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Morte e Vida Severina. Vida a Severina! Um estudo de caso à luz dos Direitos Humanos

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Agenda 27/02/2014 às 17:48

Severina, jovem que fora torturada pelo pai, é levada a Tribunal do Júri em razão de sua morte.

Resumo: O objetivo da referida monografia é abordar a história da tortura e as consequência desse crime, considerando seu transcorrer no tempo e as formas como já foi permitido e aceito no meio social chegando à fase de sua criminalização. Em que pese ser proibido, esse crime é utilizado tanto pelo Estado como pelos particulares em situações inimagináveis como, por exemplo, em ambiente doméstico. Esse trajeto histórico é importante para demonstrar que a utilização desse instrumento de horror para a extração de confissão, de prova, de informação, ou ainda de violências sexuais desmedidas; a fim de satisfazer os interesses do agente-violador, apenas demonstram o quão aviltante é o ser humano para com seu próximo, mesmo que esse próximo seja um pai para com a filha. No que se refere a sua legislação em âmbito internacional, o grande marco histórico ocorre com o advento das duas Grandes Guerras Mundiais e a confirmação de que a humanidade poderia ser dizimada com técnicas aprimoradas desse delito, conforme ocorrido na Alemanha nazista e as sequelas que as bombas atômicas lançadas sobre comunidade das duas cidades japonesas. Fazendo surgir um verdadeiro sistema jurídico de proteção aos direitos humanos voltados ao princípio da dignidade humana, vetor que conduzirá a partir daí o ordenamento jurídico a nível global. Por fim, foi realizado um estudo de caso no qual foi realizada uma ponte entre o crime de tortura e as violências sexuais que uma mulher sofreu por vários longos anos de sua vida, em seu ambiente familiar, perfazendo um caso de incesto. Este caso apresenta um desenrolar jurídico nem sempre satisfatório, com consequências dramáticas, mas com um desfecho final emocionante, modificando a sua trajetória.

Palavras-chave:Tortura. Estupro. Dignidade da pessoa humana.

Sumário: 1  INTRODUÇÃO. 2  DA TORTURA. 2.1  A Questão Histórica da Tortura. 2.1.1 Fase Privada da Tortura. 2.1.2 Fase Institucionalizada da Tortura. 2.1.3 Fase Criminalizada da Tortura. 2.1.4 A “Industrialização” da Tortura nos Séculos XX e XXI. 2.1.5 Tortura no Brasil. 2.2  Conceito. 3  INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS E NACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. 3.1  A Organização das Nações Unidas - ONU. 3.1.1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos. 3.1.2 O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. 3.1.3 O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. 3.1.4 A Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes. 3.2  A Organização dos Estados Americanos - OEA. 3.2.1 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 3.2.2 A Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.3.2.3 A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher.. 3.3 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 3.3.1  A Lei do Crime de Tortura n. 9455/1997. 4  O ESTUDO DE CASO. 4.1  Uma Justiça Seletiva. 4.2  O Caminho Percorrido pelo Ministério Público. 4.3  A Mobilização Social e o Pedido de Desaforamento. 4.4O Desfecho da Vida de Severina. 5  CONCLUSÕES. REFERÊNCIAS

 

“Quando perdermos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra os outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados”.

Wladimir Herzog


 1 INTRODUÇÃO

 Inicialmente será apresentada uma breve digressão histórica da tortura durante a construção da humanidade desde seus primórdios, bem como quais foram suas motivações e legitimidade. Destarte, tal procedimento fora utilizado de várias maneiras e com finalidades distintas, sempre de forma a aviltar o ser humano com a utilização do corpo e alma da vítima, a fim de extrair confissões e provas, no intuito de subjulgar e punir aquele que estivesse sob o poder do mais forte.

 Os dois conflitos bélicos de ordem mundial, ocorridos no século XX, foram por demais violentos principalmente em relação ao segundo que fora encerrado com o lançamento sobre a população civil de duas cidades japonesas de armas atômicas de poder ofensivo nunca antes imaginado.

 As imagens das vítimas inocentes desses conflitos calaram no espírito humano, no qual passou a entender que a violência perpetrada no mesmo, por seu semelhante, independentemente em que local esteja, alcançará a todos, pois caracterizar-se como crime de lesa-humanidade.

 Ainda na segunda metade do século XX, vários regimes totalitaristas fizeram ressurgir desmedidamente o expediente da tortura nos porões das apoiadas ditaduras na America Latina, para manterem-se no poder. Logo na entrada do século XXI, pode-se observar que os atentados de 11 de setembro de 2001, ocorridos nos Estados Unidos, legitimaram um regime de exceção, naquele país, possibilitando prisões arbitrárias e campo como o de Guantánamo.

 Em seguida e como consequência desses fatos, será feita uma análise da legislação que promoveu a criação dos primeiros instrumentos jurídicos utilizados para identificar, reconhecer, conceituar e regrar o que vem a ser direitos humanos, assim como os pensamentos dos filósofos e doutrinadores na defesa e efetividade da dignidade humana, sendo o período do último pós-guerra marco temporal, no qual fora idealizado um verdadeiro sistema internacional de proteção a tais direitos, sempre buscando os Estados identificar e ampliar direitos e garantias fundamentais.

 O supracitado sistema busca assegurar o reconhecimento ao direito de ter direitos e poder reclamá-los sem violação ao princípio da soberania estatal. Os reflexos deste pensamento de garantias do ser humano em face ao Estado podem ser observados, em nosso país, pela promulgação da Constituição de 1988, que teve como princípio vetor a dignidade da pessoa humana.

 Na esfera infraconstitucional, a Lei de Tortura foi promulgada para especificar tais delitos e penalizar seus agentes, sejam eles na esfera pública ou privada.

 Assim, este trabalho tem por objetivo apresentar o conceito, a análise e as consequências do crime de tortura, desde os meandros de sua ocorrência até a maneira como ainda é utilizada nos dias atuais. Pois embora comumente alardeado por ser praticado pelo Estado, em suas modernas masmorras, como delegacias e presídios, é também utilizado por particulares, em situações em que aquele normalmente não alcança, por ser a princípio, ambiente inviolável e sagrado, como lares.

 Ademais, para demonstrar, concretamente, que a tortura pode ser praticada por qualquer pessoa, é realizado um estudo de caso ocorrido no Agreste de Pernambuco, em um ambiente familiar, tendo como autor e vítima, pai e filha, respectivamente. O delito se perpetuou por 28 anos, através de estupros, lesões corporais, morais e psíquicas, inclusive alastrando-se sobre outras vítimas, quais sejam os filhos desse incesto.

 Ao final de todo esse martírio, a vítima, já resignada à sua sina, modificou sua trajetória ao cometer um ato de amor a uma filha comum, que estaria em vias de se transformar em mais uma vítima de seu algoz. Do inquérito policial até o julgamento, foi sendo verificada a condição real da “parricida”. A história de Severina, assim como tantas outras, além do desamparo em que viveu e o que a motivou a praticar o delito.

 Analisamos o papel de todas as autoridades envolvidas no presente caso, desde a Polícia Judiciária até o Júri, sem nos eximir de falar no papel desempenhado pela sociedade, do seu posicionamento diante do crime. Por fim, esclareceremos as circunstâncias que justificaram os atos praticados pela real vítima do fato. Afinal, esse delito quando praticado contra um ser humano deve indignar a todos, além de fazer buscar meios para que não se repita.

 Utilizamos o método hipotético dedutivo para adentrar no mundo dos institutos jurídicos, através de uma ação argumentativa, fazendo uso da contradição entre a doutrina e a norma jurídica, na tentativa de apresentar uma reflexão sobre o tema. Essa análise só foi possível através da pesquisa bibliográfica realizada.

 Será proporcionado pelo presente trabalho um enfoque mais acentuado ao quesito: violação da dignidade da pessoa humana nos âmbitos da Justiça e da família.

 Diante de todo o exposto questiona-se o seguinte: Severina esteve sob tortura, em seu ambiente familiar, ao ser acusada como autora intelectual da morte do seu pai-agressor?


2 DA TORTURA

2.1 A QUESTÃO HISTÓRICA DA TORTURA

 A agressividade humana se materializa através de várias maneiras, mas é na tortura que ela alcança o seu ápice e faz aflorar a verdadeira inferioridade da raça humana, tida como um ser “racional” e, portanto, “evoluída”.

 É exatamente essa racionalidade que distingue o homem dos outros animais, e, paradoxalmente, só o animal homem comina tamanha dor em seu semelhante, assim, como elucida Borges (2004, p. 16): “Seres inferiores atacam e ferem a caça para devorá-las em seguida. O homem, no entanto, movido pelo espírito de destruição é capaz de infligir dores, movido por simples prazer, por vingança e até por sentimentos mais inferiores”.

 Desse relato se extrai que o homem na medida em que “evolui” não deixa de utilizar a tortura como mecanismo de dominação, humilhação, degradação a outrem no interesse próprio ou alheio, aprimorando técnicas e fazendo-as de uma forma a não deixar vestígios.

 O tempo passa, as fases sociopolíticas e econômicas se alteram no mundo e aquele, continua a utilizar esse instrumento a fim de fazer valer seu poder. Conseguiu no campo da tecnologia, desde a primeira Revolução Industrial, uma evolução incomensurável, mas em contrapartida, seu grande desafio é manter-se humano dentro dessas conquistas.

2.1.1 FASE PRIVADA DA TORTURA

É lamentável reconhecer que o instituto da tortura converge com o processo de civilização humana. A utilização do corpo humano como forma de extração de depoimentos, de provas, de punição; enfim, de pura sevícia e com a finalidade principal de confissão do suposto crime, é prática reiterada que vai de tempos mais remotos até este exato minuto em qualquer parte do mundo.

A vítima de tortura era e continua a ser considerada como “coisa”, só que por motivos e finalidades diferentes, conforme a história se apresenta, assevera Borges (2004):

A origem do suplício adivinha do costume ou direito que tinham os senhores de torturar seus escravos, a quem chamavam andrópoda (gado de pés humanos) em contra-posição [sic] a tetrápoda (gado de quatro patas) (BORGES, 2004, p.45).

Apreende-se, deste pequeno relato, que a igualdade de todos perante a lei humana e até mesmo em relação à interpretação da lei divina não ocorreram num mesmo momento nem de uma só vez. Ainda hoje as desigualdades existem e são quase intransponíveis, sob o ponto de vista socioeconômico.

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A tortura como forma de prova e punição era praticada pelos particulares, na Grécia Antiga, ainda de forma arcaica evoluindo para um sistema complexo, disseminada no âmbito da comunidade para corroborar a diferença entre os cidadãos e os escravos, ou ainda, os estrangeiros denominados metecos, segundo nos testemunha Peters (1989):

Qualquer cidadão, diante da suspeita de estar frente ao autor de um delito ou de alguém que pudesse comprometer a democracia, podia fazer-se seu acusador, mesmo porque lhe seria atribuída parte dos bens confiscados ao suspeito, afinal considerado culpado e assim condenado, ficando o resto para remunerar os juízes (BORGES, 1989, p.43).

Seu início ocorre de forma primitiva na Grécia, só acontecendo a sua institucionalização um tempo depois, nos direitos penais gregos e romanos.

No caso da Grécia, as vítimas, na época, eram normalmente aquelas pessoas que se encontravam em condição desfavorável economicamente, e sem privilégios, como os escravos, os negociantes e os estrangeiros, nos quais não eram considerados como cidadãos da polis. Conforme palavras de Peters (1989, p. 21): “O depoimento dessas pessoas igualava-se aos dos cidadãos por meio da coerção física”.

Assim, só através da confissão extraída com a prática da tortura que as vítimas eram consideradas e passavam a ser respeitadas como pessoa detentora de direitos na seara penal.

Em Roma, não há diferença quanto aos meios de se obter a confissão do acusado no ilícito praticado. Todavia, apenas se enquadravam os escravos como réus, nos crimes de lesa-majestade, bem como nos delitos particulares, conforme elucida Teixeira (2004).

Em que pese todo o suplício, a sua prática não ocorria de forma indiscriminada, pois, seu algoz só poderia utilizar o uso dos tormentos em crimes considerados capitais e atrozes.

Com o advento do Império Romano, ocorreu uma divisão social entre os honestiones (classe governante) e humiliores (o restante do povo, os que se ocupavam dos negócios menos importantes, os pobres e os desarraigados); os homens que não eram escravos, só podiam ser torturados em casos de crimes de traição, ou ainda, a critério do Imperador, segundo Borges (2004).

2.1.2 FASE INSTITUCIONALIZADA DA TORTURA

Na Europa, entre os séculos VI e XII, praticamente não existia o direito público, apenas o privado. As partes, vítima e acusado, manifestavam-se através de juramentos tanto para a iniciativa da ação quanto para a defesa.

Desta forma, a confissão era a prova mais pujante daquele sistema precário, que podia levar o acusado à absolvição ou ao arquivamento da acusação. Se a acusação fosse contra algum humiliores, este era submetido aos ordálios, segundo o qual apenas o poder divino é que poderia salvá-lo, elucida Borges (2004).

Enquanto imperou o sistema dos ordálios, tudo se resolvia com mais simplicidade, porque a decisão era posta nas mãos de Deus. Depois, no entanto, era mister ingressar-se no íntimo das pessoas para buscar a verdade. [...] avultou-se a necessidade do emprego da tortura primeiro no Direito comum, depois também no Direito eclesiástico (BORGES, 2004, p.61, grifos nossos).

Entretanto, o ápice da tortura ainda estava por vir, dar-se-ia na Idade Média, com o advento do sistema inquisitivo, por parte do Direito canônico (autoridades religiosas) e o Direito secular (autoridade pública), regidos pela Europa cristã, quando institucionalizam a tortura, anui Borges (2004).

Alcança neste momento, contornos cruéis e meios insidiosos, com regras e registros reduzidos a termo, denominado “Manual dos Inquisidores” (um roteiro de como se fazer uma tortura), conforme previsto em normas criadas pela Igreja com a finalidade de punir os eclesiásticos e leigos, sem qualquer respeito ao princípio da dignidade humana.

[...] os crimes que interessavam à Inquisição eram os que, direta ou indiretamente, pareciam atentar à fé e aos costumes, aqui incluindo não só as heresias, que nasciam no seio da Igreja, como o judaísmo, mais tarde a heresia protestante, a feitiçaria, a usura, a blasfêmia, a bigamia e outros (TEIXEIRA, 2004, p.13).

Percebe-se que nesta época, não havia separação entre crime e pecado, a questão se confundia e, desse modo, era considerado como uma coisa só. E o acusado, no caso mais comum, o clérigo, obtinha como sanção a penitência, segundo a qual “é o arrependimento ou remorso por erro que se cometeu, esp. por haver ofendido os mandamentos divinos”, dicionário Houaiss (2012). Nasce com isso, o instituto da pena que se conhece nos dias atuais.

Importante salientar que a penitência só acontecia após a confissão ser extraída de forma draconiana, já que fora considerada como rainha das provas. E assim, a tortura mesmo que não produzisse a verdade dos fatos, haveria de “limpar” os pecados do acusado, salienta Teixeira (2004).

2.1.3 FASE DE CRIMINALIZAÇÃO DA TORTURA

Antes de eclodir a Revolução Francesa em 1789, o governo monárquico foi terreno fértil, produzindo as maiores barbáries no ser humano, como forma não só de extrair a “verdade” do ilícito, que fora supostamente cometido, mas principalmente para retirar do meio social aquele que fosse considerado mau exemplo para a sociedade, como anui Teixeira (2004).

Os Estados apresentavam-se como despóticos e a tortura, já era utilizada dentro do processo penal, passa agora a ser praticada de forma secreta e com intuito de manter a segurança do Estado. Se antes da obscuridade, o corpo do suplicado era objeto dos piores maus-tratos, imagine agora essa prática sendo exercida de forma sigilosa?

Conforme nos ensinou o grande filósofo Hobbes (1651), a origem da pena e o direito de punir advêm da cessão que os homens fizeram de parte de suas liberdades para que pudessem desfrutar entre os concidadãos, aquela parcela que excedeu, com segurança. E essa parcela que sobejou é o que legitima a sociedade, de forma fundamentada e lícita, punir o agente causador do delito. Mas, conforme nos alerta o filósofo do Período Iluminista, Beccaria (2004, p.19), que “Todo exercício do poder que deste fundamento se afastar constitui abuso e não justiça”.

Destarte, ao analisar essas palavras, apreende-se que, de certa forma, já é uma “penalidade” para o ser humano abdicar de parte de sua liberdade em troca dessa suposta segurança. E, ainda ser vítima de abusos por aquele ente que, em tese, deveria protegê-lo, é o que se pode tipificar como um apoderamento ilícito dessa autoridade.

Diante desse período, ocorrido no século XVIII, esse filósofo visionário se destacou por apresentar uma obra que é considerada até os dias atuais, um marco histórico. Seja por sua grandiosidade ou ineditismo, ou ainda, pela coragem para não ser considerado um herege, o fato é que o Marquês de Beccaria conseguiu soprar uma brisa humanista por toda a Europa.

Fez com que os representantes dos Estados repensassem seus sistemas penais, bem como refletissem sobre a finalidade da pena e o procedimento do processo criminal daquela época. Conseguiu resumir em sua obra Dos Delitos e Das Penas[1], os abusos cometidos em face do ser humano, bem como a forma cruel, desproporcional e injusta como as penas eram aplicadas.

Destacou o Título XII para falar só sobre tortura, segundo qual já considerava uma barbárie humana, sem finalidade alguma, conforme transcreve em suas palavras: “O que importa é que nenhum crime conhecido fique sem punição”, elenca Beccaria (2007, p.37), e, para melhor expressar o pensamento desse filósofo:

Diria ainda que é monstruoso e absurdo exigir que um homem acuse-se a si mesmo, e procurar fazer nascer a verdade por meio dos tormentos, como se essa verdade estivesse nos músculos e nas fibras do infeliz! (BECCARIA, 2007, p.38).

Percebe-se, por conseguinte, o quão aviltante, desnecessária e sem finalidades é a tortura tanto para o ser humano quanto para o sistema penal, ou ainda, para a segurança da sociedade. Pois o que realmente importa é que os crimes não fiquem impunes, mas, em contrapartida, a punição precisa ser na medida certa ao tipo penal cometido, para que se torne pedagógica ao meio social.

Após esse impacto, há uma reação social contrária à tortura. O ideal iluminista influencia os juristas e legisladores da época conseguindo aos poucos, abolir, pelo menos oficialmente, a sua prática.

Vários países, gradativamente, foram extraindo de seus códigos esse tipo penal e alguns realmente conseguiram suspender sua aplicação. A Revolução Liberal ocorrida em 1820 em Portugal consegue extinguir o Tribunal da Inquisição, abolindo, oficialmente, a tortura, segundo proclama Borges (2004).

2.1.4 A “INDUSTRIALIZAÇÃO” DA TORTURA NOS SÉCULOS XX E XXI

O ser humano é capaz de muitas hostilidades que se traduzem em violências desmedidas, atrozes e, na maioria das vezes, voraz, com finalidades quase sempre sem sentido ou, quando o tem, são, no mínimo, insignificantes, dentro do contexto da dignidade humana.

Aquela essência do ser que é humano, que deveria ser sempre preservada e enaltecida é vergonhosamente aviltada por questões espúrias da mentalidade capitalista em relação ao que real e verdadeiramente importa na vida do homem.

Assim, após as duas Grandes Guerras mundiais ocorrera um retrocesso quanto à utilização e finalidade da tortura que fez o mundo filosófico, jurídico e social ficar em estado de alerta, principalmente em dois casos específicos produzidos em massa, quais sejam: as atrocidades cometidas pelos franceses aos argelinos e a barbárie nazista contra os judeus, como assinala Borges (2004).

Conforme será demonstrado neste trabalho, esses fatos não foram produzidos de forma isolada na França ou Alemanha. Outros Estados, como por exemplo, os Estados Unidos também apresentaram sua parcela de desumanidade ao atacarem com bombas atômicas, ou seja, armas nucleares poderosíssimas, as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em agosto 1945.

Quanto ao exemplo da França, o ano era 1954 e, na Argélia francesa, começara uma revolta entre os argelinos para adquirirem sua independência perante a força do império Francês, como nos esclarece Borges (2004), ao relatar as denúncias do diretor do órgão da imprensa liberal:

[...] a França se viu sacudida pelas denúncias de Henri Alleg, feitas em seu livro La Torture, em que o diretor Alger Republican, órgão da imprensa liberal, relatara contra as atrocidades cometidas pela nobre e civilizada nação francesa contra os movimentos argelinos de libertação, com a prática de tortura contra revolucionários árabes e, inclusive, contra o próprio jornalista (BORGES, 2004, p.91).

Esse período nefasto da história francesa marcou de tal forma os intelectuais da época, que intitular como apenas um retrocesso são muito pouco, pois se percebe uma total degradação consciente e intencional do homem para com o homem, independentemente de ser o colonizador contra o colonizado. No entanto a explicação para esse retorno foi condensada em três fenômenos sociais indicados por Mellor[2] (apud Borges 2004):

[...] o aparecimento do Estado totalitário e as condições modernas de guerra; [...] o asianismo, que define como política estatal a exaltação do papel do espião, não colocando freios ao tratamento concedido a prisioneiro de guerra (MELLOR apud BORGES, 2004, p. 92).

O advento dos Estados modernos trouxe esses fenômenos para acurar as informações que lhe interessassem, e também, que fossem elas revestidas de segurança e rapidez, fatos que só poderiam ser conseguidos se extraídos dos supostos espiões através da tortura.

Na visão desses estados totalitários era necessária a criação da denominada “inteligência político-militar”, para se especializar nas técnicas de espionagem, contraespionagem e interrogatório, arremata o mesmo autor. Esse era o discurso utilizado pela polícia política, de modo a torturar supostos suspeitos e rotulá-los como inimigos do Estado.

Quanto ao exemplo da Alemanha nazista, a investidura de seu líder através do Partido Nacional-Socialista, Adolf Hitler, em 1932 aconteceu em plena vigência da Constituição de Weimar promulgada em 1919.

Ocorre que, os legisladores constitucionais derivados da época, imbuídos no discurso da figura daquele ditador, que utilizara a Teoria Decisionista, criada pelo jurista e filósofo político alemão do século XIX Carl Schmitt, com intuito de fundamentar o artigo 48 daquela Carta[3]. E, assim aprovar e amparar o que viria a ser base da ideologia nazista como um verdadeiro “estado de exceção”, conforme anui Silva (2007, p.37): “Para decifrar o caráter sócio-intervencionista da Constituição de Weimar, a teoria deci­sionista procura entender o cunho políti­co do mundo jurídico”.

Destarte, ocorre um estado de exceção quando acontece um suposto conflito sociopolítico e simultaneamente é identificado pelo representante do Poder Executivo um “vazio jurídico” para dirimir tal situação. Ou ainda, dentro do interesse do mesmo governante quando o mesmo pode ser “criado” para justificar a promulgação de normas que servirão de base para seu poder arbitrário.

Percebe-se, um verdadeiro retrocesso quanto à separação dos Poderes, além de um excesso de poder delegado ao Chefe do Executivo que poderá criar normas que terão por finalidade supostamente restabelecer a ordem social ao status quo ante.

Essa decisão política é que serve de pressuposto para a criação dessas normas e a urgência da solução desse conflito justificam tal procedimento.

Portanto, a “exceção” poderia ser instituída a qualquer momento, a depender da necessidade do Estado e da decisão do governante, no qual seria apresentada como uma solução para a situação supostamente instaurada.

Quando a intenção do governante é pautada pela ética, tal procedimento poderá ser normalmente validado pelo Estado Democrático de Direito, já que se caracteriza por um prazo limitado de tempo.

Mas quando ocorre o contrário, configura-se como um terreno fértil para a criação de várias normas com finalidades de ditadura pura, que foi o que aconteceu naquele Estado com a figura de Hitler. Pois se tornaram vigentes sob o fundamento do regime nazista para defender a “segurança e ordem públicas” daquele Estado contra o povo judeu que supostamente era considerado um inimigo natural e, assim, poder justificar as atrocidades por ele cometidas, conforme assevera Silva (2007, p.39): “A ‘exceção’ configura um signo, pressuposto do decisionismo, critério que a Constituição de Weimar trazia prescrito em seu art. 48”.

Com esse discurso, o ditador nazista cometeu as maiores atrocidades junto ao povo judeu, criando tribunais especiais, tipificando crimes políticos e intensificando métodos de tortura nunca antes utilizados.

Após a criação e julgamento desses crimes pelo Tribunal de Nuremberg, uma legião de tratados foram criados a fim de constituir um verdadeiro sistema jurídico internacional contra a prática de crimes que lesassem a humanidade. Entretanto, esse aparato criado ainda não é suficiente para extirpar esse mal dos Estados signatários, como será apontado por essa pesquisa, logo abaixo.

Outro momento aterrador para a humanidade foram os atentados terroristas ocorridos em Nova York e Washington, em 11 de setembro de 2001. Houve, conforme análise de vários especialistas, um retrocesso significativo para o momento em que a humanidade vivenciava.

Apesar de não ser novidade para o mundo, o exercício clandestino da tortura, a ocorrência desses eventos conseguiu adeptos até então convictos que sua prática deveria ser abolida. Debates ocorreram em todo o mundo sobre a sua necessidade e consequente eficácia, a fim de ser utilizada como forma de extração de informações ou denúncias dos supostos suspeitos de cometer tais crimes, como esclarece Oliveira (2009):

Nos Estados Unidos, berço e por momentos refúgio da democracia do mundo, espíritos sérios, em seguida aos ataques às “torres gêmeas”, debatem publicamente sobre sua conveniência para arrancar informações de terroristas (OLIVEIRA, 2009, p.10).

Esses acontecimentos influenciaram sobremaneira à sociedade que volta a defender, conforme abordado acima, a prática de tortura utilizando uma justificação impulsionada pelo impacto cruel e desolador em que se prostrou aquele povo, no que se refere às perdas de tantas e tantas vidas inocentes.

Contudo, a idealização do amparo legal da prisão de Guantánamo, base militar americana localizada em Cuba é muito similar ao que ocorreu na Alemanha nazista, segundo reflexão de Freitas:

O governo americano, sob a escusa de combater o terrorismo, gradativamente, desde os atentados de 11 de setembro de 2001, atribuiu poderes supremos ao Poder Executivo que passou a suspender direitos fundamentais de qualquer pessoa que tenha envolvimento direto ou indireto com hostilidades que atentem contra a integridade da nação norte-americana.

Tal atitude implica na legitimação de espaços de exceção, criando uma “guerra preventiva”, sem a ameaça de ataque iminente, e a criação da figura do “inimigo absoluto” encarnado na figura do terrorismo teológico-político (FREITAS, 2012, p.09).

Pelo que se pode extrair do texto, a legitimidade do estado de exceção ocorreu com um simples ato do então representante do Poder Executivo daquela Nação, que, achando pouco, ampliou seu poder de destruição ao ser ratificado pelo Senado. Assim, continua o mesmo doutrinador:

[...] Bush, como resposta aos atentados de 11 de setembro, promulgou um decreto que ficou conhecido como o “military order”, onde autoriza detenções por tempo indeterminado [...]. E, continua a [...] “Guerra ao Terror” ultrapassou os limites territoriais americanos e tornou-se uma questão global, pois, [...] com a promulgação do famigerado USA Patriot Act, passou-se a permitir a manutenção de estrangeiros suspeitos em atividades que ponham em perigo a segurança nacional dos Estados Unidos (FREITAS, 2012, p.12, grifos do autor).

E, numa análise mais profunda, vai além, ao fazer uma comparação com os campos de concentração nazista perfilhando uma série de barbáries em plena vigência no século XXI:

A fim de coibir qualquer obstáculo na luta contra o “terror”, a baía de Guantánamo tornou-se um campo de concentração, um local onde as normas constitucionais e suas garantias fundamentais não são aplicadas, assemelhando-se consideravelmente com os campos de concentração nazistas (FREITAS, 2012, p.09).

A comunidade internacional que defende os Direitos Humanos deve estar atenta para que essa violência não gere ou aprofunde a intolerância já tão arraigada no povo americano, que se autointitula uma nação acima das outras nações. E ademais, conforme alerta Freitas (2012, p. 20): “O estado de exceção é a morte da democracia, os norte-americanos agindo por um impulso e por um medo incessante de atos terroristas, colocam em evidência todas as premissas constitucionais a que tanto se orgulham”.

Importante se faz crer que o exercício da tolerância é de extrema importância para situações como as elencadas acima acabem e as discriminações tornem-se mínimas no que se refere à raça, cor, etnia, religião ou qualquer outra forma de diferença que exista entre as culturas.

Dever-se-á ser enaltecido o igual direito de viver e conviver dentro da comunidade humana de forma pacífica, e o respeito a essas diferenças deverá ocorrer sem que haja necessidade de subjulgar qualquer cultura ou religião em relação a qualquer outra, seja ela islâmica, judaica, católica, protestante; enfim, deve-se ser exercitada a denominada “tolerância universal”, explica Bobbio (2004):

Se somos iguais, entra em jogo o princípio da reciprocidade, sobre o qual se fundam todas as transações, todos os compromissos, todos os acordos, que estão na base de qualquer convivência pacifica [...]; e completa: [...] a tolerância, nesse caso, é o efeito de uma troca, de um modus vivendi, de um do ut des, sob a égide do ‘se tu me toleras, eu te tolero’ (BOBBIO, 2004, p. 189).

Há no que se pode extrair da história recente, uma verdadeira “industrialização” da tortura por parte dos Estados, em nome da Segurança Nacional. O processo sequenciado, maquinado e aperfeiçoado, ganha contornos aprimorados, só vistos em uma indústria produtora de desumanidades, conforme produzido nos campos de concentração nazista na antiga Alemanha, e, hoje, reproduzidos nos recônditos da baía de Guantánamo.

Contudo, aqui no Brasil, a ocorrência da tortura em suas masmorras atuais como delegacias, quartéis, locais públicos não tão iluminados e lares, como será apresentado no estudo de caso logo abaixo, se não tem a perfeição e adestramento daqueles acima, ocorre porque as finalidades são distintas. Mas a prática é fato e os números são assustadores. E, ao final, o grande desafio é o homem permanecer, como dito no início, humano.

2.1.5 A TORTURA NO BRASIL

O instituto da tortura chegou ao Brasil através do sistema penal Português, similar ao que ocorria no Ancien Régime, segundo qual servia para garantir a verdade dos fatos. Os três períodos mais marcantes foram: o Código Afonsino em 1446, na sequência, as Ordenações Manuelinas em 1521 e, por fim, as Ordenações Filipinas em 1603.

Mesmo com a proclamação da Independência, o país continuou a utilizar as normas e regras das Ordenações Filipinas (1603) até a promulgação do Código Criminal em 1830, ou seja, mais de dois séculos utilizando esse procedimento aterrador.

No Título CXXXIII, do Livro V, intitulado Dos Tormentos, o legislador da época deixou à análise do magistrado, caso a caso, quando e como deveria o acusado ser exposto ao suplício. Dependia, aquele, do montante e qualidade das provas apresentadas em juízo e, ainda, de forma gradual, analisava os indícios que permeavam o acusado. Podendo, inclusive, repetir o tormento, caso julgasse o resultado da primeira “sessão” insuficiente para satisfazer seu convencimento, conforme anui Teixeira (2004).

Oficialmente, a abolição da tortura, açoites e demais penas cruéis, só ocorreram com a primeira Constituição Política do Império do Brasil em 1824, na qual trazia em seu artigo 179 o destaque das garantias das inviolabilidades dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros.

Todavia, essa suposta extinção ocorre apenas para os cidadãos, já que os escravos não eram assim considerados, e, além disso, o artigo 60[4] do antigo Código Criminal de 1830 tinha penas previstas com açoites públicos, caso tentassem fugir ou roubassem, por exemplo. Essa discrepância é apontada de forma brilhante, por Silva Júnior[5] (apud TEIXEIRA, 2004):

Para todos os efeitos civis – contratos, herança, etc – o escravo não era considerado pessoa, sujeito de direitos. No entanto, para o direito penal, melhor dizendo, para efeito da persecução penal, o escravo era considerado responsável humano, isso caso figurasse como réu [...] Numa palavra: sendo réu era pessoa, sendo vítima, coisa (SILVA JÚNIOR apud TEIXEIRA, 2004, p. 24).

Essa contradição desumana permaneceu ainda por longos anos, apesar das supostas qualidades liberal que existiam tanto da Constituição Imperial como do Código Criminal de 1830. Essa é uma das características mais fortes defendidas neste trabalho, qual seja o perfil escravocrata da sociedade brasileira e o enraizamento cultural da tortura no Brasil até os dias atuais.

Não obstante, o espírito liberal consagra-se de vez com o advento da Proclamação da República, em 1891. Contudo, os resquícios da violência do Brasil Império ainda são percebidos principalmente nos escravos negros alforriados, nos pobres e índios, esclarece Teixeira (2004, p.28): “A República Velha, com suas elites governantes, não tolerou os movimentos de oposição e os combateu com violência”.

Observa-se que essa violência é a prática da tortura que permeará toda a história do Brasil, entre as forças opressoras e oprimidas (Estado e cidadãos), entre os ricos e os pobres, heterossexuais e homossexuais, homens e mulheres, adultos e crianças, brancos e índios; enfim, entre os concidadãos brasileiros.

Na era do então Presidente da República, o ditador Getúlio Vargas (1930-1945), período em que o mundo vivia a sua Segunda Grande Guerra, há um retrocesso mundial e a tortura volta a ser prevista em códigos e atos de forma aviltante aqui no Brasil. Foram quinze anos de autoritarismo, de uma ideologia dicotômica entre o comunismo e o socialismo.

Em 1937 ocorre à promulgação da Constituição do Estado Novo, e com ela a pena de morte foi ressuscitada. O Código Penal de 1940, por sua vez, passou a prever em seu artigo 44 a tortura como circunstância agravante genérica para qualquer crime que houvesse o emprego de violência contra a pessoa.

Com o advento da queda de Vargas, em 1945, a democracia é reinstalada, mas os suplícios para os que são mais despossuídos permanecem, relembra Teixeira (2009):

Mas os presos comuns continuam vítimas de tormentos, sendo a tortura aplicada para fins meramente punitivos, ou mesmo aquela aplicada nos interrogatórios policiais para extorquir confissões ou informações (TEIXEIRA, 2004, p.29).

Essa é uma fase que haverá uma mudança no perfil dos torturáveis, que deixará de atingir apenas os mais necessitados, para alcançar os supostos subversivos, ou seja, os então considerados inimigos do Estado.

Em 1964, ocorre o golpe militar, a questão da segurança do Estado ressurge e com ela a institucionalização da tortura nos porões dos quartéis, delegacias e locais escolhidos para tais práticas.

Métodos de tortura importados dos Estados Unidos são aqui disseminados, espalhando na sociedade um terror inimaginável até para os mais céticos, elucida Teixeira (2004, p. 30): “Pode-se dizer que a ditadura não inventou a tortura, mas exacerbou-a [...]”. Neste período quem não fosse a favor das regras impostas pelo sistema era considerado subversivo e, portanto, achava-se atentando tanto ao Estado quanto à democracia.

Com o fim da ditadura, o tão aguerrido espírito realmente democrático é reduzido a termo na Constituição Federal de 1988. O Brasil passa a ser signatário de vários tratados internacionais, dentre eles os que versam sobre direitos humanos e tortura.

Contudo, o arraigado germe da prática da tortura permanece até este exato minuto em algum recôndito deste país, podendo incorrer em quartéis, delegacias, fóruns e até em lares. Independentemente do regime se apresentar como democrático ou autoritário, do Brasil República, Império ou Colônia, o fato é que a tortura faz parte da herança cultural do seu povo por razões ainda não totalmente difundidas. É a denominada fase da Segurança Pública.

2.2 O CONCEITO DE TORTURA

A semântica do vocábulo “tortura” ocorre da união de duas expressões que originalmente advêm das palavras questio, segundo a qual além de designar o próprio processo investigatório em direito penal, assinala a corte que administrava a justiça. E a palavra tormentum, que identificava uma forma de punição, na qual era incluída a pena de morte. Assim, como anui Borges (2004, p. 53): “Quando o tormento era aplicado num interrogatório, falava-se em questio per tormenta ou questio tormentum, ou seja, uma investigação feita através de um meio outrora destinado aos escravos”.

Com o evoluir da linguagem e o estudo de sua etimologia essas expressões (questio e tormentum) se tornaram sinônimas. O jurisconsulto Ulpiano (apud Teixeira 2004), assim a denominava, em sua obra (Digesto, XLVII, X, 15, § 15)[6]:

Por quaestio [tortura] devemos entender o tormento e o sofrimento do corpo com a finalidade de obter a verdade. Portanto, nem o interrogatório em si nem as ameaças leves dizem respeito a este édito. Assim, a quaestio deve ser entendida como força e tormento, pois são estas coisas que determinam seu significado (ULPIANO apud TEIXEIRA, 2004, p.7).

A definição imprecisa do conceito de tortura, provocações e punições foram motivos de confusão entre os juristas da época. Alguns defendiam como método de prova outros como método de punição, contudo, num ponto todos concordavam:

[...] a tortura era de fato um meio, ou uma forma incidental de se obter uma confissão [...]. E ainda: [...] A literatura acerca da tortura indica-nos que os magistrados sabiam exatamente o que era a tortura e por que ela era utilizada (PETERS, 1989, p. 69).

O que se percebe é que havia uma divergência entre a teoria e a prática. Excetuando as dificuldades normais de cada cultura linguística, a conceituação da tortura, na prática, é idêntica em quase todos os Estados, porque é possível verificar e medir a brutalidade e os meios empregados para se obter tais confissões. E, também, o sadismo em seu agente ativo, embora não seja fácil prová-lo, enumera Peters (1989, p.68) “Nas fontes vernáculas e latinas os termos usados são tortura, quaestio, tormentum e, às vezes martyrium, cuestion, questione e question”.

Assim, independentemente do vocábulo utilizado em cada língua, o fato é que na prática a tortura é o ato pelo qual um ser humano pratica noutro, de forma cruel, degradante, vil, causando-lhe dor, lesões físicas e psíquicas, levando na maioria das vezes a óbito.

Sobre a autora
Ana Cláudia Diniz de Queiroga Vanderley

Advogada militando em causas que versam sobre direito de família, trabalho e consumidor. Pós-graduanda na área de Direito do Trabalho e Processual Trabalhista. técnica em contabilidade

Informações sobre o texto

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