Morte e Vida Severina. Vida a Severina! Um estudo de caso à luz dos Direitos Humanos

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4 O ESTUDO DE CASO

Em destaque, será abordado um caso emblemático ocorrido em 2005, da agricultora Severina Maria da Silva com 37 anos e cinco filhos menores, no município de Caruaru, Agreste de Pernambuco, cidade localizada a 140 km da capital Recife, que foi a Júri Popular por ter sido autora intelectual da morte de seu pai-marido.

Um caso que envolve inicialmente uma justiça seletiva, reinando entre seus operadores um alto grau de discriminação, além de uma total dissociação entre os que aplicam o Direito nas searas Penal e Processual Penal com a disciplina de Direitos Humanos.

Essa carência de conhecimento na aplicação e, por conseguinte, no reconhecimento de vítimas que têm direito a um julgamento justo, faz com que ocorram muitas iniquidades ou julgamentos tendenciosos e parciais, favorecendo apenas uma pequena parcela da sociedade.

Entretanto, no decorrer do processo haverá uma mudança na qual a própria sociedade, representada pelo corpo de jurados mudará esse perfil abordado.

4.1 UMA JUSTIÇA SELETIVA

No Brasil ainda há uma forte tendência de discriminação social e isso se reflete em vários setores da sociedade. No âmbito do Poder Judiciário esse fator é facilmente identificado, desde a forma da abordagem de um policial (militar ou civil) a uma pessoa que tenha como requisitos a pela negra, pobre, analfabeta, mulher, homossexual, criança, idoso, índio etc. Até no momento de seu julgamento, na mais alta e suprema Corte do País.

A pessoa a ser aqui estudada tem nome próprio Severina Maria da Silva, mas em vários momentos do processo é citada pela sua alcunha, qual seja, “Sivoneide”. Como se proferir seu nome e sobrenome elevassem o ser em apreço à condição de pessoa, o que para muitos não lhe cabe tal distinção. Lembrando que, “coisas” é que têm apenas apelido e não sobrenome.

Afinal ao nascer, preencheu todos os requisitos ao qual lhe faz não ter direito à lei, que supostamente escolheu e ajudou criar, quais sejam: pele parda, pobre, analfabeta, mulher e ainda por cima premeditou a morte de seu próprio pai. Vale a pena ressaltar, que esse pai lhe imputou como condição a obrigação de ser seu marido.

O fato, um suposto latrocínio, ocorrido em 15 de novembro de 2005, por volta das 11h30min no Sítio Rafael, distrito de Caruaru-PE, conforme Boletim de Ocorrência sob o n. 2784/2005, que assim descreve o fato:

Tratava-se de um latrocínio, cuja vítima, já qualificada, vestia calça e cinto cremes, sem camisa, o qual fora assassinado com 07 (sete) facadas. [...] dois elementos entraram na residência da vítima [...]; E ainda: [...] acrescenta a esposa da vítima que pediu para os elementos pegaram o dinheiro – cerca de R$ 800,00 (oitocentos reais) – e poupassem seu esposo [...] (PE, 2005, p. 03).

Já na primeira versão oferecida pela esposa-filha, Severina, ainda na fase inquisitorial do procedimento, começa seu Interrogatório na 89ª Circunscrição Policial de Caruaru – PE, afirmando que a vítima era seu pai biológico, entretanto, era molestada desde seus 09 (nove) anos de idade e tivera com ele 12 (doze) filhos, destes apenas 05 (cinco) sobreviveram.

Informa ainda que quando contou para a mãe, a mesma retirou-a do local onde dormia que se encontrava perto da irmã, no chão, e levara para dormir na mesma cama deles, fazendo-a manter relações sexuais ali, com seu próprio pai.

Explica que o pai era uma pessoa violenta e ignorante e que ao completar 21 (vinte e um) anos de idade sua mãe foi expulsa de casa por ele, e ela passou a ser obrigada a ser sua mulher dali por diante. Declara que o pai não tinha uma convivência social salutar, tratando a todos com ignorância, e não permitiu que nenhum dos filhos-netos viesse estudar, e ainda:

[...] a [sic] mais de 08 (oito) anos atrás [sic] chegou a prestar queixa contra seu pai-marido por espancamento, pelo fato da interrogada ter viajado para a cidade de Santa Cruz para pedir esmolas e quando retornou seu pai-marido teve um acesso de ciúmes e espancou a interrogada e ainda a ameaçou de matá-la se ela prestasse queixa do mesmo e mesmo sob essa ameaça a interrogada foi até uma delegacia desta cidade (antiga 2ª Delegacia) e o processo começou a ‘correr’, porém seu pai-marido ‘colocou’ um advogado no caso e resolveu a situação, tendo ido buscar à força a interrogada que encontrava-se na casa da mãe [...] (PE, 2005, p. 09).

Percebe-se, desde o início de seu interrogatório, em suas primeiras palavras a necessidade de explicar a situação na qual vivia diariamente, qual seja, intensa pressão psicológica e espancamentos diários, bem como em total miséria, além de viver sob cárcere privado em sua própria residência e, além disso:

[...] era constantemente ameaçada de morte por seu pai-marido, que sempre a espancava com cabo de enxada e também tentando asfixiá-la apertando-lhe a garganta e isso tudo se dava na frente dos filhos que viviam assustados com a brutalidade do pai (avô) [...] (PE, 2005, p. 09).

Severina tenta, mais uma vez, pedir ajuda ao Estado, mesmo tendo consciência do porque de estar ali, que é prestar um depoimento e, vale salientar, começa não relatando o que ali por último aconteceu, mas ao contrário, o que ali diariamente acontecia desde os seus nove anos de idade.

Mostra, pela segunda vez, a sua posição de vítima que na realidade era, fazendo perceber, ainda nesse relato, que após vários anos tentando se livrar desse mal, não conseguira executar com as próprias mãos, talvez por não reunir tal coragem. Afinal e apesar de tudo, aquele homem era o seu pai biológico.

 O conflito era latente, mas o instinto e o amor maternos que nutria pela filha, Antonia, foram mais fortes e, por consequência, fatores decisivos para a oportunidade que tivera na escolha do desafeto de seu pai-marido. E assim, com a ajuda de uma terceira pessoa propôs:

[...] entregar tal dinheiro ao GALEGO acaso ele forjasse um assalto na casa e tirasse a vida da vítima [...] no caso genitor-marido [...] e também a interrogada se veria livre dos mau-tratos [sic] e ameaças de morte sofridas constantemente; E prossegue: [...] por ser judiada e espancada demais, há muito tempo vinha tendo a idéia [sic] de se ‘livrar’ da vítima (pai-marido) e quando percebeu que o GALEGO poderia executar tal feito aproveitou a oportunidade [...] (PE, 2005, p. 09).

Demonstra, talvez pela religiosidade que as pessoas do interior têm que, apesar de toda a angústia, mesmo assim, não conseguiu ela mesma ceifar o pai. Figura que muitos têm como herói, como referência, segurança emocional e material.

Para ela, porém, significou a decepção, o medo, a raiva, a revolta, o pavor. Tudo aquilo que em sua consciência e também no fundo do seu ser quisesse se ver livre. Tentou até as últimas e só obteve através de um terceiro, aquilo que por suas próprias mãos talvez não conseguisse.

 Mesmo com o exposto acima, o Delegado, com toda a sua “experiência”, bem como a devida acuidade que prestou ao caso, relata em sua Representação encaminhada ao MM Juízo, à forma como já prejulgara os fatos e, assim descreve, como ele próprio aduz: “A concatenação de todo planejamento do hediondo delito” (PE, 2005, p. 27), e mesmo assim requer:

Analisadas as circunstâncias relatadas e tendo em vista as nuanças esclarecedoras do hediondo crime ante a necessidade da conclusão das investigações, com imperiosidade mormente de se preservar a integridade física de testemunhas, além da garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, representamos a V. Exª., no sentido de ser, com fulcro nos artigos 311 e 312 do CPP, decretada a prisão preventiva de SEVERINA MARIA DA SILVA [...] (PE, 2005, p. 28, grifos nossos).

 Desde o início, se percebe na análise do processo que os operadores ao aplicarem o Direito tanto no âmbito policial como no judicial, vale frisar, neste último, apenas inicialmente, não analisaram com acuidade o relato de Severina. Sequer olharam e identificaram ali uma pessoa, que poderia ser a real vítima das circunstâncias que ensejaram o crime.

Há a necessidade de se fazer uma reflexão mais apurada para verificar se isso ocorreu pela característica que o direito Penal e Processual Penal apresenta, qual seja o de ser realizado sob a ótica da Teoria do Delito. Essa reflexão tornar-se importante porque tal fato restringe a análise dos operadores e determina a realização de um corte na averiguação do fato, renegando o exame da situação como um todo.

 Segundo os doutrinadores Zaffaroni e Pierangeli (2006, p.331) essa teoria (Delito) ilustra: “[...] a parte da ciência do direito penal que se ocupa de explicar o que é o delito em geral, isto é, quais são as características que deve ter qualquer delito”. Assim, os elementos que compõem o delito em seu caráter genérico é a conduta, e em seu caráter especifico, são três quais sejam: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Esse assunto será explicitado mais adiante.

 Destarte, o respeito a esse procedimento de forma tão radical termina sendo arriscado, podendo até ser considerado em alguns casos injusto, pois, a linha que separa esse procedimento e a aplicação dos direitos humanos é tênue e, portanto, deixando o operador totalmente insensível para quem está do outro lado do fato.

E a consequência de tal análise e exemplo é que as pessoas envolvidas nos tipos incriminadores tornam-se, na medida em que se multiplicam apenas um número, qual seja o do processo criminal. Mais um, dentre tantos que se têm com relatos similares, ou seja, uma daquelas que se enquadra como não merecedora e, por conseguinte, não digna ao acesso à lei, de forma ampla.

Isso, obvio, tendo como apreciação não só das searas penal e processual penal, mas também a de direitos humanos. Dentro de uma visão e análise de que o Direito é um sistema todo interligado por princípios e regras.

 O resultado do acima abordado foi a de uma mulher, Severina, que apresenta seguintes características: estatura mediana, magra, primária, analfabeta, com endereço fixo, mãe de cinco filhos menores e ainda ser qualificada, prima facie, de alta periculosidade social, ensejando com isso o requerimento da prisão preventiva, a fim de preservar a garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e assegurar a aplicação da lei penal?!

 Chega-se a fase judicial e como não poderia deixar de ocorrer dentro desse contexto analítico do devido processo legal, o MM. Juiz defere a Representação e decreta a prisão preventiva de Severina, nos exatos termos argumentados pela autoridade policial, em seu inquérito policial, e ainda complementa:

[...] aderindo ao plano e viabilizando-lhe o desfecho por ela desejado, assim delineado, traça seguro norte de que sua liberdade compromete a instrução criminal e a ordem pública. A indiciada virago era filha da vítima, mas mesmo assim, e em completo menosprezo a todo e qualquer costume social [...] (PE, 2005, p. 30).

 Portanto, ratifica-se com esse relato o que aqui vem sendo demonstrado, em vez de estudar o que até então tinha em mãos, resolveu encurtar o caminho e prosseguir com análise superficial realizada pelo outro operador e julgar conforme o número que ali se apresentava.

4.2 O CAMINHO PERCORRIDO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO

 Conforme revelado acima, logo em seu primeiro depoimento, perante a autoridade policial, Severina já expos seu drama. Ainda que de forma incompleta e, portanto, sem se aprofundar na exposição de seus traumas.

Mas o fato é que naquele momento e no decorrer desse procedimento o seu sofrimento permanecerá sem ser ouvido e sequer analisado como deveria. Caso os atores judiciais envolvidos respeitassem o que reza o artigo 1º inciso III da Constituição Federal vigente que determina como fundamento maior a “dignidade da pessoa humana”, ou ainda, considerassem os diversos tratados internacionais em que o Brasil é signatário, tornando-os efetivos, o seu desfecho poderia ter sido menos sofrido.

 Caracterizam-se, portanto, algumas violações de direitos humanos, mas talvez as duas mais significativas para as circunstâncias, quais sejam, a ignorância e o preconceito que fazem bloquear o sentimento maior idealizado pela justiça romana, na qual direciona a sua imagem caracterizada numa deusa, a Iustitia. Roma, por sua vez, apresentou sua imagem assim como tinha feito a Grécia, só com ideais distintos.

A Deusa Iustitia[18] traduz o juízo que deve ser praticado no momento em que os casos de conflitos sociais chegam ao conhecimento do Estado e este tem o poder-dever de dirimi-los. Ela apresenta-se com os olhos vendados, mas a venda não significa ser “míope” ou não querer enxergar o certo, ao contrário, caracteriza a imparcialidade da justiça, e que, ao final, se atribua a cada um que lhe cabe. Essa é a visão atual do Direito brasileiro.

Em relação à Grécia, sua imagem de justiça perfaz-se na Deusa Diké[19], que ao invés da romana, tinha os dois olhos abertos. Segundo entendimento de Ferraz Júnior (2007, p.33), eles representavam: “[...] os dois sentidos mais intelectuais para os antigos eram a visão e audição”. Esse fator visto por muitos como um retrocesso, talvez, quem sabe, tivesse beneficiado a “ré”, Severina.

 A Carta Magna de 1988 inaugura a tutela dos direitos metaindividuais, os assim chamados direitos difusos e coletivos. Com isso, a sociedade brasileira tem à sua disposição uma instituição que exerce várias funções, entre elas, a de fiscal da lei, bem como a de defesa desses direitos, de forma a agir sempre com imparcialidade. Sendo ainda, conforme enumera o texto constitucional, uma: “[...] instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput, CRFB/88).

 No caso dos direitos humanos essa instituição é de vital importância para a interpretação que faz da Constituição Federal e dos Tratados Internacionais nos quais o Brasil é signatário. Principalmente no que se refere aos que versam sobre tais direitos, através do controle de convencionalidade, nos quais sempre deverão ter maior prevalência que as leis infraconstitucionais.

Serve, portanto, com o intuito de agenciar a defesa da ordem jurídica e do estado democrático de direito. Outro fator importante nas atribuições do parquet é o de trabalhar em defesa dos que se revelam mais fracos, proporcionando numa balança imaginária, a equiparação dos pesos que se encontram em conflito, que nas palavras de Arruda (2011, p.35): “[...] saiu do patamar de mero fiscalizador da lei, para ser verdadeiro guardião do direito”.

 Mediante o exposto, o representante do Ministério Público apresenta a Denúncia ao Estado-Juiz com fulcro no artigo 121, § 2º, incisos I e IV do Código Penal vigente[20], e fundamenta utilizando os seguintes argumentos, voltados para a pessoa que ali sofreu por anos, que ao conseguir denunciar seu pai-algoz, não foi bem interpretada:

Consta nos autos que o ofendido era genitor e, ao mesmo tempo, companheiro da primeira acusada. Esta, segundo afirma, fora por ele violentada sexualmente aos nove anos de idade e, a partir de então, estabeleceu-se entre ambos uma relação incestuosa da qual nasceram doze filhos, alguns deles vivos, com problemas mentais e sobrevivendo em meio à miséria. Ele era uma pessoa violenta e a espancava constantemente (PE, 2005, p. 118).

 Baseando-se nos fatos ali transcritos, o representante do parquet cumpre sua função e apresenta a Denúncia como titular da Ação Penal Pública Incondicionada para começar a análise do caso de Severina e tudo o mais que envolve aquele intrigante processo.

 Destarte, ao receber a Denúncia o Estado-Juiz determina a Audiência de Interrogatório, e mais uma vez Severina tenta explicar tudo o que havia passado em todos aqueles anos. Desta vez na íntegra, com toda a crueldade que a vida lhe fez passar nas mãos daqueles que deveriam, a princípio protegê-la, orientá-la, educá-la. E assim começa:

 [...] quando a depoente tinha 9 anos de idade, em um dia em que foi sozinha para o roçado com seu genitor, este no retorno, tirou a camisa, deitou a depoente em um lajeiro e colocou a camisa em sua boca, tampando-a, e forçou relação sexual com a depoente; no que a depoente esperneou, a vítima destes autos, tirou a faca que trazia para sangrar a depoente, atingindo-a na perna; que o genitor da depoente rasgou a camisa e amarrou parte na perna da depoente tampando o sangramento, e tentou novamente manter relação sexual com a depoente, novamente sem conseguir [...]; E prossegue: [...] à noite a depoente se encontrava dormindo no chão, junto com suas irmãs, quando o seu genitor contou para a mãe da depoente, o fato ocorrido, e a mãe da depoente foi buscá-la, colocando-a no meio da cama, dobrando um lençol e tampando a boca dela depoente, e ainda auxiliando na abertura das pernas da depoente para que o genitor da depoente pudesse completar a relação sexual; que a partir daquela data a depoente passou a manter relações sexuais com o pai, pelo menos três vezes por semana [...] (PE, 2005, p. 127, grifos nossos).

 Mesmo com toda a força dessas palavras, em nenhum momento por esse MM. Juiz teve Severina o reconhecimento de que apesar das circunstâncias da morte do pai-marido, também fora vítima dele em vários crimes durante todo o tempo. Até porque fora estuprada dos nove aos catorze anos de idade e vivia sob eterna pressão psicológica do pai, até acontecer aquele desfecho lamentável.

Ademais, sequer a benevolência de ver sua dignidade como pessoa ser ponderada e, por conseguinte, ter sua preventiva revogada, não conseguira. Já que à época do fato, lá no início, era menor.

Portanto, efetuando uma rápida análise objetiva e legal na qual ocorrera o crime (estupro) previsto na antiga redação do artigo 213[21] cumulado com o artigo 224[22], ambos do Código Penal, segundo qual rezava como presunção absoluta de violência, por ser menor de quatorze anos. Logo, teve sua infância totalmente violada, bem como a sua vida como um todo, até ocorrer o desfecho final.

Mas hei que teve outro grande e perturbador fator, talvez aquele determinante e que a fez agir, mesmo sob todos os dilemas e conflitos que se imagina uma filha tenha para com um pai, quando concretiza:

[...] a depoente percebeu que a sua filha Antonia, que também é filha de seu genitor, estava com o corpo reformando, saindo os seios, e que o genitor da depoente, pai e avô da menor, estava comentando a reforma da mesma e procurando apalpar-lhe os seios, demonstrando intenção de manter relações com a filha e neta Antonia; que a vizinha da depoente, de nome Zezita, certa vez, comentou para a depoente, que havia visto a vítima destes autos, apalpando a menina, Antonia, na área da casa [...] (PE, 2005, p. 128, grifos nossos).

 Imagina-se, nesse momento, que conflito Severina não teve mais uma vez de conviver e sozinha resolver? Que dilema não foi enfrentar entre escolher matar o pai ou concorrer em ter a mesma atitude que sua mãe tivera com ela? Até que ponto teria ela a capacidade de se autodeterminar nesse momento?

Segundo os mestres Zaffaroni e Pierangeli (2006), o elemento culpabilidade é graduável, dentro do conceito do delito, podendo, dependendo das circunstâncias em que aquele ocorreu, ser aquela (culpabilidade) “esvaziada” em seu conteúdo. Assim, com suas palavras:

[...] para reprovar uma conduta ao seu autor (isto é, para que haja culpabilidade), requer-se que este tenha tido a possibilidade exigível de compreender a antijuridicidade de sua conduta, e que tenha atuado dentro de um certo âmbito de autodeterminação, mais ou menos amplo, ou seja, que não tenha estado em uma pura escolha. Estes dois pilares da reprovação jurídica dão um conteúdo certo e difícil ao capítulo da culpabilidade, desautorizando a imputação de “esvaziamento” do conceito (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2006, p. 521, grifos nossos).

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Fazendo-se uma reflexão sobre essa explicação, fica difícil imputar um crime a uma pessoa que, estando sob forte pressão psicológica diariamente, lhe fosse quase impossível exigir o reconhecimento da “vontade-livre” de cometer tal ato. Ou seja, a consciência totalmente desimpedida para agir querendo tal resultado.

Afinal, Severina se encontrava numa bifurcação: ou permitia que o pai-marido cometesse os mesmos crimes que cometeu nela em sua filha Antonia, de apenas 11 (onze) anos de idade, ou então, agiria conforme seu instinto maternal determinava.

Dando continuidade aos ensinamentos dos mestres acima citados:

Quando os limites da autodeterminação se encontram tão reduzidos que só resta a possibilidade física, mas o nível de autodeterminação é tão baixo que não permite a sua revelação para os efeitos da exigibilidade desta possibilidade, estaremos diante de uma hipótese de inculpabilidade (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2006, p. 521).

 Deste modo, como exigir a capacidade de autodeterminação a uma pessoa que naquele contexto sofria semelhante pressão psicológica, conforme provam suas palavras ainda em depoimento: “[...] o genitor da depoente disse que se a depoente impedisse que ele mantivesse relações com a filha Antônia, mataria a depoente, no que chegou a comprar uma peixeira de 12 polegadas [...]” (PE, 2005, p. 128).

 Mas, mesmo assim, o operador em âmbito judicial não se sensibilizou, quem sabe talvez nem considerasse ou enxergasse ali uma pessoa, que teve sua vida destruída e que estava vendo a vida da filha trilhar o mesmo caminho que a dela.

E, neste momento, indaga-se: onde se encontram e para que sirvam os estudos sobre direitos humanos nas academias. Qual a finalidade de ser signatário de vários tratados internacionais. E exatamente por que, a Constituição Federal de 1988 elegeu como princípio maior a dignidade da pessoa humana se, em sua aplicação, eles não são nem lembrados.

 Ora, foi analisando essa pressão psicológica sofrida por Severina, que o Ministério Público começa a refazer os passos que ela precisou percorrer até chegar nesse dia, verificando inclusive a possível omissão do Estado, conforme ela mesma relatara, dando sequência em seu interrogatório perante aquele Juízo, ao assim aduzir:

[...] há 08 anos atrás [sic] a depoente deu parte do seu genitor, pois este a espancou, correndo de madrugada e conseguindo chegar a 2ª. Delegacia de Caruaru, onde prestou a queixa, onde foi entrevistada pela TV Asa Branca, que filmou a depoente e seus filhos[...]; [...] que a depoente acatando determinação de um policial militar, voltou a residir na casa de seu genitor e companheiro [...] (PE, 2005, p. 129, grifos nossos).

 Mesmo com todo esse relato, Severina permanece em prisão preventiva e seus cinco filhos com sua tia de oitenta anos. Em 28 de abril de 2006, após 162 dias presa, o então Defensor Público que atua no caso, patrono de Severina, chega a requerer a revogação de sua prisão, principalmente fundamentando ponto a ponto os motivos ensejadores que a levou a tanto.

Quanto ao fato de mostrar-se pertinente, como medida assecuratória da instrução criminal e zelosa para com a ordem pública, alega que:

[...] as testemunhas já foram inquiridas e a instrução processual encontra-se praticamente concluída. Já em razão do periculum libertatis do acusado, esclarece que Severina [...] além de exercer a atividade de agricultora, também administra sua casa, contando com sete (7) [sic] filhos [...]. Por fim, quanto a garantia da ordem pública, ratifica que [...] é genitora de sete filhos, havendo notícias que estão em creches, e assim desacompanhados do aconchego materno [...] (PE, 2005, p.151).

 Em respeito ao procedimento legal, o então magistrado solicita o parecer do Ministério Público, que de forma racional e humana assim defere tal pleito:

Analisando o pleito elaborado em prol da requerente, vê-se que, de fato, assiste razão à defesa, haja vista que in casu não se tem nos autos demonstração do periculum in mora. Ademais [...] o MM Juiz, ressaltando a gravidade do delito, apontou como fundamentos para a decretação da prisão o asseguramento da instrução criminal, bem como a garantia da ordem pública. [...] verifica-se, igualmente, do presente caderno processual que a ré é primária, não possui antecedentes criminais, conforme mostra a certidão de fls. 85, e tem endereço nos autos. E ainda: [...] há que se considerar que a processada vem contribuindo para a elucidação dos fatos – uma vez que confessou o delito que lhe é imputado, não se podendo desprezar a circunstância de haver nos autos fortes indícios da contribuição da vítima para o desencadeamento do evento delitógeno (PE, 2005, p. 160, grifos nossos).

Foi nesse parecer que ocorreu uma análise mais aprofundada sobre a situação que Severina vivia em seu próprio âmbito familiar. Quando então é vista como pessoa, como sujeito passivo daquele caso.

Começa o difícil caminho que percorrerá os membros do Ministério Público para provar que, naquele caso específico, havia uma vítima maior. Que o olhar do Estado-Juiz tinha que ser “invertido”, visualizado sob outro ponto de vista, outro ângulo. Sob o qual a análise tinha que ser profunda e completa e os atos precisavam ser apurados não do ponto de partida ocorrido em 2005, mas de muito antes, ou seja, retroceder 28 anos no tempo.

Assim, para melhor ilustrar todo o drama ali vivido, é suficiente fazer uma conta aritmética de multiplicação básica, qual seja 28 (vinte e oito) anos versus 03 (três) relações por semana; prevendo que o ano tem 52 (cinquenta e duas) semanas em média, isso quer dizer que foram 4.368 (quatro mil, trezentas e sessenta e oito) vezes, obrigada a ter relações sexuais - lembrando que parte delas a lei considerara verdadeiro estupro - ao longo de sua vida com seu próprio pai. Sem contar as diversas vezes em que sofreu agressões físicas, moral e psicológica.

 Como dito acima, a conta matemática é fácil, pois se aprende ainda no ensino fundamental, mas nem essa possibilidade foi conjecturada pelo então magistrado, a fim de se pronunciar, amparado pelos tantos tratados internacionais que versam sobre os direitos humanos.

 Acabou optando em proferir um despacho informando que: “[...]se pronunciaria sobre tal pedido após a audiência de oitiva das testemunhas de defesa” (PE, 2005, p. 168). E assim, manteve a medida cautelar, não colocando Severina em liberdade provisória até seu julgamento.

 Há, como se percebe, um distanciamento entre uma visão voltada aos direitos humanos (pedagogicamente falando) e os procedimentos formais exigidos no Código de Processo Penal. Essa “proteção confortável”, assegurada pela lei, faz gerar um operador de direito mais passivo, menos atuante e, consequentemente, mais omisso em seu dever precípuo que é o de voltar-se a análise do princípio maior, assegurado constitucionalmente, qual seja o da dignidade da pessoa humana.

 As testemunhas foram ouvidas e, em sua maioria, informa que: “[...] já haviam ouvido falar que a vítima dos autos batia na acusada. Que ela ainda era esposa e mãe de seus filhos” (PE, 2005, p.170). Eis que em seu despacho o MM. Juiz, mesmo com todos os indícios e já tendo o parecer favorável do MP e das testemunhas, resolve indeferir o pedido de revogação da prisão preventiva, fundamentando sua decisão interlocutória nos seguintes agravantes:

Não cabe a este Juízo, no momento, analisar a participação ou não da acusada no crime – vez que tal fato já restou esclarecido com a própria confissão da mesma e com os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pelo Ministério Público – mas tão somente a necessidade ou não da permanência da denunciada segregada.” “Não há dúvida de que os fatos imputados a acusada revestem-se de extrema gravidade. E prossegue: [...] Desta forma temos a necessidade de se preservar a credibilidade do Estado e da Justiça em face da intranquilidade que os crimes desta natureza geram na comunidade. E, além do que: [...] Diante do exposto, não vislumbrando qualquer modificação nos autos que enseje a revogação de prisão cautelar [...]; Assim: [...]INDEFIRO O PEDIDO DE REVOGAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA [...] (PE, 2005, p.178 grifos nossos).

 Já havia nessa época uma severa crítica da doutrina sobre a mantença da medida cautelar amparada no fundamento da “garantia da ordem pública”, previsto na antiga redação do art. 312[23] cumulado com o Parágrafo Único do art. 310[24], ambos do CPP, que poderia ser utilizado de forma análoga e conceder a liberdade provisória a Severina. Posto que, segundo o doutrinador Avena (2009, p. 881) “[...] deve ser admitida a prisão preventiva em hipóteses de real e inequívoco abalo social provocado pela prática de crimes de extrema gravidade [...]”.

Portanto, nos casos em que não se configurassem tais realidades deveria ser deferida a liberdade provisória que, como no caso em tela, não houve abalo social nem a acusada era de altíssima periculosidade, e ainda, pudesse importar no desassossego social. E, mesmo assim, manteve-se a medida cautelar amparada nesses supostos requisitos.

 Os trabalhos da Defensoria Pública e do Ministério Público não esmorecem, ao contrário, o defensor público amparado no parecer da promotoria, impetra um Habeas Corpus cumulado com pedido de Concessão Liminar; e, com fulcro no constrangimento ilegal, em face do excesso de prazo, além da infundada custódia cautelar, requer a sua liberdade, nos seguintes termos:

[...] que meras conjecturas não servem de suporte para o decreto segregatório, aliando-se à náfega invocação de infração hedionda, bem ainda não se levando em consideração a primariedade, bons antecedentes, residência e atividade laboral reconhecidas, mãe de sete filhos [sic]; e assim descipiendo dizer-se que indemonstrado o periculum libertatis da paciente e dessa maneira patente o constrangimento ilegal que se impôs [...] (PE, 2005, p.192, grifos nossos).

 Em grau de recurso, sobe para julgamento no Tribunal de Justiça da Capital, em Recife, no qual é indeferido com seguinte fundamento:

Como sabido, a concessão de liminar em habeas corpus é medida de extrema exceção, não prevista em dispositivos legais, somente admissível pela doutrina e jurisprudência como forma de sanar ilegalidades insanáveis [...]; E prossegue: [...] Na hipótese em tela, o constrangimento não se mostra com a nitidez transmitida da inicial, estando a exigir um exame mais minucioso [...]; E, ademais: [...] Ante o exposto, indefiro a liminar pleiteada (PE, 2005, p.208, grifos nossos).

 A Ementa é publicada com seguinte teor: “[...] as alegadas condições favoráveis da paciente – primariedade, residência fixa, profissão definida e bons antecedentes – não são suficientes para obstar a providencia cautelar constritiva” (PE, 2005, p. 269).

 E o Acórdão no qual manteve a segregação de Severina é assim proferido: “[...] por decisão unânime, em denegar a ordem do presente habeas corpus [...]” (PE, 2005, p.269). Insatisfeito com o pedido de revogação da prisão de Severina, o então MM. Juiz, assim fundamenta sua decisão pela mantença da segregação de Severina como providência da preservação da ordem pública:

O delito de que se cuida chocou profundamente a comunidade. A mandante, como multiplamente noticiado nos autos, convivia maritalmente com o extinto, apesar de ser seu genitor. [...] seu combativo Defensor em traçar perfil violento da vítima, um sexagenário, sinaliza para uma futura sustentação de tese de inexigibilidade de conduta diversa, argumento assíduo nas tribunas do júri sempre que no banco dos réus se senta uma mulher. Sem qualquer incursão no mérito, por incabível, não se pode deixar de estranhar que alguém atravesse trajetória de vida que inclui a geração de numerosa prole (nada menos do que doze filhos), compartilhando o mesmo teto e leito com o próprio pai, e já no acaso da existência deste é que se dê por imersa em insuportáveis pressões ou ameaças. (PE, 2005, p.312, grifos nossos).

 Abstrai-se dessas palavras que o MM. Juiz exerceu um olhar tendencioso, apresentando um juízo de valor capaz de entrever um viés discriminatório e supostamente como se o genitor-marido estivesse sendo o “envolvido” sexualmente por Severina.

Essa inversão analítica da situação, na qual entrevê a manipulação ocorria por parte de Severina para com seu pai que, naquele momento, foi qualificado como um “sexagenário”, insinuando um comportamento que visa colocar o pai-avô-violador como sendo o “inocente” daquela história.

Afinal, não se pode escusar que esse “sexagenário”, por ele descrito, era um homem robusto que detinha além do poder patriarcal (com análise na essência da palavra), um desvio de personalidade com características de agressividade e violência.

Ademais, já havia demonstrado interesse em continuar cometendo os mesmos crimes (estupro, abuso sexual, agressões físicas e psíquicas, além de maus-tratos e cárcere privado etc) com sua filha-neta, Antônia. E, mesmo sob toda essa análise, ainda continua com seguintes fundamentos a sua indignada visão do caso.

 A crueldade das palavras acima demonstra o perfil de um operador de direito no âmbito do Poder Judiciário exercendo uma exacerbada parcialidade e pré-julgamento totalmente contrários aos ditames legais. Profissional que deve por obrigação assegurar a direção processual regida pela estrita legalidade sem comprometer a defesa nem a acusação.

 Ratifica-se o entendimento acima abordado (dissociação entre a aplicação de Direitos Humanos e as searas Penal e Processual Penal), nos quais deveriam estar interligados, já que o Direito Penal e uma parte do Processual Penal são direcionados às pessoas.

 E ainda complementa:

Teço tais considerações apenas para apontar o impacto que a prematura libertação [...]; [...] traria em seu bojo sobre a ordem pública. [...] O ofendido foi abatido no recesso do lar, por dois homens por menos da metade de sua idade, orquestrados e sob promessa de recompensa pela mandante (PE, 2005, p.312).

 Eis que o defensor público encarregado deste caso não se acanha, nem se abate com mais essa demonstração de insensibilidade no âmbito da Justiça. Talvez tenha nesse momento ganho mais força, pois postula um Recurso Ordinário, em sede do Habeas Corpus, mantendo o pedido em caráter de liminar, ratificando o: “[...] gritante excesso de prazo, DUZENTOS E CINQUENTA E UM DIAS de segregamento e, assim configurando constrangimento ilegal” (PE, 2006, p.234, grifos do autor).

 Com os mesmos fundamentos do Habeas Corpus anterior e consubstanciado no excesso de prazo, além do agravante de perceber que a segregação de Severina embasava-se apenas no inquérito policial, assim pleiteia nova revogação da prisão cautelar:

Registre-se que o decreto cautelar foi exarado, como já se disse, logo no início do inquérito policial, representação eivada de fatos aferidos de fogadilho, objetivando demonstrar à sociedade sem a devida aferição dos fatos. Os fatos vieram à tona na conclusão do inquérito policial e no curso da instrução criminal (PE, 2006, p.236, grifos nossos).

 Percebe-se nas palavras do aguerrido defensor, que houve além da forma precipitada da decretação da prisão preventiva de Severina, um suposto julgamento antecipado, ou talvez, uma carência mais humana na análise dos autos e fatos que envolviam aquela situação.

Aguarda-se que a Colenda Corte, após o prazo legal e consequente instrução pormenorizada das informações constantes na peça exordial, possa analisar, com um olhar mais atento e humano, o pedido de deferimento da cautelar.

Em 14 de novembro de 2006, passados quase um ano de segregação cautelar, enfim, Severina consegue por decisão unânime da Quinta Turma do STJ, a revogação de sua prisão preventiva (PE, 2006, p. 289).

No curso de um processo, como in casu, em que há um homicídio doloso, deve o representante de o Ministério Público apresentar Denúncia (ato que se inicia uma ação penal pública), por deter a titularidade da referida ação que, nesse exemplo, é incondicionada.

Vale salientar que mesmo apresentando a denúncia, não fica adstrito ao pleito condenatório, devendo atuar com imparcialidade, podendo inclusive requerer ao Plenário do Júri a absolvição do acusado; posto ser uma de suas funções, a de guerrear as violações aos direitos humanos e de democratizar o entendimento e utilização das normas previstas tanto na Carta Magna, como nos Tratados Internacionais que versam sobre esse tema, e assim, os fazer efetivar a quem de direito possa.

 Em que pese todo o exposto, o procedimento deve ser seguido e o magistrado em sua decisão deve julgar procedente ou não a denúncia, caso se convença da existência do crime e de indícios que o réu seja o seu autor, pronunciando os acusados.

O instituto da Pronúncia significa que o MM. Juiz dará prosseguimento no processo criminal para que os acusados possam ser julgados pelos seus pares, isto é, por um Tribunal de Júri Popular, conforme regia a antiga redação do art. 408 do Código de Processo Penal[25].

 Assim, determina o MM. Juiz: “Examinando-se toda a prova colacionada aos autos, encontro indícios suficientes para levar os réus ao julgamento perante o Tribunal Popular do Júri” (PE, 2005, p. 321).

4.3 A MOBILIZAÇÃO SOCIAL E O PEDIDO DE DESAFORAMENTO

 Ocorre a mobilização social quando um grupo de pessoas é despertado por alguma injustiça, ferramenta que une indivíduos por um mesmo ideal e que converge com a intenção de resolver uma questão na qual só aquele que detém o poder facilmente conseguiria.

Essa união gera um “peso” na contrabalança capaz de equalizar esse dito poder. Mas essa mobilização vai além, não deixa calar aquilo que muitos sabem, veem, mas fazem como se não existisse. A violência contra a mulher, no âmbito familiar, é fato gravíssimo e corriqueiro nos recônditos deste País, principalmente nos interiores.

Tudo começou quando um grupo de estudantes da Faculdade do Vale do Ipojuca – FAVIP trouxe para ser analisado em sala de aula o caso de Severina. Os acadêmicos de Direito se reuniram para constituir, às suas expensas, um advogado particular para efetuar no auxílio técnico junto ao representante da Defensoria Pública.

Esse fato gerou uma grande expectativa nesse meio, chegando ao tão contestado e discriminado programa do Cardinot, exibido pela TV Jornal, afiliada do SBT – Sistema Brasileiro de Televisão, em Pernambuco.

 O então jornalista comentou em seu programa, em 11 de novembro de 2008, por volta das 07h, que a verdadeira vítima era Severina, por ter sido estuprada por seu genitor desde quando tinha 09 anos de idade, não lhe havendo outra saída, senão a que empregou no caso.

Essa mobilização fez com que terceiras pessoas se organizassem para distribuir materiais impressos (panfletos) que explicavam a Lei Maria da Penha no momento em que ocorresse o julgamento em Plenário, conforme relata o representante do parquet em seu pedido de desaforamento (PE, 2008, p. 425).

 Uma das características daquele apresentador televisivo é fazer alertas, e um desses foi o de avisar que iria ficar acompanhando o caso, e que inclusive a população de Caruaru encontrava-se revoltada.

Esse fator, por mais simples possa parecer, foi decisivo para a fundamentação utilizada pelo Ministério Público em relação ao desaforamento, além da coesão pública voltada para absolvição de Severina. Afinal, esse meio de comunicação tem grande audiência, mas sofre severas críticas do meio acadêmico, por utilizar uma linguagem sem embasamento jurídico, muitas vezes do senso comum.

Todavia, neste caso, foi peça chave de suma importância por oferecer um olhar mais humano e digno àquela ao qual seria a real vítima, primeira pelos pais e depois pelo seu Estado de origem.

 O então promotor de justiça requer o desaforamento e assim fundamenta seu requerimento:

O caso ganhou imensa notoriedade na cidade de Caruaru, principalmente pelo fato de se tratar de um trágico desfecho de uma relação incestuosa que se perdurou por mais de vinte anos, isto contando apenas após a idade que a requerida ficou maior de dezoito anos de idade. O fato é que o [sic] meios de comunicação em geral alardeiam que a requerida é quem foi vítima de um bárbaro crime de estupro, que foi obrigada a manter relações sexuais com o seu genitor desde quando ainda era menor de quatorze anos de idade e assim fazem espraiar aos quatro cantos de Caruaru que não havia outra solução para a requerida senão a empregada no caso, qual seja o homicídio da vítima (PE, 2005, p.426, grifos nossos).

 Esse caso ganhou realmente notoriedade naquela Comarca, apesar do alto grau de religiosidade, amparado nos costumes católicos para as pessoas de municípios menores, principalmente do interior deste País. Mas a verdade é que o fato chocou a comunidade, gerando revolta e indignação pelas características e circunstâncias que o envolveram.

O ambiente familiar, envolto pela violência perpetrada a uma menor, durante tantos e tantos anos, bem como a omissão do Estado e, por fim, a nítida possibilidade da sequência de todos esses atos e fatos com uma segunda vítima, qual seja, Antônia, de apenas onze anos, à época.

Tudo isso fez asseverar as palavras no requerimento do promotor, que ainda alegou a influência que os jurados teriam recebido, já que são pessoas como todas as outras naquela cidade podendo agir com parcialidade, e assim:

 [...] que terceiras pessoas já estavam preparando movimento de distribuição de material referente à lei Maria da Penha para distribuir às pessoas que comparecerem à sessão do júri, ou seja, inclusive os jurados que sem qualquer distinção chegam ao fórum pelos portões destinados aos jurisdicionados (PE, 2005, p.426).

 E como não poderia deixar de reconhecer a audiência do programa televisivo supracitado, complementa: “[...] em virtude da repercussão que a imprensa promoveu, enfatize-se, em favor da ré, [...] o programa de televisão do Cardinô [sic], da TV Jornal, a expectativa é de um plenário lotado para assistir o julgamento de um ‘incesto’” (PE, 2005, p.427).

Além da mobilização no setor das comunicações, outro seguimento da sociedade também contribuiu para o desfecho do caso, pela consequência que àquele setor gerou, foi o meio acadêmico numa faculdade local, como dito acima.

Dando sequência, o promotor enfatiza suas palavras: “[...] espera-se também grande movimento dos estudantes universitários em favor da requerida, todos sob o enfoque da violência contra a mulher” (PE, 2005, p.427).

 Insta ressaltar que o pedido de desaforamento: “[...] consiste no deslocamento do julgamento pelo júri para Comarca distinta daquela onde tramitou o processo criminal”, declara o doutrinador Avena (2010, p.802).

E que se fundamenta nas seguintes hipóteses previstas nos artigos 427, caput, e 428, caput, ambos do Código de Processo Penal (BRASIL, 2012)[26], conforme assim delimita: interesse de ordem pública, gerado basicamente pela intranquilidade social; dúvida sobre a imparcialidade dos jurados, acaso exista um comoção social no sentido de uma tendência prévia do julgamento, podendo ainda ser pela segurança pessoal do réu e, por fim, o não aprazamento da data para o júri no prazo de até seis meses, fator que caracteriza excesso de trabalho na comarca.

 Portanto, conforme o exposto acima, o atento promotor requer o desaforamento daquele processo para outra Comarca, a fim de garantir a imparcialidade do julgamento pelos jurados e assegurar o interesse da ordem pública, como assim reduz a termo:

[...] não restando laivos de incerteza, quanto ao comprometimento da ordem pública para a consecução do julgamento em epígrafe nesta comarca, assim como, não havendo dúvida do comprometimento da imparcialidade dos jurados, e bastando para tanto que paire dúvidas, para proceder a um julgamento isento da ré, fazendo justiça no caso concreto [...] ; [...] requer o pedido de desaforamento. (PE, 2005, p.433).

 Dessa forma, segundo o Termo de Julgamento datado em 22 de abril de 2010, o processo de Severina é desaforado para a Comarca da Capital, Recife - PE, para ser julgado pelo órgão julgador da 3ª Câmara Criminal, que por unanimidade deferiu o pedido, passando a apresentar seguinte numeração: 0041053-61.2010.8.17.0001 (PE, 2010, p. 488).

 Após todo o trâmite processual legal necessário, para quando ocorre um desaforamento como in casu, sai em pauta o Termo de Designação para a realização do julgamento de Severina, datado para o dia 26 de maio de 2011, às nove horas, em Audiência de Sessão da 4ª Vara do Tribunal do Júri da Capital.

4.4 O DESFECHO DA VIDA DE SEVERINA

O princípio da dignidade da pessoa humana fundante da Constituição Federal vigente adotou a visão opositora ética kantiana de que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas.

E, para não deixar de utilizar suas palavras na íntegra, o autor sintetiza tal pensamento na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos[27], através do qual, sabiamente classifica como: “[...] imperativo prático” orientando pedagogicamente a conduta do ser humano segundo qual “age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (2002, p.59).

E ainda, não estando totalmente seguro da postura retilínea que deveria seguir o ser humano, sedimenta assim a frase acima, o ilustre filósofo da antiga Prússia (1785):

[...] o homem - e, de uma maneira geral, todo ser racional - existe como um fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade [...]. E prossegue: [...] Os seres, cuja existência não assenta em nossa vontade, mas na natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, um valor meramente relativo, como meios, e por isso denominam-se coisas, ao passo que os seres racionais denominam-se pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, ou seja, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, portanto, nessa medida, limita todo o arbítrio (KANT, 2002, p.58, grifos nossos).

 Inconcebível permitir que um pai se ache no direito de “apossar-se” da filha como fez o exemplo trazido nesses autos. Que alguém pratique a quantidade de violações humanas em outrem, como as que ele praticou sem ter nenhuma punição, quiçá impedimento.

A omissão familiar, social e estatal que ali juntas permitiram que esse fim trágico ocorresse é o que talvez de pior tenha existido e ocasionado tantas consequências graves, como os estupros ocorridos naquele ambiente, além das agressões físicas, morais e psicológicas sofridas por Severina; os filhos indesejados e com sequelas que foram gerados e, por fim, a morte do seu causador.

Tantos danos poderiam ter sido evitados se um ente desses sequer tivesse tido uma ação no momento certo. Como se pode extrair, a omissão gerou consequências devastadoras para as pessoas ali envolvidas, bem como para a sociedade.

 Uma filha não pode jamais ser considerada “coisa” para alguns homens que se intitulam “pai” e, que por isso, acham-se no direito de primeiro se “servirem” de suas filhas, da forma mais violenta e humanamente aceitável no seio de tantos lares brasileiros, para não dizer no mundo. Já que casos como esse, lamentavelmente ainda ocorrem, inclusive, em países considerados centrais.

 Conforme todo o relato e análise percebe-se que a absolvição de Severina ocorreu bem antes do seu julgamento em Plenário do Júri. A conscientização social advinda de fora do Judiciário fez soprar a brisa da justiça e dela fazer valer a força espiritual dos que acreditam que leis existem tanto para punir como para absolver.

Que ali havia uma vítima maior e que muito possivelmente outras vítimas viriam, caso aquela atitude drástica (já que outras foram tomadas, porém, não consideradas) não fosse tomada, com intuito de fazer estancar a violência que ocorria no silêncio daquele lar, conforme relatara Severina, em seu Termo de Interrogatório:

[...] a vítima disse que se a interroganda não aceitasse que ela, vítima, se relacionasse com ANTONIA, filha da acusada e da vítima, esta, a vítima, mataria a interrogada; Que a vítima tentou durante três dias ‘ser dona’ da menina; [...] Que a vítima lhe bateu durante esses três dias; Que a interroganda passou três dias dormindo no pé da parede, para evitar que a vítima se apossasse da menina; Que a vítima dizia que se ela não fizesse um acordo, a mataria [...] (PE, 2010, p. 577, grifos nossos).

 A torpeza da atitude de seu pai-marido para com ela e a filha-neta é tão repulsiva que faz qualquer ser humano parar e analisar um pai monstruosamente violento.

E o mais grave, quantos desses soltos por aí não existem praticando os mesmo atos ou ainda piores, inclusive neste momento em que são analisados esses autos, sem que suas vítimas tenham a quem recorrer, como o ocorrido com Severina?

 Ao adentrar-se na análise do caso, é possível antever que aquele ambiente familiar era totalmente deturpado e que na concepção de uma menina de nove anos, exigir dela discernimento para eticamente reprovar tais posturas que encontrava ali, em sua família, é algo quase impossível.

Afinal, ao olhar para os lados e observar as condutas do pai e da mãe, bem como dos familiares próximos e, por fim, seus vizinhos, os quais todos sabiam o que ali se passava e ninguém tivera sequer uma atitude para proteger essa criança. Ou ainda, para dizer-lhe que tudo o que se passava naquele ambiente era totalmente contrário à moral, aos costumes éticos e religiosos, além de ser legalmente proibido.

 Sabe-se que a educação doméstica é aquela em que os exemplos passados pela autoridade patriarcal (família em sentido estrito) devem ser seguidos, mesmo que na maioria das vezes os filhos não gostem, muito menos concordem, mas são obrigados a cumprir. É o denominado senso de obediência aos pais que caracteriza a aparente harmonia do convívio num lar.

Assim, as atitudes e atos que, naquele local são tomados, e reiteradamente repetidos, vão se conduzindo como algo comum, para ser posto em questionamento. E ainda que fosse questionado, concretamente, não se saberia a quem questionar, já que isso é o que se fomenta a denominada educação familiar, sob a qual ninguém deve se intrometer, por ser “assunto dos outros”.

 Essa foi toda a vida de Severina no seio daquele ambiente. Uma criança, a princípio, que não tinha a quem pedir socorro, exatamente por saber que não seria ouvida, afinal todos ali sabiam o que acontecia e nada faziam para estancar tal mal. E este foi reiteradamente praticado por longos vinte e oito anos, até o dia em que ela percebeu que ele poderia ser praticado também em face de sua filha Antônia, algo que para uma verdadeira mãe era uma monstruosidade deixar acontecer.

E, entre o conflito de deixar que algo similar acontecesse com sua filha, Severina chegara a um divisor moral e ético insuportável, e ainda, se encontrava numa bifurcação: ou presenciaria o retorno de tudo aquilo que passou em vida (que já não tinha muito valor) ou acabaria com a do agressor, seu pai-marido. Importante ressaltar que a noção de vida, ou melhor, o interesse de viver ela havia perdido há vinte e oito anos.

 Ademais, toda pessoa tem direito a uma infância e, no caso de uma menina, há a ideia das “estórias” que são contadas como sendo de fada no que se refere a casamentos com príncipes encantados. Em que essa menina pode escolher seu “príncipe” e com ele se casar e ter filhos.

No caso de Severina, esse direito e sabor lhe foram roubados (com toda a essência que a tipologia apresenta na seara Penal) durante 28 anos e, por consequência, cinco filhos que, pela proximidade genética, dois apresentam problemas especiais.

 Assim, conforme consta em seu relato em Plenário:

[...] Que começou a trabalhar com seis anos de idade; Que não sabe ler nem escrever; Que só sabe assinar o nome; Que a interroganda não teve infância; Que a mãe da interroganda foi conivente com a situação; Que a vítima amarrou a interroganda com uma camisa e amarrou a boca da interroganda para que ela não gritasse [...] (PE, 2010, p. 578, grifos nossos).

Essa realidade nua e crua fez enxergar uma comunidade católica inteira da cidade de Caruaru, região Nordeste de um País periférico em relação aos do centro (como asseverado acima) ditos como desenvolvidos e, consequentemente, criadores de um verdadeiro sistema de direitos humanos que a todos supostamente faz ser alcançados.

Mesmo tendo sido deferido o pedido de desaforamento daquele julgamento para outra comarca, agora, uma localizada na capital, logo, outro palco, com outro público e atores da seara Judiciária.

 Mesmo assim, aquele espírito humano não esmoreceu, ao contrário, sobrepujou todas as expectativas e fez efetivar a justiça. Aquela tão desejada por todos, tanto divina (para aquela comunidade e envolvidos) como a dos homens, através da conduta profissional do então promotor do parquet, investido em sua constitucional imparcialidade, para fundamentar tal pedido, relatada na sentença do Júri:

Hoje, a ré submetida a julgamento perante este 4º Tribunal do Júri, tendo o Representante do Ministério Público, em Plenário, pedido a absolvição da acusada, esgrimindo a tese de inexigibilidade de conduta diversa, posição referendada pela defesa (PE, 2010, p. 585, grifos nossos).

 A tese encontrada e defendida para culminar na absolvição de Severina em Plenário, pelo representante do parquet, foi à inexigibilidade de conduta diversa, segundo qual não se encontra prevista no Código Penal brasileiro de forma explicita; devendo o operador do direito interpretá-la com base na teoria finalista da ação, sob a modalidade supralegal de excludente de culpabilidade. Isso ocorre porque se encontra excluído um dos seus elementos, qual seja, a exigibilidade de conduta diversa.

Vale salientar que a intenção deste trabalho não é adentrar no âmbito penal, materialmente falando, sobre o instituto da culpabilidade. Mas apenas, configurar o caminho percorrido para se conseguir a liberdade de Severina, e sua consequente libertação de todos os cárceres a que esteve submetida em vida até então.

 Destarte, o cometimento de um crime é analisado pelos elementos que o constituem, quais seja: fato típico cumulado com o ato ilícito, bem como a culpabilidade do agente, isto é, neste requisito é realizado um juízo de valor de sua conduta. Assim, conforme explicitado pelo doutrinador Bitencourt:

 Os elementos que integram a culpabilidade, segundo a teoria normativa pura (a concepção finalista), são: a) imputabilidade; b) possibilidade de conhecimento da ilicitude do fato; c) exigibilidade de obediência ao Direito (BITENCOURT, 2009, p. 373).

Para melhor explicar o que seria cada um desses elementos, faz-se necessário continuar com os ensinamentos do mesmo autor (2009, p. 374) que assim aborda o conceito da imputabilidade, como sendo: “[...] a capacidade ou aptidão para ser culpável”. Em suma, é a consciência livre e desimpedida de ali estar praticando algo que é ilícito.

No que se refere à possibilidade de conhecimento da ilicitude do fato, esta se configura quando o agente necessariamente: “[...] conheça ou possa conhecer as circunstâncias que pertencem ao tipo e à ilicitude”, e, por fim, a exigibilidade de obediência ao Direito, que segundo ele, caracteriza-se: “[...] pelo conhecimento do injusto penal”; em outras palavras é o conhecimento e o agir em total conformidade com o que está previsto no direito.

 Após todo o exposto, importa ressaltar que a inexigibilidade de conduta diversa se enquadra quando dependendo das circunstâncias em que o autor se encontra e comete o fato considerado típico e ilícito, caso sejam anormais e, ao final, levem o agente a não ter outra opção senão aquela praticada. Pois, conforme elucida Bitencourt (2009, p. 376): “Nessas circunstâncias, ocorre o que se chama inexigibilidade de outra conduta, que afasta o terceiro elemento da culpabilidade, eliminando-a, consequentemente”.

 A promotoria seguiu essa linha de defesa, porque não seria possível elencar as hipóteses previstas no artigo 23 e seus incisos no Código Penal brasileiro nas quais se referem ao estado de necessidade e a legítima defesa. O primeiro vem conceituado no artigo 24 do referido código e a segunda, no artigo 25 do mesmo diploma, prescrevendo assim:

 Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem (BRASIL, 2012).

 Na análise concreta do fato, para a caracterização do estado de necessidade tornar-se-ia necessário o preenchimento simultâneo dos requisitos exigidos no tipo penal, quais sejam: “[...] perigo atual e inevitável; não-provocação voluntária do perigo; direito próprio ou alheio; elemento subjetivo; finalidade de salvar o bem do perigo e, por fim, a ausência de dever legal de enfrentar o perigo” (BITENCOURT, 2009, p. 335).

 Severina não se encontrava, no momento do homicídio, em perigo iminente e nem poderia ser considerado inevitável a sua atitude. A idealização premeditada do crime, descaracterizou o que poderia ser a não-provocação voluntária do perigo. Como o preenchimento da norma se perfaz com a cumulatividade desses elementos, ao faltar qualquer deles, resta prejudicada a sua utilização.

No que refere à legítima defesa, os requisitos objetivos e subjetivos necessários para seu preenchimento de forma concomitante são, nas palavras de Bitencourt (2009, p.341): “[...] agressão injusta, atual ou iminente; direito próprio ou alheio; meios necessários usados moderadamente; elemento subjetivo; animus defendendi”.

Em conformidade com o caso, esses elementos também não poderiam ser reclamados já que o crime foi configurado como ocorrido numa emboscada, e as agressões que Severina sofria não estavam, exatamente, ocorrendo naquele momento.

 Na esteira das impossibilidades acima descritas, restou, conforme abordado em Plenário do Júri pela promotoria, a inexigibilidade de conduta diversa a Severina pelo conjunto de agressões e violências causadas pelo seu pai-marido.

Não sendo, portanto, possível e humanamente esperado outra conduta, senão aquela ao qual conseguiu materializar, com a ajuda de terceiros, para eliminar todo o seu sofrimento e os de seus filhos.

Vale salientar que, se utilizou a ajuda de terceiros é porque sozinha não poderia e talvez não conseguisse consumá-lo. Afinal, não é fácil dimensionar ou quantificar os conflitos e angústias passadas por essa mulher-mãe-filha e que teve que vivenciar para chegar a esse desfecho.

Sofrimentos e abusos que nenhum ser humano sob nenhum pretexto presume-se possível passar ou ainda, que qualquer outro imagine admissível ocorrer.

 Ademais, qual mãe imbuída de instinto materno teria agido de forma diversa do de Severina, que se sentia a única responsável pela segurança de Antônia, já que não tivera ninguém que agisse assim para com ela? Nenhum ser poderá retirar ou mitigar o grau de responsabilidade que Severina teve para com sua filha nem questionar a prova de amor, mesmo não tendo recebido esses exemplos de sua mãe.

 Nem muito menos a que ponto chegou para fazer valer essa sua noção, e que consequências teve que enfrentar e conviver para o resto de sua vida. Essa mãe jamais poderá ser questionada por omissão do dever de cuidado para com um filho. Fato que também foi vítima, seja pela família em seu sentido estrito, seja pelo Estado do qual procurou amparo por cinco vezes e não obteve nem o direito de ver suas alegações ser averiguadas.

Conforme esclareceu em seu Termo de Interrogatório:

[...] procurou as autoridades policiais por cinco vezes, para denunciar o fato; Que na cidade de Brejo da Madre de Deus, a vítima chegou a ser presa por uma noite, e teve um revolver apreendido pela autoridade policial; Que em Caruaru a vítima contratou um advogado e se livrou da queixa prestada pela interroganda (PE, 2010, p. 577, grifos nossos).

 O problema reside no fato de que para toda ação ou omissão existe uma reação com consequências e respostas nem sempre satisfatórias ou mesmo aceitáveis, já que normalmente trata com valores tão caros como a vida de outrem.

 Mas o evento é que os danos sofridos e suportados por toda a vida de Severina foram enormes de ser absorvidos e por que não dizer por qualquer pessoa sã que tivesse a possibilidade de ter o menor amparo familiar, social ou estatal possível?

Julgar ou emitir juízos de valores para quem está de fora de uma situação como a que aqui foi estudada pode até parecer fácil, mas o difícil é se colocar em seu lugar e usar da devida sinceridade na resposta ao se fazer a seguinte pergunta: em seu lugar e circunstâncias, alguém teria feito diferente?

 A aferição em escalas, caso seja possível racionalmente ser realizada, dos danos suportados por Severina e a conduta que teve com seu pai-marido foi muito bem analisada pelo corpo de jurados que conseguiu visualizar as circunstâncias na qual o evento danoso ocorrera, e reconhecer todas as violações por ela sofridas.

Assim, a absolvição de Severina foi o reconhecimento de sua posição como real vítima de todo aquele episódio e o início da reparação pelo Estado ocorrendo dentro do Poder Judiciário. A necessidade de restabelecer a dignidade dessa pessoa é de suma importância, já que é mãe de cinco filhos que dependem totalmente dela.

 A volta do equilíbrio na sociedade torna-se necessária diante de toda essa turbação social a qual se instalou naquela família, mais precisamente Severina e, hoje, seus cinco filhos.

Espera-se que essa mulher supere todos os seus dramas e consiga, enfim, viver de forma plenamente livre e alcance um pouco de felicidade dentro de sua nova realidade, porque conforme nos ensina o mestre Almeida (2011, p.40): “A diversidade de violações não impede o que é mais rico no gênero humano: a consciência do Ser diante dos desafios, como também a infinita capacidade de superação”.

 Portanto, torce-se para que Severina consiga superar todas as suas dificuldades e viva com dignidade, além de poder ver seus filhos crescerem da forma que toda mãe sonha, dentro de um padrão aceitável socialmente de normalidade.

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Sobre a autora
Ana Cláudia Diniz de Queiroga Vanderley

Advogada militando em causas que versam sobre direito de família, trabalho e consumidor. Pós-graduanda na área de Direito do Trabalho e Processual Trabalhista. técnica em contabilidade

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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