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Limites do poder constituinte originário

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5.    A Exigência da Garantia dos Direitos Como Limites ao Poder Constituinte Originário

Mesmo já tendo sido afirmado por diversas vezes neste trabalho que a Revolução Francesa foi o marco histórico que mais influenciou o constitucionalismo moderno, é necessário ressaltar que, não obstante os aperfeiçoamentos naturais do pensamento liberal que a orientou, ainda hoje se tem como referência para a teoria dos direitos fundamentais a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, espécie de preâmbulo da Constituição francesa de 1789.

Naquele documento antológico, símbolo de nova era nas relações entre o Estado e seus súditos, os revolucionários franceses definiram, em seu art. 16, a finalidade da Constituição:

Artigo 16. Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não for assegurada, nem a repartição dos poderes determinada, não tem constituição.[34]

A força ideológica e a clareza da declaração firmada pelos constituintes franceses são inquestionáveis. Com a finalidade de preservar a ordem jurídica que pretendiam inaugurar, impondo ao Estado limites para impedir o retrocesso daquelas conquistas, expressaram-se no sentido de que uma lei que não divida o poder (forma por eles imaginada para impedir o abuso do poder concentrado) e nem assegurava a garantia dos direitos (tidos como fundamentais ou essenciais à própria existência do homem) não podia ser chamada de Constituição. Como argumento de validade destas proposições, sustentavam que os direitos fundamentais são superiores e anteriores ao Estado que, em última análise, se destina a protegê-los e a assegurá-los. Trata-se da visão clássica da Constituição como garantia[35].

Curiosamente, parece-nos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, firmada em 1948 pelos países da Organização das Nações Unidas (ONU), imediatamente ao término do segundo pós-guerra mundial, um dos principais documentos internacionais em matéria de direitos fundamentais, caminhou em sentido inverso quando, em seu art. VIII, dispôs que “todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.”[36]

Como se observa da redação do texto, a maior parte das nações do planeta reconheceu a importância de que todos os homens recebam proteção dos tribunais contra atos de violação aos seus direitos fundamentais, entretanto, remetem o conteúdo e a definição destes direitos às declarações contidas nas Constituições e nas leis de seus respectivos países.

Ao deixar a critério do poder constituinte originário a definição do que reconhece como direito fundamental, a Declaração, implicitamente, reconhece a supremacia absoluta do texto constitucional, negando a existência de direitos anteriores e superiores aos textos constitucionais.

É bem possível que a motivação desse retrocesso no condicionamento dos textos constitucionais a uma ordem social internacional de proteção aos direitos fundamentais do homem tenha sido as influências do contexto político e econômico do pós-guerra, haja vista o surgimento das duas grandes potências mundiais de ideologias completamente antagônicas que viriam a travar, a partir dali e por mais de três décadas, o que o mundo conheceu como guerra fria.

 Certo é que o constitucionalismo positivista jamais aceitou a existência de qualquer norma que se posicionasse, numa ordem valorativa, acima da Constituição, conferindo-lhe uma supremacia absoluta e uma independência em relação a todo e qualquer valor moral ou ético como fundamento de validade. Como já discutido anteriormente, esse pensamento não se compatibilizava com a teoria do poder constituinte em sua concepção original, uma vez que Sieyès admitia a limitação do poder constituinte originário pelos direitos naturais.

Com o declínio do positivismo em face das barbáries verificadas na segunda grande guerra mundial, renasceu a ideia de que “o direito não é meramente o comando do Poder, mas para merecer o nome há de ter um conteúdo de justiça, ou, se preferir, tem de respeitar os grandes princípios morais”[37].  

Deu-se vida novamente, como já o fizera Sieyès nos primórdios da teoria do constitucionalismo, à tese de que, acima da Constituição há um Direito que se impõe a esta, exigindo-lhe conformidade, tendo a doutrina convencionado chamá-lo de normas supraconstitucionais ou suprapositivas[38].

Esta mesma tese é defendida pelos internacionalistas, mas com argumentos um pouco diferentes. Em que pese reconhecerem nos direitos fundamentais a anterioridade e a independência do direito positivo, condicionam a sujeição das Constituições ao Direito Internacional à participação dos Estados em entidades supra-estatais que tenham lhes exigido à conformação de seus textos constitucionais a normas contidas em tratados adotados no plano da instituição.[39]

No início da década de 90, Alemanha, França, Irlanda e Portugal firmaram em Maastricht, na Holanda, um importante tratado internacional que visava, dentre outras coisas, a unificação europeia e a criação do primeiro sistema internacional de proteção aos direitos fundamentais. Eduardo García de Enterría assevera que:

Esta dirección se inicia, tras el primer intento que concluye en la formación del Consejo de Europa en 1949 y en el montaje del primer sistema de protección internacional de los derechos fundamentales o sistema de Estrasburgo, por la vía de los pasos concretos y medidos, que se abre, sobre la sugestión de Jean Monet, con el Tratado de París de 1951, que creó la Comunidad del Carbón y del Acero.[40]

A ideia de adoção de regras uniformes de proteção aos direitos fundamentais no âmbito dos países integrantes da União Europeia foi assim concretizada no texto do Tratado de Maastricht:

La Unión respetará los derechos fundamentales tal y como se garantizan en el Convenio Europeo para la Protección de los Derechos Humanos y de las Libertades Fundamentales firmado en Roma el 4 de noviembre de 1957, y tal y como resultan de las tradiciones constitucionales comunes a los Estados miembros como principios generales del Derecho Comunitario".[41]

Em que pese a inegável importância do reconhecimento da supra-estatalidade das regras relativas à proteção aos direitos fundamentais no âmbito do Direito Comunitário, ainda assim é possível afirmar que as nações que não se sujeitam a tratados internacionais que tenham como exigência a conformação de suas Constituições às regras uniformes de proteção aos direitos humanos têm a atuação de seus poderes constituintes originários limitados à observância de um conteúdo mínimo de garantias fundamentais ao homem. Afirma o magistério de Paulo Bonavides:

A noção jurídica e formal de uma Constituição tutelar de direitos humanos parece, no entanto, constituir a herança mais importante e considerável da tese liberal. Em outras palavras: o princípio das Constituições sobreviveu no momento em que foi possível discernir e separar na Constituição o elemento material de conteúdo (o núcleo da ideologia liberal) do elemento formal das garantias (o núcleo de um Estado de direito). Este, sim, pertence à razão universal, traz a perenidade a que aspiram as liberdades humanas. O neoliberalismo do século XX o preserva nas Constituições democráticas do nosso tempo, porquanto, se o não acolhesse, jamais poderia com elas exprimir a fórmula eficaz de um Estado de Direito.[42]

O ressurgimento do pensamento liberal de limitação do poder constituinte originário pelo direito natural, repelido por mais de um século e meio de predominância da escola positivista, foi uma reação contra os abusos praticados pelos Estados totalitários durante a segunda guerra mundial, à época considerados legítimos sob a ótica legalista, uma vez que tinham como fundamento uma lei formal. Esse era o Estado legal e formal, que se contentava com a observância da lei pelo Estado e pelo Judiciário, independentemente do conteúdo dessa lei, ainda que contrariasse valores como a justiça, a liberdade e a equidade.[43]

Associados a este declínio do pensamento positivista, o desprestígio da lei e a ineficiência dos legisladores contribuíram significativamente para o reconhecimento de um direito que transcende ao direito positivo e a ele se impõe. A inflação legislativa[44], proliferação de leis com baixa qualidade, desvaloriza o direito positivo na media em que estas leis revelam imprecisão e obscuridade. A desconfiança do povo na atuação de seus representantes legislativos, não raros envolvidos em escândalos de corrupção, e o despreparo jurídico que revela a má qualidade das leis, “esvazia a fórmula rousseauniana da lei, expressão da vontade geral.”[45]

Alguns países deram um passo adiante e passaram a reconhecer a existência de um direito suprapositivo, como é o caso da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, de 1949, que em seu art. 20, alínea 3, reconheceu a existência de um direito distinto da lei, ao afirmar que o Poder Legislativo estaria subordinado à ordem constitucional:

Artigo 20 [...]

(3) O Poder Legislativo está subordinado à ordem constitucional; os Poderes Executivo e Judiciário obedecem à lei e ao Direito.[46]

Em consonância com seu texto constitucional, a Corte Constitucional alemã reconhece em seus julgados a existência de um direito suprapositivo, a exemplo da decisão que ficou assim ementada: “A Corte Constitucional federal reconhece a existência de um direito suprapositivo que se impõe ao próprio constituinte e é competente para apreciar a conformidade de uma regra escrita em relação a esse direito”[47]. Em outro caso mais recente, aquela corte manifestou-se no sentido de que “o constituinte não pode violar os postulados fundamentais da justiça.”[48]

Em obra referencial sobre o assunto, intitulada Normas Constitucionais Inconstitucionais?, o jurista alemão Otto Bachoff revela que diversas cortes constitucionais de Estados federados alemães admitem a inconstitucionalidade de norma constitucional em face da violação de direito suprapositivo.[49] Por lá desenvolveu-se a tese de que “o direito materialmente constitucional sempre prevalece sobre o direito apenas formalmente constitucional.”[50]

O mesmo posicionamento foi adotado pelo Conselho Constitucional francês na vigência da Constituição de 1958. Em seu preâmbulo, a Constituição afirma que:

El pueblo francés proclama solemnemente su adhesión a los derechos humanos y a los principios de la soberanía nacional tal y como fueron definidos por la Declaración de 1789, confirmada y completada por el Preámbulo de la Constitución de 1946, así como a los derechos y deberes definidos en la Carta del Medio Ambiente de 2003. En virtud de estos principios y del de la libre determinación de los pueblos, la República ofrece a los Territorios de Ultramar que manifiesten la voluntad de adherirse a ella nuevas instituciones fundadas en el ideal común de libertad, igualdad y fraternidad y concebidas para favorecer su evolución democrática.[51]

Como se observa, ao reafirmar solenemente os direitos e as liberdades do homem consagrados pela Declaração de Direitos de 1789 e os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República, a Constituição francesa reconhece a força cogente dos direitos fundamentais, tendo-os como integrantes da Constituição material, o que faz com que o controle da constitucionalidade naquele país compreenda o exame de adequação das leis propostas aos valores consagrados no preâmbulo, e não somente às regras dispostas no corpo do texto constitucional. Para permitir uma interpretação restritiva destes direitos suprapositivos, o Conselho Constitucional criou a ideia de um “bloc de constitutionnalité”, sendo seguido por outros países, como a Espanha e seu “bloque de constitucionalidad”.[52]

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Não obstante o reconhecimento de alguns países à existência deste direito suprapositivo, a grande indagação que inquieta os defensores da existência de limites à atuação do poder constituinte originário diz respeito à identificação desses direitos sem que seja necessário recorrer às lições jusnaturalistas de São Tomás de Aquino ou a um fundamento puramente sociológico.

  Alguns observam que, a ideia de um direito suprapositivo ou supralegal, verdadeiro limite do poder constituinte originário, se caracterizaria apenas como imperativos de ordem moral ou política.

De uma forma ou de outra, a hesitação doutrinária ao reconhecimento da existência de um direito suprapositivo tem um motivo claro: a insegurança jurídica, uma vez que a conduta lícita de um determinado sujeito, por assim reconhecer a lei, poderia ser tida como ilícita pelo direito suprapositivo.

Contudo, negar a existência de um conjunto mínimo de direitos inatos à própria condição humana é rejeitar o fato de que a imensa maioria das pessoas prefere viver a não viver, inclusive, desejam um tipo de vida mais rica e completa do que aquelas que lhe dariam uma mera sobrevivência física[53].

Os direitos humanos como normas suprapositivas que ensejam a conformação das Constituições a seu conteúdo nada mais é do que a consagração da ideia de que, se por um lado não existiria Estado sem a Constituição, por isso a sua anterioridade e independência, por outro, não haveria Constituição, e nem mesmo necessidade de uma organização social, se não existissem as próprias pessoas humanas, sendo, por isso mesmo, fundamental que o próprio Direito lhes assegure existência digna.

A enorme resistência ao reconhecimento destes limites materiais impostos ao poder constituinte originário se dá, em grande parte, em razão de um argumento positivista: se os direitos humanos são regras suprapositivas de Direito, a quem incumbiria aplicá-los e fiscalizá-los? E mais: qual seria a consequência do descumprimento destes Direitos, tendo em vista que, por se tratar de normas não positivadas, não contém sanções específicas?

A resposta parece vir de uma interpretação jurídico-sociológica que se pode fazer dos fenômenos políticos e sociais contemporâneos. Com a integração econômico-social de países em blocos continentais, a uniformização do Direito interno pelo Direito Internacional será um exigência para que possa haver coexistência harmônica da nação no grupo a que pretenda aderir. Assim, aquele que descumprir essa exigência, seja porque não previu em seu texto constitucional a garantia aos direitos humanos, quer porque, tendo garantido-os, não lhes dá efetividade ou respeito, além de ter seu ingresso no bloco internacional vetado pelos demais países, ainda deverá suportar as dificuldades várias que o isolamento econômico lhe trará.

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Sobre o autor
Fernando Antônio Jambo Muniz Falcão

advogado em Maceió (AL), professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FALCÃO, Fernando Antônio Jambo Muniz. Limites do poder constituinte originário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3876, 10 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26667. Acesso em: 29 mar. 2024.

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