3. CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO OU NEOCONSTITUCIONALISMO
Todo esse contexto histórico-constitucional confere-nos o embasamento necessário para, agora, adentrarmos no tema principal deste trabalho, que se refere propriamente ao fenômeno conhecido na doutrna como neoconstitucionalismo, ou constitucionalismo contemporâneo, fase atual em que nos encontramos. De fato, nas últimas décadas, a teoria constitucional passou por um processo de reelaboração extenso e profundo, que neste momento nos propomos a discorrer.
Em decorrência dos eventos maléficos advindos da obediência cega à lei como decorrência da doutrina nazista, evento propulsor da lavagem de sangue ocorrida na II Guerra Mundial, o positivismo jurídico evidentemente sofreu forte abalo, pois se o direito estaria limitado à lei, totalmente separado dos valores morais, não haveria como controlar o conteúdo da lei. Ou seja, a vontade do legislador poderia, inclusive, assumir caráter de ódio, discriminação e selvageria, como ocorreu no nazismo, tendo sido uma demonstração de onde a civilização pode chegar caso submetida tão somente ao jugo da lei. Por outro lado, o mundo percebeu, após duas grandes guerras mundias, que era preciso a garantia de direitos não apenas individuais (liberdade) e sociais (igualdade), mas também direitos difusos (fraternidade), como o direito à paz, a proteção ao meio ambiente, dentre tantos outros.
Em suma, a sociedade precisava melhor se estruturar, seja porque era necessário resguardar o mundo com direitos difusos para a sociedade mundial (fraternidade), seja porque não caberia mais o cumprimento cego da lei (os estragos de uma segunda guerra comprovaram essa verdade). Do primeiro, resulta no surgimento da terceira dimensão dos direitos e garantias fundamentais. Do segundo, resulta a necessária transformação que o positivismo jurídico precisava passar. É dentro desse contexto de pós II Guerra Mundial, então, que se abre uma nova fase constitucional, com a transição do constitucionalismo social para o chamado neoconstitucionaismo, fase que se inicia em meados do séc. XX, e na qual nos encontramos atualmente. Em síntese, podemos identificar como as contribuições principais desse novo período constitucional:
3.1.Surgimento dos Direitos Difusos ou Metaindividuais:
É no chamado constitucionalismo contemporâneo ou neoconstitucionalismo que surgem os direitos fundamentais de terceira dimensão, que são direitos ligados à solidariedade entre as nações. Tratam-se dos direitos difusos, que escapam do plano individual e pertenem à toda coletividade (metaindividuais), como o direito à cultura, meio ambiente, patrimônio histórico, autodeterminação dos povos, direito à paz, dentre outros. Aliado a isso, passou-se a observar ao redor do mundo, sobretudo nos tempos mais atuais, o fenômeno da “rematerialização das Constituições”, no sentido das cartas constitucionais consagrarem um extenso rol de direitos fundamentais. As Constituições atuais são analíticas, dispondo taxativamente do rol dos direitos e garantias fundamentais conquistados ao longo dos anos, atingindo um nível de formalização bastante satisfatório.
De toda sorte, de nada adianta estar previsto na Constituição se não é garantido na realidade. A formalização dos direitos evoluiu muito, mas a preocupação atual não é propriamente formal (inserir mais direitos no corpo da Constituição), mais que isso, o que importa é fazer com que esses direitos positivados sejam efetivados. Os direitos fundamentais, então, têm duas acepções: formal e material. A dimensão formal é a positivação dos direitos fundamentais, algo já conquistado, inclusive como se percebe desse fenômeno da rematerialização das Constituições. A dimensão material, por sua vez, refere-se à efetividade desses direitos, isto é, pressupõe que esses direitos deixem de ter apenas eficácia (formal) e passem a ter efetividade (material), sejam cumpridos na prática, efetivamente usufruídos por todos. Nesse plano, temos a dimensão material dos direitos fundamentais. É esta a maior preocupação do constitucionalismo contemporâneo.
Por outro lado, existe também a dimensão objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais. A dimensão subjetiva dos direitos fundamentais relaciona-se ao fato de que os direitos fundamentais são direitos (vida, liberdade, devido processo legal, etc) como quaisquer outros. Quanto a isso, nada de novo. Mas os direitos fundamentais possuem também uma dimensão objetiva, que se relaciona ao fato de que são efetivamente normas. Isto é, além de direitos, os direitos fundamentais são normas. Isso implica na necessidade das leis infraconstitucionais estarem em conformidade com as normas de direitos fundamentais. Uma lei não pode ofender uma norma de direito fundamental. Isso hoje parece óbvio, mas a força normativa constitucional (supremacia material) só veio surgir no constitucionalismo contemporâneo. Essa é a supremacia material da Constituição, não só no aspecto formal e subjetivo como tínhamos até o constitucionalismo social, mas agora também na sua dimensão material e objetiva, como temos a partir do neoconstitucionalismo.
Ademais, se antes os direitos fundamentais eram percebidos apenas na perspectiva entre Estado e indivíduo (daí falar-se de eficácia vertical dos direitos fundamentais), seja nos direitos de primeira dimensão que exigem uma abstenção estatal (Estado liberal), seja nos direitos de segunda dimensão) que exigem uma prestação estatal (Estado social), agora amplia-se essa perspectiva no constitucionalismo contemporâneo. Isto é, juntamente com o surgimento dos direitos de terceira dimensão, a aplicação dos direitos fundamentais passa a ter uma perspectiva não somente vertical (Estado e indivíduo), mas também horizontal (entre os indivíduos). É a chamada teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que se irradia nas relações privadas entre indivídous. Com o passar do tempo, foi se constatando que a opressão poderia vir não só do Estado, mas também de outros particulares. Foi exatamente aí que surgiram os direitos fundamentais de terceira geração, relacionados à fraternidade. E hoje, a teoria da eficácia horizontal aplica-se a todas as dimensões de direitos fundamentais, como contribuição do neoconstitucionalismo.
3.2.Desenvolvimento do Estado Democrático de Direito:
Além dos direitos de fraternidade, surge nesse período o chamado Estado Democrático de Direito. Na verdade, o Estado Democrático de Direito tenta superar as deficiências do Estado liberal e do Estado Social, sintetizando as conquistas dos modelos anteriores. Ou seja, o Estado Democrático de Direito não é totalmente diferente do Estado liberal e do Estado social, mas é uma aglutinação, tentando reunir as características desses dois modelos anteriores, superando aquilo que esles tem de problema e aprofundando nas conquistas que eles trouxeram. Daí porque, o Estado Democrático de Direito, embora seja um terceiro modelo de Estado de Direito, vai se situar em equilíbrio aos modelos anteriores, contendo certas características do Estado liberal e do Estado social, porém trazendo inovações, dentre elas destacando-se duas grandes contribuições: a universalização do sufrágio e a ampliação dos mecanismos políticos de participação popular.
Embora já se tivesse limitado o poder do Estado e garantido a soberania popular, resguardando-se os direitos individuais (Estado liberal) e assegurando o bem-estar social (Estado social), com o advento do positivsmo jurídico houve uma separação entre lei e moral e, como as leis eram feitas pelo parlamento (representantes do povo), acabava que a vontade da maioria prevalecia. Então, seria uma soberania anti-democrática, o poder não estava, a rigor, nas mãos de todo o povo, porque a vontade da maioria, instrumentalizada na lei, prevalecia sempre em detrimento de porções minoritárias. E foi exatamente essa a origem da barbárie que ocorreu com o nazismo, doutrina que estabelecia discriminações a ponto de conceber alguns seres humanos superiores intocáveis em detrimento de outros considerados inferiores (judeus, ciganos, negros, homossexuais, etc), como se fossem raças de segundo escalão desprotegidos pelo direito, o que acabou resultando no brutal extermínio de algumas classes minoritárias. Era preciso, portanto, assegurar a democracia também no seu aspecto material com o respeito aos direitos das minorias (Estado Democrático de Direito). Surge, então, uma nova preocupação mundial cuja idéia nuclear é a dignidade da pessoa humana, valor central e fundamental nas Constituições sob a visão pós-positivista.
A comunidade jurídica percebeu, sobretudo após o derramamento de sangue ocorrido na II Guerra Mundial, que muitos problemas da humanidade não eram apenas a falta de solidariedade (daí surgem os direitos de terceira dimensão), mas também a falta de tolerância ao desamparar o direito das minorias (daí surge a preocupação com a garantia da democracia material). A dignidade da pessoa humana, então, passa a ser o centro e o núcleo, em torno do qual gravitam os direitos fundamentais. Não há hierarquia entre seres humanos, todos possuem a mesma dignidade, inclusive as minorias, valor absoluto que não comporta gradações. Exatamente desse conceito vem o crescimento da democracia, o respeito a todos, o pluralismo, os direitos das minorias, a participação popular nas decisões políticas, tudo como forma de garantir a voz das porções minoritárias e assegurar a soberania popular também no seu aspecto democrático, o que passou a ser objeto de proteção constitucional no chamado Estado Democrático de Direito.
3.3.Concepção Filosófica Neopositivista do Direito:
As atrocidades ocorridas na II Guerra Mundial foram permitidas porque, como dito, com o advento do positivsmo jurídico houve uma separação estanque entre lei e moral. Se tivemos leis que conseguiram impor idéias nazistas atentatórias à dignidade humana, é porque antes temos como raiz do problema o enaltecimento do positivismo jurídico, a tal ponto de entender que o Direito é apenas aquilo que é posto pelo Estado por meio da lei, separado dos valores morais. Quer dizer, para sair de um extremo, que era o subjetivismo advindo do jus naturalismo e as discriminações decorrentes da ausência de leis, passou-se para o outro extremo, que foi a absoluta valorização do texto literal em detrimento dos valores. Exatamente por isso é que, na transição para o neoconstitucionalismo, tivemos como característica central um movimento de reformulação do antigo positivismo estrito, preso à lei de forma estanque, para adentrarmos no chamado neopositivismo, que defende a inclusão de valores e princípios na ordem jurídica.
Nesse momento, aliás, foi inevitável ponderar-se novamente as idéias do jusnaturalismo. Porém, essa revalidação provisória traria novamente todas as limitações dessa doutrina, como a indeterminação, o subjetivismo, as interpretações diversas, de modo que a efervescência jusnaturalista causada pelo transtorno dos resultados da última guerra não durou muito tempo, foi ensaio que não se manteve. O jusnaturalismo efetivamente não oferecia respostas seguras ao desafio que se fazia ao positivismo jurídico. Era necessário, portanto, remodular este último sem voltar, contudo, às origens do jusnaturalismo. A solução foi encontrada nos princípios constitucionais, dando início ao pós-positivismo, ou neopositivismo.
De acordo com o anterior positivismo jurídico estrito, a ciência do direito deveria ter uma função meramente descritiva (princípio da neutralidade). O papel da ciência do direito não seria dizer como o direito deve ser, mas simplesmente dispor como o direito é. Já o pós-positivismo, chamado neopositivismo, tem uma visão bem diferente, defendendo que o direito deve ter um papel descritivo, mas, além disso, também um caráter prescritivo. Não há como ser neutro e deixar de fora os valores. Os valores fazem parte do direto. Quando se fala em direito não se pode dizer apenas aquilo que é (descritivo), mas há que se colocar também mecanismos e propostas para que o direito seja melhor (prescritivo). É inconcebível que os valores humanos não entrem no direito, os argumentos morais devem ser absorvidos. Portanto, se no positivismo há uma visão neutra, na concepção neopositivista, por sua vez, há uma visão valorativa, havendo uma intercessão com a presença da moral no direito, não podendo este se distanciar dos valores éticos-morais na sua produção.
3.4.Reconhecimento da Eficácia Normativa dos Princípios:
Se, por um lado, o jusnaturalismo efetivamente não oferecia respostas seguras ao desafio que se fazia ao mundo contemporâneo pós guerras, mas, por outro lado, se o positivismo jurídico estrito se mostrou incapaz de regular o direito, era necessário, então, haver uma remodulação deste sem voltar àquele. A solução foi encontrada nos princípios constitucionais, a partir do neopositivismo. Como decorrência da abordagem pós-positivista, inaugura-se um fenômeno marcante nessa nova fase do neoconstitucionalismo: a inclusão dos princípios como norma jurídica. Os princípios constitucionais surgiram especialmente para tentar dar uma noção de direito positivo a valores ético-morais imprescindíveis e que poderiam oferecer anteparos a leis ou textos constitucionais eventualmente discriminatórios e ofensivos à vida humana. Encontrou-se, então, um meio termo, estabelecendo-se princípios constitucionais que trazem determinados valores morais imprescindíceis ao direito positivo. Hoje, coloca-se a norma como um gênero, tendo as regras e os princípios como suas espécies. Os princípios, então, perfazem o direito positivo, reconhecendo o seu valor de norma jurídica, mesmo não expressos, independente de positivação. Aliás, os princípios implícitos gozam de mesma estatura constitucional que os princípios explícitos.
Limita-se, pois, a atuação do Legislativo, não somente no aspecto meramente formal (preocupação positivista), mas também sob o prisma material (preocupação pós-positivista). Quer dizer, os direitos fundamentais e os princípios constitucionais, explícitos e implícitos, limitam o legislador. Não basta mais apenas o desejo do legislador, como antes, que poderia ser espúrio e conter excessos nefastos, mesmo que trouxesse valores totalmente dissociados da moral e repugnados pela sociedade. Com o neopositivismo e a inclusão dos princípios na ordem jurídica, valores éticos e morais ligados à dignidade da pessoa humana passam a integrar o campo do positivismo. Assim, o neopositivismo busca o equilíbrio, uma superação da dicotomia entre direito natural e direito positivo através de uma reaproximação entre direito e moral, por meio dos princípios. Em um extremo estava o jusnaturalismo, para o outro extremo foi o positivismo jurídico (juspositivismo), agora o neopositivismo (pós-positivismo) busca o ponto de equilíbrio. Nesse contexto, se antes fazia-se uma diferenciação entre normas (vinculantes) e princípios (meras recomendações), no pós-positivismo esta diferenciação é abandonada.
Assim, no paradigma neopositivista, temos: (i) norma-regra; (ii) norma-princípio. Isso significa que uma regra constitucional expressa tem igual hierarquia normativa que um princípio constitucional, inclusive implícito. E mais, embora de mesma hierarquia, atualmente reconhece-se que a afronta a um princípio viola o ordenamento jurídico de forma mais gravosa do que a violação a uma norma-regra, porque o princípio se aplica a um conjunto indefinido de situações jurídicas, daí porque, hoje em dia, tem-se observado um fenômeno no sentido de que, havendo conflito entre norma-regra e norma-princípio, esta última tende a prevalecer, embora tenham mesmo status constitucional. Quer dizer, os princípios constitucionais servem de fontes de observência obrigatória, sobretudo quando determinada norma lhe é contrária, preconizando a abertura da hermenêutica constitucional aos influxos da moralidade crítica. Não há dúvidas, pois, que a ciência jurídica sofreu transformações, inclusive nas fontes do direito, antes baseada só na lei, agora também reconhecendo-se a eficácia normativa dos princípios. Hoje, principio não é, como era antigamente, apenas uma técnica de colmatação normativa utilizada para preencher lacunas existentes na lei. Trata-se de uma nova sistemática normativa com o desenvolvimento da teoria dos princípios como espécie normativa, alterando a ciência jurídica no que diz respeito às fontes do Direito (Teoria das Fontes).
3.5.Supremacia e Contralidade da Constituição
A partir da redução da força da lei no seu plano formal, bem como o reconehcimento da eficácia normativa principiológica, concluímos que a lei tornou-se submissa e necessariamente obediente ao texto constitucional e seus princípios. Não há mais o império da lei, mas agora o que existe é o fenômeno da supremacia e centralidade da Constituição. Não é mais a lei que está no topo do ordenamento jurídico, mas a Constituição. Trata-se da substituição do legicentrismo positivista (império da lei) pela supremacia constitucional. Toda e qualquer lei, no plano formal e material, lhe deve obediência. Da centralidade da Constituição decorre a sua supremacia material, que inicialmente era uma contribuição apenas do constitucionalismo americano, mas agora chega também na Europa e em todo o globo, não só do ponto de vista formal, mas também e, principalmente, sob o prisma material. Com o neoconstitucionalismo, fixa-se, assim, a supremacia da Constituição em todo o mundo, objetivandoo assegurar-lhe maior eficácia.
Antes, a supremacia constitucional, por um lado, era restrita à experiência americana (na Europra tratava-se de documento essencialmente político), e por outro lado, decorria basicamente do seu aspecto formal (compatibilidade vertical da pirâmide kelsiana). A Constituição era uma lei no sentido jurídico de Kelsen, e lei suprema, mas que vinculava muito mais no plano formal. O Estado que vigorava até então era o Estado da lei (império da lei), e não o Estado constitucional (centralidade da Constituição). A Constituição era lei, e lei suprema, mas essa supremacia não decorria propriamente do conteúdo das normas constitucionais, e sim porque era uma lei no plano formal acima das demais. O controle era realizado no plano formal da legalidade estrita, e não quanto à obediência das leis ao conteúdo das normas constitucionais. É no neoconstitucionalismo que a Constituição vai consolidar sua eficácia normativa material, com os valores e princípios encartados nas normas constitucionais vinculando o conteúdo da elaboração das demais leis do ordenamento jurídico. Os princípios e normas constitucionais agora se sobrepõem ao restante do ordenamento, que lhe devem obediência não só formal, mas também material.
O reconhecimento do conteúdo normativo da Constituição teve como marco, em 1959, a obra do jurista alemão Konrad Hesse intitulada “A força normativa da Constituição”, destacando-se a evolução do caráter jurídico (e não mais político) da Constituição. Quer dizer, embora o sentido jurídico formal de lei tenha sido conferido à Constituição por Kelsen no modelo americano, a eficácia normativa material da Constituição, vinculando o conteúdo das leis e a compatibilidade destas à Constituição no plano material, se consolidou no constitucionalismo contemporâneo, sobretudo por influência alemã, grande escola doutrinária dessa nova fase constitucional, talvez porque o foco do problema que desembocou toda essa revolução jurídica do neoconstitucionalismo foi o nazismo alemão, sendo natural o movimento jurídico reacionário. Hoje, não se concebe a Constituição de outra forma senão como um documento jurídico, na forma e na essência, o que lhe coloca no centro do Direito e como norma suprema, todas as demais leis do ordenamento devem obediência aos seus princípios e normas. Isso explica a ampliação das técnicas de controle de constitucionalidade, inclusive possibilitando-se atualmente o controle concentrado, sempre que uma lei atinge violar materialmente a Constituição. Temos, pois, a centralidade e supremacia da Constituição.
3.6.Ampliação da Hermeneutica Constitucional
Considerando a nova abordagem constitucional, dotada de centralidade com reconhecida supremacia material, fazia-se necessário uma interpretação de todo o complexo normativo à luz da Lei Fundamental, justamente porque é nela onde passaram a se encontrar princípios valorativos fundamentais que se irradiam para todo o sistema normativo. Até pouco tempo, as Constituições eram interpretadas pelos mesmos métodos desenvolvidos por Savigny para interpretar o direito privado (gramatical, lógico, histórico, sistemático, teleológico). Não haviam métodos específicos de interpretação da Constituição como hoje temos, sobretudo por meio dos princípios interpretativos instrumentais. Observa-se, pois, mais uma característica do neoconstitucionalismo, provocando alteração na ciência jurídica, referindo-se à ampliação das técnicas de hermenêutica constitucional. Assim como temos uma nova Teoria das Fontes, temos também uma nova hermenêutica jurídica (Teoria da Interpretação), sobretudo baseada nos princípios constitucionais.
Relembre-se que, no início, os juízes deveriam proceder à interpretação literal e mecânica da lei (Escola da Exegese) na fase inicial do constitucionalismo liberal europeu. Posteriormente, na transição para o constitucionalismo social, fase de apogeu do positivismo jurídico, tivemos a abertura para a hermenêutica jurídica com a contribuição dos cânones interpretativos (Savigny), porém, ainda limitados à visão míope do positivismo estrito que fazia uma distinção estanque entre moral e direito. Agora, no neoconstitucionalismo, a partir da concepção neopositivista do direito, a atividade interpretativa não estava mais absolutamente presa aos limites formalistas da lei, mas também passou a decorrer da inclusão de valores éticos-morais. Nesse sentido, era necessário conferir certa parcela de maior liberdade hermenêutica aos juízes na aplicação das normas jurídicas e, principalmente, no exercício do controle de constitucionalidade pelo tribunal constitucional. Nesse contexto, destacou-se a Corte Constitucional Alemã, que teve Robert Alexy como grande expoente, e Dworkin nos EUA. Foi a partir daí que veio o instituto do controle de constitucionalidade sem redução de texto, a técnica de interpretação conforme à Constituição, dentre outros.
Assim sendo, a atividade de interpretação constitucional, inclusive como pressuposto do exercício efetivo do controle de constitucionalidade, acaba por adentrar em todas as esferas do direito, como forma mais protetiva de resguardar os direitos fundamentais. Os princípios constitucionais irradiam-se sobre os diferentes ramos de direito e sobre as mais variadas relações jurídicas, atingindo também a órbita privada. Aliás, fala-se hoje, inclusive, no fenômeno da “constitucionalização do direito”, que á a consagração de normas de outros ramos do direito na própria Constituição. Isto é, toda interpretação jurídica é uma interpretação primeiramente constitucional. Pela constitucionalização do direito decorre que a interpretação das normas de outros ramos do direito deve ser feita à luz da Constituição. Logo, para se interpretar uma lei, o primeiro passo é verificar sua compatibilidade constitucional (filtragem constitucional). Daí decorre também a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Todo esse contexto passa necessariamente por sofisticadas técnicas de hermenêutica, ampliadas no neoconstitucionalismo.
3.7.Jurisdição Constitucional e Ativismo Judiciário:
Com todas as transformações ocorridas nas últimas décadas, passando a Constituição a ser central e suprema no ordenamento jurídico, a atividade do judiciário acabou ficando altamente fortalecida, eis que a ele cabe a função de guardião constitucional. Verificamos uma verdadeira jurisdição constitucional por decorrência das inovações advindas do neoconstitucionalismo. O neoconstitucionalismo, portanto, insere-se nesse contexto, instrumentalizado no exercício da jurisdição constitucional e guarda da Lei Fundamental pelo Judiciário, daí resultando o que hoje se tem como ativismo judiciário da corte constitucional. Deposita-se menor confiança nas instâncias executiva e legislativa de poder, conferindo-se maior confiança na instância judiciária, sobretudo no tribunal constitucional. Nos dias atuais, aliás, já se fala na eficácia normativa da jurisprudência. Ou seja, à jurisprudência também é reconhecida a eficácia normativa, havendo profunda alteração na teoria das normas e das fontes do Direito, passando a ser, assim como as normas-regra e as normas-princípios, também uma fonte principal do direito. O ato final produzido por meio de decisão judicial após um processo jurisdicional é, portanto, atualmente, considerado norma jurídica.
A força normativa da jurisprudência pode ser especialmente observada no que se refere ao poder maior conferido à Corte Suprema, seja para proferir entendimentos que vinculam o restante do judiciário, como por exemplo os institutos da súmula vinculante, o controle de constitucionalidade com decisões erga omnes, dentre outros, seja ainda com julgamentos que inovam diretamente a ordem jurídica, como por exemplo a atuação como legislador negativo na interpretação conforme a Constituição e, até mesmo, como legislador positivo em determinados casos de configurada omissão legislativa, tudo isso como forma de garantir a supremacia da Constituição, em nítido ativismo judiciário exercendo a chamada jurisdição constitucional.
Se antes, na época do positivismo jurídico, o principal protagonista dentre os três poderes era o legislador, hoje, no neoconstitucionalismo, a tendência é que o maior deles seja o judiciário, doutrina que vem sendo fortemente recepcionada pelo direito brasileiro. É bem verdade que persistem discussões constitucionais advindas da aplicação desse modelo neoconstitucional, a principal delas seria o clássico debate do direito constitucional de como se equacionar a idéia de que um tribunal constitucional, órgão do Judiciário, não eleito pelo povo, destituído de mandato legitimatório popular, possa se sobrepor a poderes eleitos pelo povo, como o são Executivo e Legislativo. O neoconstitucionalismo, pois, acaba deixando a corte constitucional em condição de primazia em relação aos demais poderes, na proteção da Constituição. Contudo, abstraídas as discussões acadêmicas, a evolução atual do direito caminha no sentido do ativismo judiciário.
É que o equilíbrio na separação de Poderes não é estático. Em uma situação perfeita, quem deveria implementar os direitos sociais seria o Legislativo e o Executivo, porque foram eleitos, gozam de representatividade popular. O problema é que a democracia não pode ser vista tão somente na sua dimensão formal. Mas a democracia em seu aspecto substancial abrange, além da possibilidade formal de participação na escolha dos representantes, também a fruição de direitos, inclusive pelas minorias (democracia material, ou democracia constitucional). Daí decorre a preocupação com a efetividade dos direitos fundamentais. Não há como escolher representantes de forma verdadeiramente livre se não há direitos essenciais para tanto (educação, saúde, cidadania, pluralismo, etc.), seria uma democracia viciada (isso explica a venda de votos em períodos de eleição). A democracia, então, exige a garantia da participação popular (plano formal) e dos direitos fundamentais (plano material).
É nesse ponto onde entra o ativismo do judiciário e a jurisdição constitucional. A vontade das maiorias é expressa através do Legislativo e do Executivo, que através dos representantes eleitos fazem valer a premissa majoritária. Ao revés, a fruição de direitos pelas minorias será efetivado principalmente pelo Judiciário, exatamente por não ser eleito pelo povo, exercendo o papel contra-majoritário, sem vinculação à vontade da maioria. Obviamente, os direitos de todos, maioria e minoria, no plano teórico, deveriam ser resguardados por todos os Poderes Públicos (Executivo, Legislativo, Judiciário) e inclusive pela própria sociedade (eficácia horizontal), mas na prática, se houver incapacidade ou omissão dos poderes representativos (Executivo e Legislativo) de pautarem a sua atuação pela axiologia constitucional, deve o Judiciário, como representante das minorias, poder contramajoritário, não eleito pelo povo, exercer o papel de garantidor dos direitos e darantias fundamentais, como guardião constitucional. Quer dizer, a inércia ou incompetência do legislador e do administrador muitas vezes obrigam uma atuação do judiciário, caso contrário é ele próprio quem vai estar descumprindo a Constituição.
O Supremo Tribunal Federal já fixou entendimento no sentido da possibilidade de se recorrer diretamente ao judiciário para exigir uma prestação fundada num direito social. O Estado não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos sociais sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer de modo inaceitável a integridade da própria ordem constitucional. O Legislativo e o Executivo são os atores para o estabelecimento das políticas prioritárias, mas quando estes se omitem ou retardam o cumprimento de um direito, aí se torna necessária a intervenção judicial. É função institucional do Poder Judiciário determinar a implantação de políticas públicas quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Logo, o déficit democrático, a falta de credibilidade nas instâncias democráticas, faz com que o judiciário tenha que intervir. Daí se falar, hoje, na chamada “judicialização das relações políticas e sociais”, característica marcante do neoconstitucionalismo. Em que pese as críticas, o próprio sistema jurídico impõe ao judiciário, antes um dever do que um poder, para efetivar a guarda da Constituição, suprema e central, de onde decorre, por vezes, seu ativismo.