelas, de tal sorte que a democratização participativa dos procedimentos licitatórios demanda múltiplos licitantes interessados e, assim, a escolha da melhor, mais proporcional, adequada e respeitosa (nos princípios constitucionais) empresa.


III – Equívocos no preenchimento/apresentação de documentos no processo licitatório – o surgimento dos poderes implícitos

O tópico presente inicia com um julgado, o qual, na parte destacada, indica um problema que assola diversas empresas por todo o Brasil. Trata-se dos problemas relativos à regularidade fiscal, mas não só. Trata-se da possibilidade de utilização do princípio da instrumentalidade das formas para reprimir que a licitação seja perdida em razão de elemento cuja necessidade de burocracia supere a necessidade atendimento aos princípios regentes da Administração Pública.

(TJRS-400492) APELAÇÃO CÍVEL. LICITAÇÃO E CONTRATO ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. MICROEMPRESA. LC Nº 123/2006. PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO AO EDITAL.

“Do texto da Lei Complementar nº 123/2006 o que se autoriza concluir é que, até a assinatura do contrato, pode a microempresa e a empresa de pequeno porte, não estar em dia com o Fisco, devendo apenas o estar quando do momento da assinatura do termo contratual. Isto não significa, todavia, que tais empresas estejam dispensadas da apresentação de todos os documentos, inclusive os de regularidade fiscal, por ocasião da apresentação dos envelopes. A diferença é que tais documentos poderão acusar restrições, que somente se exige estejam superadas quando da assinatura do Contrato. Não vinga a tese da impetrante de que estaria dispensada da apresentação dos documentos referentes à regularidade fiscal, ab initio. Inteligência do disposto nos artigos 42 e 43 da LC nº 123/06 e dos itens 9.11 e 9.13 do Edital de Convocação. Recurso desprovido.”[9]

Ora, então se as ME e EPP podem até o momento da assinatura do termo contratual providenciar eventual prova de regularidade fiscal, o que se diria da mera possibilidade de correção/saneamento de documentos marginais. Trata-se da inserção no âmbito do direito administrativo licitatório da teoria dos poderes implícitos, a qual verbaliza-se constitucionalmente em decorrência do tratamento favorável dispensado às ME e EPP.

Se se pode o mais, isto é, comprovar posteriormente a regularidade fiscal, pode-se o menos, ou seja, regularizar eventuais vícios de forma/preenchimento de documentos, mormente quando tais “vícios” não representam comprometimento da proposta global apresentada, bem como não interferem, desde a gênese, no direito de preferência da empresa licitante por ter formulado oferta mais vantajosa à Administração.

Isto, afinal de contas, não pode passar ao largo da avaliação da administração licitante, porquanto diga respeito à necessidade de motivação de eventual ato exarado, fazendo com que apenas decisão fundamentada em fato incontroverso pode se determinante. Isto nos leva a ideia de que caso não seja aberto prazo para que a empresa licitante se pronuncie a respeito de eventual equívoco ocorrido no seio do procedimento, não poderá dizer que existiram motivos que embasassem o ato administrativo de desclassificação ou exclusão da empresa. O substantive and due process of law deve ser observado, peremptoriamente.

Assim, portanto, orienta o STJ:

“[...] 4: “Ao motivar o ato administrativo, a Administração ficou vinculada aos motivos ali expostos, para todos os efeitos jurídicos. Tem aí aplicação a denominada teoria dos motivos determinantes, que preconiza a vinculação da Administração aos motivos ou pressupostos que serviram de fundamento ao ato. A motivação é que legitima e confere validade ao ato administrativo discricionário. Expostos os motivos, a validade do ato fica na dependência da efetiva existência do motivo. Presente o real motivo, não poderá a Administração desconstituí-lo ao seu capricho. Por outro lado, se inexistente o motivo declarado na formação do ato, o mesmo não tem vitalidade jurídica.”[10]

Com efeito, não havendo motivo, trata-se de ato desprovido de validade, pois se o ato só é válido e eficaz quando o motivo afigura-se determinante, na ausência de motivo determinante, pois, o ato perde seu sustentáculo.


IV – Conclusões

Em síntese:

  1. A teoria dos poderes implícitos no direito administrativo licitatório aplica-se, em princípio, ao âmbito das ME e EPP;
  2. A lei complementar n. 123/06 deve ser compreendida com o conceito de Constituição Econômica e com o sentido do artigo 170, IX da Constituição da República;
  3. O artigo 170, IX, é uma cláusula geral constitucional que indica os princípios: do devido processo legal administrativo substantivado, da instrumentalidade das formas, da boa-fé objetiva, da proposta mais vantajosa à Administração Pública etc.;
  4. Por favorável deve-se entender o tratamento dispensado às ME e EPP que respeito os princípios gerais do direito administrativo e que busque a efetividade, de fundo, dos princípios retromencionados (letra c).

Notas

[1] PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.186.

[2] GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p.15.

[3] Ibidem, p.15.

[4] PETTER, op. cit., p.166.

[5] Cf. BRANCO, Luiz Carlos. Equidade, Proporcionalidade e Razoabilidade. São Paulo: RCS, 2006, passim.

[6] Cf. QUARESMA, Regina; OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula; OLIVEIRA, Farlei Martins Riccio de (Coords.). Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, passim.

[7] Cf. ZAGO, Felipe do Canto. A exploração da atividade econômica pelo Estado. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2877, 18 maio 2011 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19138>. Acesso em: 6 nov. 2012, passim.

[8] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 986-987.

[9] Apelação Cível nº 70032552689, 1ª Câmara Cível do TJRS, Rel. Carlos Roberto Lofego Canibal. j. 11.11.2009, DJ 22.01.2010, grifo nosso.

[10] RMS 19.013/PR, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe: 03/11/2009.

Sobre o autor
Luiz Felipe Nobre Braga

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas; Advogado; Consultor e Parecerista; Professor de Direito Constitucional e Lógica Jurídica na Faculdade Santa Lúcia em Mogi Mirim-SP; Professor convidado da pós-graduação em Direito Processual Civil e no MBA em Gestão Pública, da Faculdade Pitágoras em Poços de Caldas/MG. Autor dos livros: "Ser e Princípio - ontologia fundamental e hermenêutica para a reconstrução do pensamento do Direito", Ed. Lumen Júris, 2018; "Direito Existencial das Famílias", Ed. Lumen Juris-RJ, 2014; "Educar, Viver e Sonhar - Dimensões Jurídicas, sociais e psicopedagógicas da educação pós-moderna", Ed. Publit, 2011; e "Metapoesia", Ed. Protexto, 2013.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Luiz Felipe Nobre. Teoria dos poderes implícitos no direito administrativo licitatório em que sejam participantes Microempresas (ME) ou Empresas de Pequeno Porte (EPP). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3800, 26 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25865. Acesso em: 22 nov. 2024.

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