3 INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS E NACIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS E INCRIMINAÇÃO DA TORTURA.
3.1 A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU
Um grande divisor de águas para o Direito Internacional foi a Segunda Guerra Mundial, principalmente para a normatização dos direitos humanos. A primeira vez que os limites das fronteiras entre os Estados foram ultrapassados para que esses direitos fossem respeitados dentro de princípios e regras voltadas para assegurar a dignidade humana.
Ademais, o terror e o choque produzidos com os números levantados de vítimas, de refugiados e as atrocidades perpetradas em total desconsideração ao ser humano, advindos após tais confrontos bélicos, fez surgir documentos eminentemente voltados para a preservação da humanidade.
O horror estabelecido nos regimes totalitários e o positivismo tão radicalmente produzido fez emergir quão insensível e capitalista estava à comunidade internacional, que segundo Comparato (2011, p. 226): “[...] suscitou em toda parte a consciência de que, sem o respeito aos direitos humanos, a convivência pacífica das nações tornava-se impossível”.
A Organização das Nações Unidas nasce com distinções nítidas da Liga das Nações, já que a intenção daquela foi, continua o ilustre professor (2011, p.226): “[...] colocar a guerra definitivamente fora da lei”. E, ademais, “[...] todas as nações do globo empenhadas na defesa da dignidade humana”.
Os direitos do homem têm caráter dinâmico, mutável que se constroem conforme a raça evolui, conseguindo-os através de lutas em defesa de melhores condições e liberdades, assevera Bobbio (2004). Seria uma construção ideológica de forte caráter axiológico voltado para interesses de classes políticas dominantes com claro intuito de produzir mais riquezas e, principalmente, manterem-se no poder.
Entretanto, essa retórica não é só utilizada pela classe opressora, serve também de discurso para a classe oprimida conseguir através desses embates melhores condições de vidas e consequentemente inéditas liberdades. E assim continua Bobbio: “O problema é estreitamente ligado aos da democracia e da paz”. “[...] O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem estão na base das Constituições democráticas modernas” (2004, p. 01).
De forma pontual, a construção jurídica dos direitos humanos formulados nos instrumentos é uma utopia, pois não são direitos tidos, reconhecidos e exercidos por toda a comunidade humana, critica pertinentemente, o professor Flores (2009).
Afinal, lembra-nos ele, essa construção interessa e enaltece a forma ocidental de querer relacionar-se com o resto do mundo. E esclarece que, o cerne da questão está nas fases e nos contextos socioeconômicos da imposição capitalista para satisfazer suas demandas e necessidades, e assim continuar impondo seus métodos de produção.
Em síntese, argui assim sua defesa:
A partir desse princípio de dignidade, consideramos os direitos humanos como produtos culturais, quer dizer, como convenções surgidas como reação diante dos entornos de relações que o capital veio impondo desde o século XVI até a atualidade (FLORES, 2009, p.213).
Independentemente das posições doutrinárias, criou-se uma proteção internacional voltada para os direitos humanos de forma ainda rudimentar, mas que seria o prelúdio de tantos outros instrumentos importantes, sejam eles de forma geral ou específica, para reconhecer e defender direitos voltados à comunidade humana.
3.1.1 A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM - 1948
Desde a sua criação em dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos constituiu um marco histórico para a comunidade humana. Essa universalidade, explica Bobbio (2004, p.24), de maneira elucidativa, quando assim traduz: “[...] universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens”.
Em que pese seu alcance global, outro fator importante para sua proclamação se referiu às atrocidades cometidas nos pós-guerras pelos Estados aos seus cidadãos e a possibilidade real da humanidade ser exterminada com uma simples ativação de armas nucleares.
Vale ressaltar, primeiramente, que o resultado exitoso do Tribunal de Nuremberg, criado após a Segunda Grande Guerra, com a finalidade de julgar e condenar as barbaridades perpetradas pela Alemanha nazista contra os judeus foi, ao final, de extrema importância para tipificar os crimes de lesa-humanidade. Conseguindo identificar e punir seus agentes pelo delito da tortura que ali fora praticado a título de experimentos médico-legais, além de dizimar milhões de seres humanos inocentes, sob a forma de discriminação étnica e racial.
Esse Tribunal, após condenar vários médicos sob a acusação de terem utilizados práticas contrárias ao juramento de Hipócrates, elaborou um conjunto de regras ao qual reduziram a termo num instrumento denominado Código de Nuremberg. Este código se tornou um padrão para a atual ética na medicina, principalmente no campo da pesquisa com seres humanos, em todo o mundo.
Entre algumas normas importantes, uma destaca-se por determinar que: “O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento físico ou mental desnecessários e danos” (artigo 4º do referido código).
Esse período avassalador de tantas violências e derrames de sangue fez surgir regras que abominaram as condutas realizadas junto ao povo judeu e, por conseguinte, se voltaram para proporcionar efetividade a tais direitos, a fim de que novas atrocidades como aquelas, jamais se repetissem em qualquer outra circunstância; além de princípios como igualdade, solidariedade e liberdade nos quais foram elencados no corpo da Declaração, conforme assevera Comparato:
A Declaração, retomando os ideais da Revolução Francesa, representou a manifestação histórica de que se formara, em âmbito universal, o reconhecimento dos valores supremos da igualdade, da liberdade e da fraternidade entre os homens [...] (COMPARATO, 2011, p.238).
Insta destacar, a fim de ratificar, que esse documento inicial produzido pela Assembleia Geral da ONU, volta-se para a criação de um conjunto de princípios e regras destinado à dignidade humana, dentro de um contexto histórico enfraquecido com tantos horrores e atrocidades ocorridas; fazendo a comunidade humana enxergarem que algo deveria ser feito para cessar, abolir os desmandos dos Estados totalitários, conforme continua Comparato (2011).
O pecado capital contra a dignidade humana consiste, justamente, em considerar e tratar o outro – um indivíduo, uma classe social, um povo – como um ser inferior, sob o pretexto da diferença de etnia, gênero, costumes ou fortuna patrimonial (COMPARATO, 2011, p.241).
A Organização das Nações Unidas, a partir da referida Recomendação, construiu um verdadeiro sistema internacional de direitos humanos[7], sendo alguns especificamente criados para conceituar, punir e erradicar crimes em espécie, como por exemplo, o delito de tortura.
A observância universal a tais direitos, exigida na referida Declaração e a forma pontual e clara quando reduziu e proclamou em seu artigo 3º, que: “Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” (ONU, 1948), eleva e tenta dar efetividade ao princípio da dignidade humana irradiando reconhecimento e proteção a todos os seres humanos perante as atrocidades que um Estado despótico pode causar aos seus cidadãos.
3.1.2 O PACTO INTERNACIONAL DE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS – ONU 1966
Aprovado pela Resolução 2.200 (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 1966, esse instrumento faz parte de um apropriado sistema jurídico de direitos humanos que converge para assegurar as diferenças e eliminar as desigualdades, bem como proteger os indivíduos contras as possíveis violações de seus direitos civis e políticos[8].
Tais direitos são os de primeira geração, no qual o Estado deve agir negativamente, ou seja, abster-se e proceder de forma a assegurar e proteger, esses direitos, quais sejam: direito à vida, de não ser torturado, de não ser escravizado, nem submetido servidão, direito à liberdade, direito à igualdade perante a lei, entre tantos outros, além de prevenir e combater a tortura ou tratamentos desumanos, degradantes e cruéis, conforme previsto em seu artigo 7º:
Art. 7º Ninguém poderá ser submetido a tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre convencimento, a experiência médicas e científicas (OEA, 1966).
A questão do livre convencimento do paciente, quer dizer que o paciente passará a ser tratado e respeitado como um ser verdadeiramente humano, com opiniões e vontades, e não apenas uma “coisa”. Assim, em outras palavras, a utilização do corpo humano como objeto de estudos e experiências médicas-científicas ocorridas nos campos nazistas de concentração ou, por exemplo, como no caso a ser estudado logo abaixo, em que um pai se serve sexualmente de sua própria filha por vários anos.
No que se refere às minorias, o Pacto não define o seu conceito, entretanto, um Relatório aprovado em 1977, na Subcomissão de Luta contra as Medidas Discriminatórias e de Proteção das Minorias, subordinada à Comissão dos Direitos Humanos esclareceu a noção de minoria populacional do artigo de forma objetiva. Cotejar-se-á dois dos quatro critérios harmônicos com o atual trabalho:
[...] a noção de minoria discriminada pressupõe o fato político de que tais grupos não se encontram em situação de poder na sociedade [...]; e último lugar, a discriminação violadora desse direito humano supõe que discriminadores e discriminados pertencem ao mesmo Estado (COMPARATO, 2011, p. 336).
Esse destaque se faz necessário para identificar e enquadrar no aludido Pacto as violações que ocorrem nas parcelas vulneráveis da sociedade que são torturadas como forma de discriminação, intimidação, punição e até mesmo submetida à servidão pessoal, fato a ser neste trabalho analisado.
Historicamente no Brasil, de forma contrária, pode-se afirmar que as minorias seriam os grupos sociais privilegiados e que detêm o poder estatal, portanto, os “discriminadores” apontados pelo professor Comparato (2011).
3.1.3 O PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS – ONU 1966.
Instrumento que elenca uma série de direitos concernentes à proteção das classes ou grupos sociais desfavorecidos, contra o predomínio socioeconômico exercido pela minoria detentora do poder, além de fazer possibilitar aos menos favorecidos uma melhor condição de vida.
Aqui o Estado passa a ter uma postura ativa, portanto, positiva, de em nome dessa população, agir contra a discriminação entre as classes sociais. De modo que, a igualdade social é aqui o ponto central na busca dos direitos perquiridos nas políticas públicas ou programas de ação do governo de cada país, elucida Comparato (2011).
Vale ressaltar que violência gera violência e o Estado só conseguirá reduzi-la se diminuir a distância existente na escala que relaciona os mais ricos aos pobres. Isso se faz extremamente necessário para que essa classe vulnerável tenha reconhecido seus direitos civis e políticos, além dos econômicos, sociais e culturais que são complementares, interligados e indivisíveis, ainda ser considerados sujeitos de direitos perante a sociedade na qual vivem.
Sabe-se que a ideia circular, de encaixe perfeito entre os direitos civis e culturais com os direitos econômicos, sociais e culturais[9] para a comunidade humana é vital. Afinal, para que o indivíduo viva de forma digna, faz-se necessário atender as necessidades básicas elencadas em tal pacto, como por exemplo: direito à alimentação, à moradia, ao trabalho, à educação etc.
Portanto, torna-se necessário fazer algumas reflexões dentro desse ambiente, a exemplo de efetivar o princípio da solidariedade, vetor do aludido pacto. Mas como será possível, se os indivíduos encontram-se substancialmente tão desiguais?
E ainda, como possibilitar educação para que o conhecimento chegue a todos? Assim a importância dessa igualdade é a oportunidade proporcionada para que todos tenham reconhecidos seus direitos, e deles tomem conhecimentos, para então saber exigi-los.
Do mesmo modo, para que o indivíduo tenha condições de exercer esses direitos de forma horizontal, ou seja, com igualdade de condições com a sociedade no qual está inserido, torna-se primordial que tenha todas as possibilidades e qualificações exigidas no mercado capitalista de produção. E para essa concretização, os direitos à educação e ao trabalho apresentam-se, também, como vetores, a fim que essas pessoas consigam efetivar de forma independente, consciente e digna todos os outros direitos.
Afinal, a maneira que o sistema mercardual, ao qual o homem está inserido, se apresenta nos dias atuais, torna totalmente desumana a condição de vida, conforme assevera Comparato (2011, p.357): “A medida que o capitalismo se torna cada vez mais financeiro e especulativo, o fator trabalho passa a ser considerado como um insumo dispensável no sistema produtivo.”
Portanto, a falta de oferta de trabalho faz crescer as desigualdades sociais e consequentemente dificulta o desenvolvimento educacional da população mais carente, faltando-lhes com isso, dentre outros, dignidade como pessoas que também são.
3.1.4 A CONVENÇÃO CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS CRUÉIS, DESUMANOS E DEGRADANTES – ONU 1985.
Dentro do sistema global e com a finalidade de assegurar a dignidade humana de forma mais efetiva, a ONU aprovou em 1985, outro documento de valor inestimável para tal comunidade, agora de forma mais específica, qual seja Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes[10]. Este documento, adotado pela Resolução 39/46, em dezembro de 1984, determina que os Estados devam acordar que:
Art.1º Para fins da presente Convenção, o termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerarão como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram (ONU, 1985).
Esse instrumento sintetizou neste artigo o conceito do que seria a prática da tortura e sinalizou para que Estados-partes signatários criassem leis ou decretos voltados para sua erradicação em suas legislações internas.
Insta destacar que todo documento internacional voltado à proteção dos direitos humanos é utilizado de forma secundária, em homenagem ao princípio da soberania estatal. Assim, conforme nos ensina Piovesan (2012, p. 227): “[...] o Estado tem a responsabilidade primária pela proteção desses direitos, ao passo que a comunidade internacional tem a responsabilidade subsidiária”.
Contudo, a importância da criminalização e do controle efetivo pela ordem internacional da prática da tortura se fazem necessários para quando haja violação por parte do Estado agressor, e este possa ser punido, sendo obrigado a reparar os danos às vítimas. Além de determinar que o agente torturador seja manifestamente afastado das funções que ali exerce, devendo responder de forma irrepreensível por seus atos sem privilégios e muito menos imunidade em relação ao cargo que exerce.
Em que pese na esfera internacional o crime de tortura ser considerado próprio, isto é, apenas os agentes estatais podem cometê-lo, no Brasil, ao contrário, ele foi tipificado como comum, podendo assim qualquer pessoa cometê-lo, assunto que será explicado logo abaixo.
Ressalte-se que a tortura é um crime de lesa-humanidade e, ao ser assim elencado no Tribunal de Nuremberg, adquire determinado significado, qual seja: quando praticado num ser humano, todos são por ele alcançados, de modo que o Estado-violador e a comunidade internacional de direitos humanos devem estar sempre atentos, trabalhando em conjunto no que diz respeito ao seu controle e punição.
Ademais, conforme prevêem seus artigos 5º ao 8º a jurisdição é compulsória e universal para seus torturadores, isto é, todos os Estados-membros são obrigados a punir seus agentes torturadores independentemente do limite da jurisdição, ratificando com isso, a legitimidade universal que qualquer país signatário tem de processar o acusado ou, se for o caso, extraditá-lo, caso algum outro Estado-parte o tenha solicitado, para que enfim, possa ser devidamente punido, independentemente que haja algum acordo bilateral entre os mesmos, preceitua Piovesan (2011).
Existe ainda a possibilidade do sistema de monitoramento que institui três instrumentos: as petições individuais, os relatórios e as comunicações interestatais que, juntos, funcionam como formas de controle para que esse crime não ocorra nos recônditos mais longínquos dos Estados signatários.
O Brasil, assim como qualquer outro Estado, ao ratificar esses vários tratados que versam sobre tais direitos, tem a obrigação de averiguar, punir e ressarcir as vítimas deste nefasto crime, sob pena de incorrer num ilícito internacional.
3.2 A ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS - OEA
Com intuito de melhorar suas relações comerciais, de igualar as normas jurídicas, além de facilitar pacificamente as controvérsias que por ventura existissem, aprimorando a defesa da democracia e respeitando o princípio da não-intervenção, bem como elencando princípios em sede de direitos humanos, foi criada a OEA – Organização dos Estados Americanos, em 1948, elucida Arrighi (2004):
[...] os Estados americanos [...] foram criando, gradualmente, um sistema de instituições especializadas, uma tessitura de normas jurídicas e um conjunto de princípios comuns de conduta, tanto em suas relações recíprocas como nas relações entre cada Estado e seus cidadãos (ARRIGHI, 2004, p.01).
Assim, esse organismo não nasceu de uma só vez, ao contrário, foi se construindo com o decorrer de suas necessidades para aprimorar suas relações, identificando e resolvendo os problemas pelas suas similitudes, conseguindo com isso, maior estabilidade e segurança em relação a outros organismos existentes em outros continentes, conforme conclui Arrighi (2004):
Alguns assuntos só têm sentido se vistos e resolvidos de uma perspectiva universal, e há outros, [...] que só podem ser enfrentados de forma eficaz no contexto de uma comunidade de valores e interesses que só ocorrem entre países de mesma região (ARRIGHI, 2004, p.05).
Destarte, quanto mais próximos dos problemas, mais rápido e de forma menos traumática será a sua resolução. Até porque culturalmente são muito parecidos e, consequentemente, os interesses serão administrados por seus pares de forma mais pontual.
Entretanto, a criação da entidade regional (OEA) não excluiu nem mitigou a global (ONU), ao contrário, ampliou e fortaleceu tais proteções, oferecendo um maior e melhor amparo legal às vítimas, pois, a depender da necessidade concreta, uma ou outra conseguirá atender e dirimir tais conflitos da forma que seja mais favorável.
Vale ratificar que tais documentos são complementares, sem caracterizar, portanto, hierarquia entre a ONU, OEA, África ou Europa.
3.2.1 A CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS – OEA 1969
Documento de maior importância na seara dos direitos humanos para a região dos Estados americanos, a supracitada Convenção foi firmada com a finalidade de ofertar maior proteção e garantia a tais direitos, em âmbito regional. Realizada e aprovada na Conferência ocorrida em Costa Rica, no ano de 1969, mais comumente conhecida como Pacto de San José da Costa Rica[11], elenca direitos fundamentais básicos, similar ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, promulgado pela ONU, esclarece Arrighi (2004):
[...] esses mesmos Estados foram elaborando um conjunto de normas e criando instituições regionais para proteger os direitos dos indivíduos, além da proteção (ou da falta de proteção) oferecida pelo direito nacional, suprindo ou complementando suas falhas e carências (ARRIGHI, 2004, p.99).
Vale salientar que a Convenção Americana não proclama, de forma particular, direitos elencados no Pacto de Direito Social, Econômico e Cultural, e essa omissão foi intencional, naquele momento, por interesse de adesão da nação Norte Americana.
Entretanto, em 1988, na Conferência Interamericana de São Salvador, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos aprovou um Protocolo Adicional à Convenção, assim denominado “Pacto de San Salvador”[12], alcançando e protegendo direitos econômicos, sociais e culturais, formando hoje o denominado PIDESCAS.
Com isso, os Estados-membros não poderão se eximir desses deveres e deixar de assegurar o pleno exercício aos seus cidadãos. E estes, por sua vez, não poderão deixar de lutar por novos direitos para concretizar sua progressiva necessidade de aperfeiçoar-se, seja de forma técnica ou científica, contudo, não deixando de respeitar seu lado ético e moral, assevera Comparato (2011).
Assim, o indivíduo que tenha algum direito violado poderá dentre tantos instrumentos, optar por aquele que melhor se adéqua a sua situação. Portanto, no que diz respeito à tortura, a Convenção estatui:
1 – Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.
2 – Ninguém deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com respeito devido à dignidade inerente ao ser humano (OEA, 1969).
Dessa maneira, a vítima de tortura terá a oportunidade de melhor fundamentar seu direito e exigir tanto a punição como o reconhecimento da omissão do Estado-parte, agente violador, bem como a reparação do dano. Assim, conforme enaltece Piovesan (2012):
O sistema interamericano salvou e continua salvando muitas vidas; tem contribuído de forma decisiva para a consolidação do Estado de Direito e das democracias da região; tem combatido a impunidade; e tem assegurado às vítimas o direito à esperança de que a justiça seja feita e os direitos humanos sejam respeitados (PIOVESAN, 2012, p.357).
Apreende-se do supracitado relato que o sistema é efetivo e tem conseguido diminuir as omissões ocorridas nos Estados, acabando com a impunidade desmedida e estimulando avanços centrados no valor supremo da dignidade humana.
Essa é uma luta que perfaz um longo caminho ainda ser trilhado, unindo sociedades e Estados, num processo segundo o qual outro fator primordial que servirá para asseverar tal princípio é o espírito democrático neste Continente. Afinal, sem democracia a injustiça reinará e consequentemente violações a raça humana serão outra vez, perpetradas nessas nações.
3.2.2 A CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR E PUNIR A TORTURA – OEA 1985
Reconhecida e ratificada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, em dezembro de 1985, na Colômbia, este instrumento constitui uma reafirmação à Convenção sobre a mesma espécie delitual em âmbito global, só que asseverando a proteção aos princípios da dignidade humana e da liberdade de valores tão vitais aos indivíduos.
Além de trazer os cuidados para que não ocorra, mesmo em Estado de Exceção, prática tão comum nos Estados da America Latina, no período da ditadura; bem como no exemplo trazido atualmente da baía de Guantánamo, base militar dos Estados Unidos em Cuba, podendo tornar-se uma verdadeira violação ao Estado Democrático de Direito e risco iminente a qualquer indivíduo supostamente acusado de atos terroristas.
Logo, assim preceitua a incriminação da tortura[13]:
Art. 2º Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica.
Não estarão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente consequência de medidas legais ou inerentes a elas, contanto que não incluam a realização dos atos ou aplicação dos métodos a que se refere este artigo (OEA, 1985).
Este é mais um instrumento do sistema internacional de proteção aos direitos humanos que assegura à vítima mais uma opção para fundamentar seu direito, além de ratificar a obrigação que o Estado-membro tem de proteger, assegurar e punir tal prática em suas dependências públicas ou lugares a ermos. Assim, conforme esclarece Borges (2004, p.124): “Nem a periculosidade do detido ou condenado, nem a insegurança do estabelecimento carcerário ou penitenciário podem justificar a tortura”.
Ademais, por ser um crime imprescritível, independe a situação interna ou externa, em termos de beligerância que se encontre Estado-parte, agente violador de cometer tal delito. Vale frisar, nenhuma conjuntura atípica que esteja passando um país poderá justificar tal prática e, dessa forma, querer derrogá-lo ou não interpretá-lo conforme tal documento.
Insta ressaltar uma importante decisão proferida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ocorrida em 1995 no Haiti[14], sobre um caso de violação dos direitos das mulheres daquele País. Em sua fundamentação, a Comissão realizou uma interpretação extensiva do crime de tortura para absorver os crimes de estupro e abuso sexual, conforme enumera Piovesan (2012):
[...]o estupro e o abuso sexual são formas de tortura que produzem um dos mais severos e longos efeitos traumáticos. E, acrescenta [...] em conformidade com resolução do Conselho de Segurança da ONU, o estupro é considerado violação e ofensa aos princípios do direito humanitário, devendo ser juridicamente condenável e punido no plano internacional (PIOVESAN, 2012, p.276).
Em que pese ter sido resultado da guerra civil ali ocorrida, o exemplo abriu precedentes na seara internacional, podendo ser utilizado como base jurisprudencial, de modo a fundamentar qualquer outro exemplo, mesmo que de âmbito particular, já que é um crime de lesa-humanidade, logo, imprescritível e insuscetível de qualquer benefício.
3.2.3 A CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER – 1994.
Sabe-se que a necessidade de criação de um instrumento que proteja uma minoria humana em seus direitos advém do lamentável paradoxo de suas graves e reiteradas violações.
No caso das mulheres esse contexto e caminho não foram diferentes e continuam a ser trilhados diariamente, numa luta constante, principalmente no ambiente familiar, local que deveria ser sagrado e inviolável em termos de proteção e segurança. Mas, ao contrário, o espaço doméstico é o mais fértil para a ocorrência de tantas agressões físicas, psíquicas, morais e sexuais contra a mulher independentemente de ser criança, adolescente ou adulta.
Um agravante a todos esses maus é ainda constatar que seu agressor é, em regra, um parente próximo, normalmente o pai, irmão, marido ou companheiro, aquele que normalmente detém a sua confiança.
O referido instrumento foi alcunhado como “Convenção de Belém do Pará”[15] e, conforme anui Piovesan (2012), ainda ser ele o primeiro documento internacional a conceituar os tipos de violências que atingem as mulheres, independentemente do Estado, posição socioeconômica, cor, raça, idade, religião etc.
A finalidade precípua de tal instrumento é proteger o gênero feminino em face do masculino, do sexo mais frágil em detrimento do mais forte. Portanto, conceitua a violência contra a mulher de forma explícita e enfática como:
Art. 1º
Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado.
Art. 2º
Entender-se-á que violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica:
1. que tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual:
2. que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro lugar, e
3. que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra (OEA, 1994).
O reconhecimento da mulher como detentora de direitos e garantias fundamentais, demonstra que rompeu um preconceito milenar mundial, ocorrido praticamente em todas as religiões e comunidades existentes nas quais a identificava como inferior em relação ao gênero masculino.
Estigma que ainda permanece enraizado historicamente em muitas culturas estejam elas localizadas tanto no lado Oriental como no Ocidental. No Brasil a violência contra a mulher ocorrida no âmbito privado é tão devastadora que chega a alarmar, principalmente em relação aos números que chegam a ser informados, vale salientar, quando registrados.
O silêncio das vítimas ainda é o grande vilão social para erradicação ou pelo menos para a sua diminuição, já que a inviolabilidade do lar é garantia constitucional que termina assegurando aos agressores vasto amparo legal e largo terreno para continuar delinquindo.
E fato ainda mais grave ocorre quando a violência chega ao conhecimento do Estado, e este permanece omisso em sua obrigação legal de prevenir, investigar e punir tais violações. O Brasil, neste sentido, conseguiu um feito histórico, negativamente falando, o de ser o primeiro país a ser condenado no âmbito do sistema regional de direitos humanos num caso de violência doméstica, qual seja o de Maria da Penha[16], conforme nos faz assimilar Piovesan (2012).
Caso emblemático que fez nascer a Lei n. 11.340/2006, ao qual foi batizada pelo seu nome. Insta ressaltar que o valor da indenização pecuniária recebido pela vítima deste caso demonstra o quanto à dignidade da pessoa humana neste País é relegada tanto no âmbito da responsabilidade civil quanto da penal.
3.3 A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL – 1988.
A fase ditatorial vivida pela Nação brasileira no período ocorrido entre 1964 e 1984 foi a mais autoritária e violenta desde seu início como República. Momento em que direitos fundamentais foram supridos da sociedade e o delito de tortura era comumente empregado para impor terror a qualquer cidadão. Entretanto, vários atos populares ocorreram fazendo com que a sociedade se reunisse e clamasse pelo retorno da democracia.
A pressão popular foi tamanha que os representantes políticos não tiveram outra saída a não ser atender o anseio social e eleger uma Assembleia Constituinte, destinada a produzir o texto, segundo qual foi denominado Nova República, conforme relembra Silva (2008, p. 88): “[...] a Nova República, que haveria de ser democrática e social, a concretizar-se pela Constituição que seria elaborada pela Assembleia Nacional Constituinte, livre e soberana [...]”.
Sob a luz dessa nova energia, elabora-se o texto constitucional com intuito de inaugurar uma nova fase político social-democrática no Brasil, qual seja Estado Democrático de Direitos, que ao ser concluído foi saudado com o nome de Constituição Cidadã[17], segundo Silva (2008, p. 90) foi batizada: “porque teve ampla participação popular em sua elaboração e especialmente porque se volta decididamente para a plena realização da cidadania”.
Dessa forma, vários direitos foram elencados naquele significativo documento, mais precisamente um, o crime de tortura que, de forma muito especial, os legisladores constituintes pioneiramente elevaram ao âmbito constitucional, inclusive blindando-o como cláusula pétrea, segundo Cunha (2007) são cláusulas que correspondem a um núcleo de normas insuscetíveis de serem alteradas.
Assim, o referido delito localiza-se no artigo 5º, incisos III e XLIII da CRFB/1988, que assim o define:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
[...]
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem (BRASIL, 1988).
Portanto, apreende-se desse conteúdo que, além da igualdade de todos perante a lei, independentemente da condição social, econômica, escolaridade, cor, gênero, idade, escolha da identidade sexual; enfim, todos têm os mesmos direitos pelo mais importante ali elencado, qual seja dignidade da pessoa humana, no qual todos os outros princípios convergem. Ademais, são crimes de lesa-humanidade e, deste modo, prevê que são inafiançáveis e insuscetíveis de qualquer benefício pela sua gravidade e lesão.
Mas, apesar de toda a ênfase do texto constitucional, a verdade é que a prática desse crime é fato corriqueiro no Brasil, principalmente nas dependências públicas, locais que deveriam ser assegurados exatamente o contrário. E pior, por agentes públicos que deveriam respeitar e proteger tais vítimas.
Cabe à sociedade como um todo vigiar, exigir esclarecimentos e informações de como esses agentes procede em seus interrogatórios ou nas formas de obtenção dessas confissões, ou ainda, como se provém à averiguação desses supostos delitos imputados a essas vítimas. Enfim, fazer um acompanhamento da legitimidade e ética pautadas nas condutas desses agentes.
E, por conseguinte, o estado Brasileiro punir de forma exemplar para que não ocorra a complacência entre os Poderes Judiciário e Executivo nessas averiguações e julgamentos com sentenças que sempre atenuam suas penas, diante de uma sociedade completamente passiva, conforme assegura Jesus (2010).
3.3.1 A LEI DO CRIME DE TORTURA N. 9.455/1997
Apesar de todo o esforço do Poder Constituinte em criminalizar a prática da tortura na Carta Magna, os legisladores infraconstitucionais, de forma contrária, só a tipificaram como um ilícito penal autônomo em 1997, ou seja, nove anos depois.
Esse lapso temporal foi bastante prejudicial para as vítimas e, por outro lado, demais benéfica para os agentes torturadores, pois foram apenados por outros tipos de crimes, como por exemplo: lesão corporal, maus-tratos e abuso de autoridade, que têm penas em abstratos bem mais leves, adverte Piovesan (2012).
Ademais, para o próprio estado Brasileiro essa inércia legislativa foi, porque não dizer, bastante satisfatória já que o instituto da responsabilidade civil não seria, nestes casos, acionado pelas famílias, e nem responderia perante a Corte Internacional, sobre a violação dos tratados por ele ratificados.
Assim, após sua entrada em vigor, a Lei 9.455/97 recebeu pontuais observações dos estudiosos do direito por causa do conceito, da denominação do agente ativo, bem como, em relação à restrição quanto à discriminação racial e religiosa, entre outras.
Em que pese todas as críticas, ninguém contesta que constitui o principal instrumento de combate à tortura na jurisdição brasileira. Far-se-á, portanto, uma breve análise dessas principais diferenças.
Art. 1º Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
[...]
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.
[...]
§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente público;
[...]
§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada (BRASIL, 1997).
Quanto às observações, no que se refere ao tipo incriminador, à lei promulgada no Brasil em relação aos tratados internacionais considerou como crime comum e não próprio.
Desta forma, qualquer pessoa pode cometer o crime de tortura e não apenas os agentes do Estado. Neste caso será motivo de causa de aumento de pena ser tal ilícito cometido por um funcionário público, tendo ainda como punição administrativa a perda do cargo público, ou ainda, ser classificado para outros tipos mais brandos, conforme palavras de Jesus (2010):
[...] é a possibilidade do crime de tortura ser classificado para outros tipos penais, mais comumente a imputação para o delito dos maus-tratos, lesão corporal ou abuso de autoridade, o que atenua a pena (JESUS, 2010, p. 59).
Outra consequência é trazida por Maia (2006):
Têm sido frequentes casos de alegação de tortura, praticados por padrastos e madrastas, companheiros e companheiras de mães e pais de crianças, sobre enteados e enteadas, ou mesmo sobrinhos ou sobrinhas, de quem têm a guarda de fato (MAIA, 2006, p. 217).
Em que pese às observações elencadas acima, para o perfil social brasileiro, o legislador infraconstitucional adequou bem os agentes e as vítimas desse delito, principalmente os cometidos contra as mulheres e crianças no âmbito doméstico.
Destarte, conforme análise de estudo de caso, demonstrar-se-á que o exercício da tortura no Brasil é mais comum do que se imagina, principalmente pela benevolência do silêncio nos lares. Ademais, continua Jesus: (2010, p. 61, grifos da autora) “o legislador optou por construir um tipo penal aberto, cuja definição depende do intérprete da lei”.
Outra ressalva diz respeito à criação da norma em branco, pois segundo Nascimento (2009, p.59) se refere aquelas: “[...] cujo preceito primário exige uma complementação, com vistas a tornar compreensível a descrição típica e o seu próprio âmbito de aplicação”. Assim, ao não especificar o que vem a ser a prática da tortura e deixar para o magistrado tal tarefa, entendeu que havia necessidade daquele em proceder com uma análise mais profunda em cada caso.
Entretanto, a doutrina não é pacífica em relação a esse tema e faz algumas objeções, como a da obra da autora Jesus (2010), segundo a qual se caracteriza pelo espírito subjetivo e ânimo que o intérprete dará na análise de cada caso. O que para ela abre-se uma possibilidade do mesmo confundir os casos de violência meramente doméstica ou de vingança, por exemplo, com a prática do tipo incriminador em apreço.
A interpretação e comparação entre a lei editada no Brasil e os instrumentos internacionais merecem ainda alguns destaques, pois aquela é mais restrita que estes, já que se limita a tratar apenas sobre a discriminação racial e religiosa; enquanto que a Declaração (ONU, 1948) trata sobre discriminação de forma mais ampla, seja ela cometida sob qualquer natureza.
A sociedade brasileira é composta por minorias que aos poucos conseguem entender a necessidade de lutar para terem seus direitos respeitados, e entre elas aparecem os homossexuais que são bastante marginalizados. Assim, Piovesan tem alertado que (2012, p. 278): “Note-se, por exemplo, que no País há elevado número de denúncias envolvendo discriminação por orientação sexual das vítimas”.
Em que pese todo o embate sobre a interpretação, seja ela sobre a restrição ou ampliação do texto infraconstitucional em relação aos documentos internacionais, para a sociedade brasileira a sua tipificação foi importante principalmente para reforçar a punibilidade do agente causador desse devastador crime.