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Limites do poder constituinte originário

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Agenda 10/02/2014 às 10:14

Negar a existência de um conjunto mínimo de direitos inatos à própria condição humana é rejeitar o fato de que a imensa maioria das pessoas prefere viver a não viver, inclusive, desejam um tipo de vida mais rica e completa do que aquelas que lhe dariam uma mera sobrevivência física.

Sumário:1. INTRODUÇÃO 2. DO CONSTITUCIONALISMO JURÍDICO AO CONSTITUCIONALISMO SOCIAL 3. A TEORIA DO PODER CONSTITUINTE: DO CLÁSSICO AO CONTEMPORÂNEO 3.1 O Poder Constituinte Originário 3.2 O Poder Constituinte Derivado 4. OS LIMITES MATERIAIS DO PODER CONSTITUINTE 5. A EXIGÊNCIA DA GARANTIA DOS DIREITOS COMO LIMITES AO PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO 6. CONCLUSÃO 7. BIBLIOGRAFIA.


1.    Introdução

A Constituição é a norma positiva mais importante de um Estado, pois se trata da expressão da vontade livre e soberana do povo acerca da organização do Estado e do conteúdo e extensão dos direitos fundamentais que lhes são assegurados. Em razão de seu posicionamento hierárquico na pirâmide normativa imaginada por Hans Kelsen, a Constituição goza de supremacia frente a todas as demais normas, que com ela devem se conformar, sob pena de que lhes seja negada validade.

Por sua vez, e em razão da crença na supremacia da Constituição, o poder constituinte é visto como um poder ilimitado, já que antecede a própria criação do Estado, e independente em relação a qualquer ordem jurídica antes estabelecida. Essa visão positivista do Direito predominou durante mais de um século, até que, em face de acontecimentos históricos importantes, a visão de uma Constituição puramente positiva, que não deve obediência aos direitos humanos consagrados em antológicas declarações de direitos, vem dando lugar à visão da nova ciência do constitucionalismo, menos formal e mais voltada para seus aspectos materiais, o que implica dizer que se passou a contestar, pelo menos doutrinariamente, a ausência de limites materiais à atuação do poder constituinte originário.

No primeiro capítulo deste trabalho far-se-á uma digressão histórica do constitucionalismo, desde a sua concepção naturalística, passando pela visão puramente jurídico-formal, até os dias atuais, onde prevalece o seu sentido social, em que o texto constitucional adquire força normativa e passa a gozar de efetividade.

No segundo, abordar-se-á a teoria do constitucionalismo a partir da concepção original de Sieyès, mostrando as influências da teoria pura do Direito de Hans Kelsen até chegar às discussões teóricas contemporâneas. Para facilitar a abordagem, o capítulo se desdobrará em outros dois, onde serão tratados, distintamente, os conceitos de poder constituinte originário e de poder constituinte derivado.

No terceiro, a discussão sobre os limites materiais ao poder constituinte resultará num apanhado doutrinário sobre o pensamento de constitucionalistas nacionais e estrangeiros acerca da temática, tendo sempre como ponto de partida os ideais revolucionários franceses, a mudança de perspectiva ocorrida com a predominância do pensamento kelseniano e a superação do positivismo a partir do pós-guerra.

Por fim, a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, uma espécie de preâmbulo da Constituição francesa de 1789, mostrar-se-á que o constitucionalismo pós-moderno tem resgatado a ideia da existência de um direito supraestatal, ou suprapositivo, o que já vem se revelando nas Constituições de alguns países europeus, a exemplo da Alemanha, da França e da Espanha.

Ao final, longe de pretender apresentar a solução definitiva da controvérsia doutrinária, objeto de acirrados duelos ideológicos, tentar-se-á contribuir para que, com a definição mais restrita do campo em que se desenvolve esta discussão, seja possível ter-se uma visão mais clara das diferentes correntes de pensamento.


2.    Do Constitucionalismo Jurídico ao Constitucionalismo Social

A ideia de Constituição como conjunto de normas voltadas à organização de poder de um Estado remonta a um passado relativamente recente, mais precisamente à segunda metade do século XVII, com a limitação dos poderes da monarquia inglesa pela Bill of Rights, de 1688, e com o processo de independência dos Estados Unidos da América em relação aos seus colonizadores ingleses, culminando com a Constituição Americana de 1776. Muito pouco tempo depois, com a Revolução Francesa e a consagração dos ideais liberais, a ideia de uma carta política dotada de supremacia, voltada à organização do Estado com fundamento na separação dos poderes e a definição dos direitos individuais, ganhou a adesão de quase todos os países, fazendo surgir a ciência do constitucionalismo e a noção de Estado Liberal.

Ao longo de seu processo evolutivo, o Direito Constitucional sofreu profundas transformações, sendo, dentre elas, a mais significativa, a mudança de paradigmas de um constitucionalismo liberal para um constitucionalismo social, o que fez com que fossem ampliadas as tarefas desempenhadas pelo Estado no plano econômico e social[1]. Contudo, a influência do positivismo jurídico europeu, cuja maior representação se encontra na teoria pura do Direito, de Hans Kelsen, relegou a Constituição ao papel secundário de uma espécie de carta de intenções políticas dirigida ao legislador, já que não havia tutela judicial em caso de descumprimento de suas normas.

Segundo Kelsen, a Constituição deveria ser vista apenas em seu sentido jurídico, norma pura sem qualquer pretensão a fundamentação sociologia, política ou filosófica, o que lhe conferiria o status de norma positiva suprema reguladora da criação de outras normas, a lei nacional em seu mais alto grau.[2]

Com o advento da segunda guerra mundial e a percepção de que a visão estritamente normativista da Constituição havia legitimado o surgimento de Estados totalitários[3], trazendo, como consequência, a perda de prestígio da corrente positivista, deu-se início à superação da perspectiva de uma Constituição desprovida de efetividade, inaugurando a era da constitucionalização dos direitos, em que a Constituição é vista como o centro do sistema jurídico[4], fundamento de validade de todo o ordenamento. Hoje, cada vez mais o Direito Constitucional se distancia da teoria pura do Direito e se aproxima da Ciência Política[5].

O constitucionalismo jurídico liberal, fruto dos ideais individualistas que consagraram a Revolução Francesa, vem dando espaço ao constitucionalismo social e político, resultado, dentre outros, da pressão irresistível das necessidades sociais[6], donde emerge um modelo de Estado garantidor dos direitos fundamentais do indivíduo e solucionador dos conflitos e das exigências do corpo social.

Já no Brasil, tendo em vista o fato de que a conquista da força normativa da Constituição e a mudança dos paradigmas constitucionais são fenômenos bastante recentes, remontando a pouco mais de duas décadas, com o advento do fim da ditadura militar e a promulgação da Constituição Federal de 1988, a ideia de um poder constituinte limitado a regras universalmente aceitas, a direitos humanos consagrados pela sociedade ao longo de sua história de avanços e de retrocessos, ainda encontra significativa resistência entre os defensores da soberania estatal absoluta, o que revela a difícil transição entre os dois modelos de constitucionalismo, mais evidente em países em desenvolvimento.


3.    A Teoria do Poder Constituinte: do Clássico ao Contemporâneo

Em que pese o poder constituinte sempre ter existido na história da humanidade, haja vista que foi através dele que as nações se formaram e se organizaram ao longo do tempo, a formulação de sua teoria somente surgiu na efervescência da Revolução Francesa, no final do século XVIII, graças ao pensamento iluminista do racionalismo francês que se opunha ao poder decadente e absoluto das monarquias europeias, até então aceitas como titulares de um direito divino.

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Coube a Emmanuel Joseph Sieyès, em sua obra clássica Quést-ce que Le Tiers État?, escrita quando ainda estava em curso o processo revolucionário francês[7], a concepção da teoria do poder constituinte. Com base na doutrina do contrato social de Jean-Jacques Rousseau[8], Sieyès propôs que a soberania popular consistiria essencialmente no poder constituinte, já que todos os poderes previstos na Constituição emanariam do povo. Daí porque concluiu que o poder constituinte seria um poder inicial (inaugura nova ordem jurídica, pois antes dele não existe qualquer outro), autônomo (somente a ele cabe decidir “se”, “como” e “quando” deve conceber-se uma Constituição à Nação), e onipotente (não subordinado a qualquer regra, exceto, como se verá a seguir, àquelas decorrentes do direito natural).

Segundo o religioso[9] francês, “o poder constituinte, incondicionado e permanente, seria a vontade da nação, só encontrando limites no direito natural”.[10] Ou seja, uma vez constituído pela vontade popular, que na teoria clássica oitocentista foi substituída pelo conceito de representação política, o poder constituinte somente encontraria limitação no direito natural. A titularidade do poder soberano passava, desta forma, às mãos da Nação, que através de um sistema representativo popular tinha a atribuição extraordinária de criar a norma fundamental do País.

Sieyès também elaborou importante distinção entre “poder constituinte” e “poderes constituídos”, reconhecendo, no primeiro, a soberania popular. Dizia, em suma, que ao delegar parte de seu poder às autoridades, o povo ainda assim conserva seu poder constituinte, não estando vinculado, portanto, à Constituição. Tratou em sua teoria, também, da concepção de autonomia do poder constituinte.

Ainda que tenha mantido a soberania popular como o núcleo essencial de sua teoria, o poder constituinte sofreu significativas alterações ao longo de pouco mais de duzentos anos de sua formulação, principalmente no auge da teria positivista do Direito, em que se buscava a separação entre direito e moral, o que inegavelmente conduziu ao afastamento da baliza imposta pela teoria original à atuação do constituinte: o direito natural. Influenciado pelos acontecimentos do segundo pós-guerra mundial, o chamado neoconstitucionalismo, ou pós-positivismo, como alguns preferem se referir, o Direito reaproximou-se da ética e da moral, definindo a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais do homem como fatores de limitação material ao poder constituinte.

Numa síntese dialética da nova hermenêutica constitucional, diz-se que o poder constituinte é o poder de conceber ou de atualizar, se originário ou se derivado, respectivamente, o texto constitucional. O titular desse poder é o próprio povo, fonte de emanação de todo o poder, como se pode observar, por exemplo, no disposto no parágrafo único, do art. 1º da Constituição Federal do Brasil.[11]

3.1 O Poder Constituinte Originário

O poder constituinte é originário quando inaugura uma nova ordem jurídica com a superação de toda a ordem jurídica anterior, criando um novo modelo de Estado regido por valores agora prevalecentes. Trata-se de um poder essencialmente político, extrajurídico[12]. Observa Michel temer:

[...] ressalte-se a idéia de que surge novo Estado a cada nova Constituição, provenha ela de movimento revolucionário ou de assembléia popular. O Estado brasileiro de 1988 não é o de 1969, nem o de 1946, o de 1937, de 1934, de 1891, ou de 1824. Historicamente é o mesmo, Geograficamente pode ser o mesmo. Não o é, porém, juridicamente. A cada manifestação constituinte, editora de atos constitucionais como Constituição, Atos Institucionais e até Decretos (veja-se o Dec. n. 1, de 15.11.1889, que proclamou a República e instituiu a Federação como forma de Estado), nasce o Estado. Não importa a rotulação conferida ao ato constituinte. Importa a sua natureza. Se dele decorre a certeza de rompimento com a ordem jurídica anterior, de edição normativa em desconformidade intencional com o texto em vigor, de modo a invalidar a normatividade vigente, tem-se novo Estado[13].

A doutrina clássica divide o poder constituinte em histórico ou revolucionário, sendo o primeiro o verdadeiro poder constituinte, haja vista a primazia de ter estruturado o Estado pela primeira vez, enquanto todos os outros que o sucederem serão tidos como revolucionários, uma vez que terão a função de romper com a ordem jurídica até então vigente para a criação de um novo Estado.

Anote-se que, por aqui, a ideia de onipotência do poder constituinte, ou a sua propalada falta de limitação, é fruto da predominância inquestionável da corrente positivista kelseniana no Brasil, sob o argumento de que sua natureza é pré-jurídica, ou seja, de que antecede até mesmo a própria ordem jurídica. Convencionou-se no Brasil, desta forma, dizer que não há qualquer limitação ao poder constituinte originário, uma vez que, por estabelecer nova ordem jurídica, não está vinculado ao dever de obediência a qualquer limite de ordem jurídica. É um poder de fato, um poder político, não de direito.

Para a corrente jusnaturalista, contrária à ideia de um poder constituinte ilimitado, o fato de não se vincular a qualquer regra ou norma jurídica pré-existente não dá ao poder constituinte o caráter de ilimitado, mas tão somente de autônomo, no sentido de independente, de não sujeito às influências jurídicas anteriores do Estado que se buscou recriar. Sinteticamente, em razão da anterioridade e da superioridade do direito natural, o poder constituinte estaria a ele submetido, já que não se trata de regras de direito positivo.

3.2 O Poder Constituinte Derivado

Definido por Paulo Bonavides como “poder primacialmente jurídico”, o poder constituinte derivado nasce da necessidade de compatibilizar o sistema de representação popular com as manifestações diretas de uma vontade soberana.[14]

Em razão de sua finalidade reformadora ou revisora do texto constitucional, o poder constituinte derivado, cujas atribuições e limites encontram-se expressamente previstos na Constituição e cujo poder deriva do poder constituinte originário (daí o designativo derivado)[15], tem suas limitações amplamente aceitas pela doutrina jurídica. Suas características mais marcantes são, dessa forma, a limitação material de seu exercício e condicionalidade às regras estabelecidas pelo próprio texto constitucional, e a limitação formal, uma vez que esta lhe impõe procedimento específico que não pode deixar de ser observado no processo legislativo, sob pena de sujeitar o seu resultado ao sistema de controle da constitucionalidade.

Segundo José Afonso da Silva, as limitações impostas ao poder reformador são de três espécies: temporais, circunstanciais e materiais (explícitas ou implícitas)[16]. As primeiras, temporais, que impõe um lapso temporal para que haja a reforma do texto constitucional (daquilo que pode ser reformado pelo poder constituinte derivado, obviamente), não são comuns na história do Direito Constitucional brasileiro, tendo o seu único registro na Constituição do Império, de 1824[17].

A limitação circunstancial, que trata da impossibilidade de emenda à Constituição em determinadas situações excepcionais, passou a ser adotada nas Constituições brasileiras a partir de 1934, estando descrita expressamente no art. 60, § 1° da atual Constituição Federal[18].

No entanto, a espécie de limitação que gera maiores controvérsias diz respeito aos limites materiais impostos ao poder reformador constitucional. Para delimitar ainda mais o campo da discussão, a doutrina costuma subdividir tais limites materiais em explícitos e implícitos.

Os primeiros, limites materiais explícitos, são aqueles formalmente expressos no texto constitucional, integrantes do núcleo intangível da Constituição Federal, cláusulas pétreas e imodificáveis pelo poder constituinte derivado.

Essas limitações materiais que estão explícitas no texto constitucional são, no Brasil, dispostas no art. 60, § 4° da Constituição Federal[19], que dispõe que não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir (I) a forma federativa de Estado, (II) o voto direto, secreto, universal e periódico, (III) a separação dos Poderes, e (IV) os direitos e garantias individuais. Vê-se que a atuação do poder constituinte derivado, exercido pelos membros do Congresso Nacional, pelo Presidente da República ou pelas Assembleias Legislativas Estaduais, encontra limitação material expressa no próprio texto constitucional.

Observe-se, por oportuno, que a vedação expressa no art. 60, § 4°, inciso IV da Constituição Federal diz respeito à supressão de direitos e garantias individuais do texto constitucional, e não à sua ampliação ou alteração, desde que conservada a essência valorativa do princípio protegido.

Finalmente, quanto aos limites materiais implícitos impostos ao poder reformador, há de se observar que, com a gradativa ampliação do rol dos limites materiais explícitos no texto constitucional, surge uma forte tendência a que não sejam aceitas limitações implícitas. Entretanto, merecem destaque três situações descritas por Nelson de Sousa Sampaio e que ainda configurariam limitações materiais implícitas, portanto insuscetíveis de alteração pelo poder constituinte derivado: (1) as concernentes ao titular do poder constituinte, já que,por óbvio, uma reforma constitucional não pode mudar o titular do poder que cria o próprio poder reformador; (2) as referentes ao titular do poder reformador, já que não seria admissível que o legislador ordinário estabelecesse novo titular de um poder derivado só da vontade do constituinte originário; e, (3) as relativas ao processo da própria emenda, distinguindo-se quanto à natureza da reforma, para admiti-la quando se tratar de tornar mais difícil seu processo, rejeitando-a quando vise a atenuá-lo.[20]

Trata-se, como visto, de um poder de direito, e não de fato, uma vez que sua legitimação encontra fundamento no próprio texto constitucional.


4.    Os Limites Materiais do Poder Constituinte

A constatação de que a Constituição encontra-se posicionada, numa escala hierárquica-normativa, no ápice do ordenamento jurídico do País, legitimando todos os poderes do Estado exatamente porque os reconhece, estrutura e organiza, definindo suas competências e atribuições, irradiando seus efeitos para que todo o sistema jurídico interno com ela se conforme e encontre validade, demonstra, de per si, a sua supremacia frente às demais normas jurídicas internas.

Como norma conformadora e validante de todo o ordenamento jurídico interno, é necessário que a Constituição se sujeite a regras rigorosas para alteração de seu conteúdo. Uma das características universalmente aceitas da Constituição é a rigidez de seu texto, tendo em vista a maior dificuldade para modificá-lo, quando comparado aos demais textos do ordenamento jurídico estatal. Dessa rigidez se denota a supremacia da constituição como “pedra angular em que assenta o edifício do moderno direito político”[21].

A rigidez constitucional em sua compreensão mais ampla, como forma de preservação da juridicidade de seu texto, foi defendida com fervor pelos positivistas que tiveram no normativismo de Kelsen o seu ponto mais alto. Se por um lado a teoria positivista fez com que eventuais investidas contra o texto constitucional esbarrassem na rigidez exigida para sua modificação, preservando-o íntegro, por outro, provocou o descompasso de seu texto com os fatos e com a realidade social.

Segundo essa corrente doutrinária, a Constituição somente poderia ser alterada pelo legislador (poder constituinte) e não pelo intérprete, sendo, a aplicação do Direito, uma operação lógica de subsunção dos fatos à norma, não se admitindo ato de criação ou de aperfeiçoamento.[22] A introdução de novos preceitos constitucionais materiais somente seria admissível pela via formal, o que fazia com que houvesse absoluta coincidência entre conteúdo formal e material do texto constitucional.

Já que nessa teoria a essência de toda a juridicidade da Constituição era a obediência às regras formais de ingresso de novas normas no texto, tornou-se possível a introdução de qualquer disposição desprovida de valoração social, desde que se atentasse às citadas regras formalísticas.

A teoria positivista kelseniana não reconhecia quaisquer limites materiais para a revisão constitucional, já que podia a ordem jurídica soberana receber qualquer conteúdo, inclusive tendo citado, em sua obra Das Problem der Souveänität, a introdução da escravidão como instituto jurídico no âmbito da possibilidade de uma ordem jurídica[23]. Não havia, na teoria de Hans Kelsen, limites materiais ao exercício do poder constituinte, fosse ele originário, quer derivado.

A expressão utilizada por Horst Ehmke, constitucionalista alemão do Estado Social, de que a norma fundamental se converte, portanto, numa Constituição em branco, apta a receber qualquer conteúdo, demonstra com exatidão o pensamento positivista acerca da ilimitação do poder constituinte[24].

A legitimidade conferida a toda espécie de ordenamento jurídico que obedecesse aos critérios formais de alteração do texto constitucional, permitiu que se pudesse atribuir até mesmo ao Estado Nacional-Socialista de Hitler o atributo qualificativo de Estado de Direito. A forma sobrepunha-se ao conteúdo, o aspecto jurídico-formal prevaleceu em relação às necessidades reais do corpo social.

Com o declínio do constitucionalismo liberal e da visão puramente jurídica da Constituição, desenvolveu-se a ideia de uma Constituição normativa e de um constitucionalismo social, fruto de uma síntese dialética da formulação teórica positivista e da sociológico-constitucional, preconizada por Ferdinand Lassalle[25]. Segundo magistério de José Afonso da Silva:

Busca-se, assim, formular uma concepção estrutural de Constituição, que a considera no seu aspecto normativo, não como norma pura, mas como norma em sua conexão com a realidade social, que lhe dá o conteúdo fático e o sentido axiológico. Trata-se de um complexo, não de partes que se adicionam ou se somam, mas de elementos e membros que se enlaçam num todo unitário. O sentido jurídico de Constituição não se obterá, se a apreciarmos desgarrada da totalidade da vida social, sem conexão com o conjunto da comunidade. Pois bem, certos modos de agir em sociedade transformam-se em condutas humanas valoradas historicamente e constituem-se em fundamentos do existir comunitário, formando os elementos constitucionais do grupo social, que o constituinte intui e revela como preceitos normativos fundamentais: a Constituição.[26]

A visão clássica da Constituição e sua “ênfase nos aspectos da organização do Estado e na proteção de um elenco limitado de direitos da liberdade”[27], deu lugar para o constitucionalismo social, ampliando significativamente seu conteúdo com o alargamento das tarefas do Estado no plano econômico e social.

Alguns países avançaram ainda mais, com a adoção do conceito de uma Constituição dirigente[28], criando para o legislador e para o administrador deveres de atuação positiva para a concretização das finalidades pré-estabelecidas no texto.

Quanto ao aspecto dogmático, o fato mais preponderante na evolução do constitucionalismo atual tem sido o reconhecimento e a consolidação da força normativa da Constituição, antes vista como “diretivas políticas endereçadas, sobretudo, ao legislador”[29], hoje amplamente aceitas como normas jurídicas que comportam tutela judicial em face de seu descumprimento. Quanto a esta importante quadra na história do constitucionalismo, importa observar o comentário de Luís Roberto Barroso:

[...] A superação dessa perspectiva ganhou impulso no segundo pós-guerra, com a perda de prestígio do positivismo jurídico e da própria lei e com a ascensão dos princípios constitucionais concebidos como uma reserva de justiça na relação entre o poder político e os indivíduos, especialmente as minorias. Essa mudança, uma verdadeira revolução silenciosa, tornou-se possível graças à disseminação da jurisdição constitucional, com a criação de inúmeros tribunais constitucionais pelo mundo afora.[30]

É certo que não há qualquer vinculação do poder constituinte originário a normas jurídicas anteriores, pois se assim o fosse, estaria limitado, senão impossibilitado, de romper com a ordem jurídica até então dominante. Contudo, esse poder constituinte não pode desconhecer outras limitações, principalmente as de cunho moral e ético, sob pena de se constituir em poder arbitrário, capaz de legitimar injustiças. Mesmo não sendo limitações jurídico-positivas, estes parâmetros servem de balizas para que haja legitimidade no exercício do poder constituinte originário. Os valores civilizatórios dos direitos humanos e da justiça devem pautar o exercício do poder constituinte originário[31].

No entanto, como herança da concepção positivista kelseniana de um sistema escalonado de normas, em que as normas inferiores buscam sua validade nas superiores até atingir a Constituição, localizada no ápice da pirâmide normativa, não se reconhecia a possibilidade de um direito preexistente ao Estado, sendo o poder constituinte um fato pré-jurídico (ou metajurídico), externo ao direito[32].

O Direito, agora visto sob a perspectiva de interação indissociável entre fato e norma, não mais admite a ideia de uma norma jurídica divorciada dos anseios sociais; a visão de legitimidade da Constituição apenas pela obediência a critérios jurídico-formais não subsiste diante da constatação de que esse pensamento permitiu o surgimento de Estados que se impunham pela força bruta e pela desatenção (ou até mesmo violação) ao mínimo dos direitos humanos fundamentais.

Luís Roberto Barroso verifica que a rigidez da constituição e a plasticidade de suas normas são conceitos essenciais à teoria da Constituição que vivem em permanente tensão, uma vez que, tendo a finalidade de preservar a estabilidade da ordem constitucional e a segurança jurídica, a rigidez se opõe à necessidade de que as normas constitucionais possam se adaptar aos novos tempos e às novas demandas sem a necessidade de se recorrer, a cada mudança social, aos processos formais e burocráticos da reforma.[33]

Sobre o autor
Fernando Antônio Jambo Muniz Falcão

advogado em Maceió (AL), professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FALCÃO, Fernando Antônio Jambo Muniz. Limites do poder constituinte originário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3876, 10 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26667. Acesso em: 18 nov. 2024.

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