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Violência cotidiana e escolar

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Agenda 06/03/2014 às 10:29

No cotidiano escolar, a violência se apresenta contra o patrimônio escolar, e se faz presente nas relações estabelecidas entre os alunos, e entre os professores e gestores. O artigo aborda o complexo tema da violência nesse contexto.

A análise da violência deve ser feita a partir de uma reflexão sobre o processo de atribuição de identidades e afirmações de diferenças, o que, por sua vez, está relacionado ao processo de exclusão/inclusão simbólica dos jovens.

Na sociedade atual, o indivíduo tornou-se o centro. E toda a relação que se estabelece com o mundo trava-se a partir do seu eu. Há uma primazia do individual frente ao coletivo, um descrédito em relação aos movimentos sociais e uma despreocupação pelo espaço público.

Os indivíduos voltam-se ao seu eu. O mundo exterior, como diz Lasch, só interesse como fonte de gratificação ou frustração.

O indivíduo é fruto da história, de modo que essa centralidade do indivíduo está presente nas diferentes esferas de sua vida cotidiana, privada, profissional etc. A ideologia que domina os homens é da gratificação dos impulsos e da busca do prazer.

A ideia que está presente é que qualquer um pode ser o que quiser e ter sucesso sem esforço. A vida, então, resume-se na busca da boa saúde e do bem-estar por meio de exercícios, dietas, drogas e autoajuda. E, no cotidiano, o importante é o presente, o imediato, e estão os objetivos limitados e definidos.

As relações interpessoais são pautadas pelo benefício próprio. Espera-se o prazer imediato e gratificação imediata.

No século XX, a ética valorizada é a do meu desejo. A alegoria atual é o presente, o gozo, a busca do novo e do imediato.

O homem, hoje, busca um sentido para sua vida, deseja aprovação e reconhecimento, desconfia da competição, exalta a cooperação, o trabalho em equipe e o respeito às regras e regulamentos desde que não se apliquem a ele.

As pessoas vivem para o momento, para si e não para a posteridade. Há um horror à velhice e à morte.

O homem contemporâneo busca freneticamente um sentido para sua vida, deseja aprovação e reconhecimento, desconfia da competição, exalta a cooperação, o trabalho em equipe e o respeito às regras e regulamentos desde que não se apliquem a ele.

Há uma perda do sentido de continuidade histórica e pessoal, de geração passada que continua na geração futura. O consolo de continuarmos nos nossos filhos não serve mais; pelo contrário, os pais não devem viver por meio de seus filhos e deve adiar a paternidade.

A sensação é que a geração mais velha não tem nada a ensinar para as mais novas. Isso afeta a família. A geração seguinte não é apreendida como continuidade, de forma que mais vale o direito pessoal e a autossatisfação.

A sociedade de consumo enfatiza as escolhas de estilos de vida e de identidades e a satisfação imediata dos desejos. A publicidade indica estilos de vida, bens e conforto que devem ser almejados, tais como apartamentos, carros e determinadas formas de lazer.

A ideia é que o sucesso está aberto a todos e depende apenas do esforço pessoal, ou seja, do mérito próprio. Todos os estilos de vida são válidos e não há o direito de impor seu próprio julgamento moral ou suas próprias preferências aos outros.

Conforme alega Young, as pessoas vivem como se estivessem em um grande bazar, no qual a meta é a autorrealização que muitas vezes se liga a altas expectativas de sucesso material. A escolha é valorizada, e a tradição é desvalorizada, de forma que as pessoas não aceitam a autoridade da tradição e mesmo a da comunidade se forem contrárias aos seus ideais.

Na sociedade contemporânea não há mais identidade ou posição social predeterminada. E, hoje, as escolhas são maiores e a vida está menos baseada no trabalho.

Segundo Giddens, as possibilidades de escolha permitidas pelo consumo, a flexibilidade do trabalho, o questionamento de crenças e certezas estabelecidas e pelo nível aumentado de reflexão sobre si mesmo, somadas à comparação com uma pluralidade de mundos e crenças, levam, entretanto, a uma insegurança ontológica, já que nossa autoidentidade não está mais baseada em uma continuidade biográfica e que o sentido de normalidade se desorienta pelo relativismo dos valores.

A partir de 1960 predominam preocupações pessoais, com o autocrescimento e autoexpressão. Há uma preocupação narcisista com o eu. A vida centra-se na busca da autossatisfação. As relações com os outros devem pautar-se pelo respeito à individualidade deles e pela ausência de crítica.

As pessoas voltam-se para seu próprio ego. A realidade é compreendida pelas imagens do eu e o outro é mero espelho desse eu. A personalidade coletiva é construída por revelações mútuas e fundamentada nos vínculos emocionais estabelecidos entre as pessoas.

Tudo isso determina uma sociedade intimista, na qual personalidades narcisistas se desenvolvem. Para o eu narcisista, o que importa são as intenções, como o indivíduo se sente a respeito de alguma coisa, e não seus atos ou ações, pois o narcisismo "é uma obsessão com aquilo que esta pessoa, este acontecimento significam para mim".

Para Lasch, a cultura, organizada em torno do consumo de massa, estimula o narcisismo, ou seja, a disposição de ver o mundo como um espelho.

As relações pessoais são instáveis e precárias. Na sociedade contemporânea, compete-se pela aprovação e concebe-se que o progresso depende da força de vontade, de autoconfiança, da iniciativa, do magnetismo pessoal, de administrar as relações interpessoais e de vender uma imagem.

A autoaprovação depende do reconhecimento público. A ideia é ser invejado ou invejável e não respeitado ou respeitável. O indivíduo avalia-se frente aos outros e vê a si próprio pelos olhos dos outros; a autoimagem projetada é mais importante.

A sociedade atual é a sociedade do espetáculo, dominada pela aparência. O modelo ideal de relação é a relação entre iguais entre pares, que não fazem exigências, que nada pedem, tudo compreendem e perdoam.

Nessa sociedade, em que as coisas se tornam descartáveis e as relações entre os indivíduos se pautam por serem igualitárias, em que, por princípio, nada é imposto e tudo é questionável, inclusive os valores e normas sociais. As relações humanas tornam-se também descartáveis.

Na sociedade de consumo, as coisas perdem sua continuidade. E ser consumidor indica a possibilidade de escolher. E os indivíduos são livres para escolher o modo de vida que lhes agrade.

Entretanto, uma escolha não impede a outra e se pode escolher tudo ao mesmo tempo, pois a liberdade de escolha significa deixar as opções em aberto.

A ideologia que registra as necessidades do século XX, exemplificada pelo casamento aberto e pelas relações sem compromisso, é a dos compromissos não obrigatórios e das relações abertas onde qualquer expectativa, padrão ou código de conduta é visto como irreal.

O amor sob a égide da abnegação e lealdade é encarado como opressivo. As identidades são adotadas e descartadas como se troca de roupa. As escolhas feitas são vistas e revistas: amigos, amantes, carreiras, etc.

Vivemos hoje sob a tirania das relações e ser próximo e aberto é a expectativa. Cada um se torna mais rico emocionalmente quando aprende a confiar, a ser aberto aos outros, a partilhar os sentimentos. A intimidade significa calor, confiança e expressão aberta de sentimentos.

Desta forma, o indivíduo examina-se constantemente na busca de autenticidade. Nada é real se eu não puder sentir e os sentimentos têm de ser expresso, mesmo a custa do respeito à individualidade do outro.

A angústia vem do sentimento de vazia, da incapacidade de sentir. Nessa busca de autenticidade, as pessoas questionam constantemente os próprios sentimentos para ver se o que sentem representa o real, isto é, se o que sentem é verdadeiro.

Como disse Sennett a pergunta constantemente feita é: Será que aquilo que demonstro é realmente aquilo que sou?

A busca de autenticidade está associada à suposição de que os males da sociedade provêm da impessoalidade, da alienação e da frieza. A crença predominante é que a aproximação entre as pessoas é um bem moral. Tentamos libertar-nos da repressão vitoriana, sendo mais diretos e abertos e mais autênticos nas relações com os outros. Há uma busca de autorrealização na vida cotidiana e o impessoal, para interessar, deve tornar-se pessoal.

O domínio público é abandonado quando percebido como sem sentido pessoal. Na política, líderes carismáticos buscam destruir o distanciamento entre seus próprios sentimentos e os da plateia, de forma que as pessoas se concentrem em suas motivações.

Com isso, os sentimentos não são mais refreados. O pressuposto é que os relacionamentos sociais são mais reais e autênticos quanto mais próximos estiverem das preocupações interiores.

A aparência deve representar aquilo que a pessoa é, diferentemente do postulado por Goffman sobre a representação do eu na vida cotidiana.

O ideal é que as barreiras nas comunicações interpessoais sejam rompidas, embora, conforme afirma Lasch, a sociedade intimista não consiga manter esse ideal e acabe promovendo o colapso da intimidade, como pode ser verificado pelos casamentos abertos.

Todas essas transformações constroem, segundo Lasch, um tipo de indivíduo qualificado ora como cooperativo e esclarecido, e ora como egoísta, hedonista e competitivo.

De um lado, o declínio do homem econômico e a ascensão do homem psicológico pressagiam um bom futuro, mas de outro, as pessoas só pensam em ter privilégios, em ter seus direitos assegurados, mas sem assumir obrigações.

Afirma-se que a sociedade de consumo reforça o individualismo e a competição, contribuindo para desenvolver e construir personalidades narcisistas, indiferentes à vida pública e voltadas ao hedonismo privado.

Estar focado em si mesmo contribui para que as pessoas se tornem insensíveis ao outro e sem sentimentos de culpa.

Os projetos de vida se centram na agressividade, na competição, na negação de sentimentos de solidariedade e de respeito ao outro, pois lhe são indiferentes.

Isso tudo configura um tipo de relação entre as pessoas que é peculiar da sociedade contemporânea. Em uma sociedade na qual tudo é possível, na qual os estilos de vida podem ser mudados e as regras constantemente substituídas e renegociadas, o suposto é que a tolerância ao outro deve nortear as relações entre as pessoas.

O esperado é que o pluralismo de códigos de conduta, de estilos de vida e padrões morais caracterizem a vida em sociedade, pois embora o indivíduo continue se submetendo às regras, não há um único modelo de conduta válido e aceito por todos.

Assim, os padrões se orientam a conduta são muitas vezes divergentes e incompatíveis entre si. A tolerância ao diferente é fartamente apregoada.

A exclusão social é termo usado para abordar uma série de temas e de problemas que nem sempre estão claramente diferenciados. Em geral, é um conceito que se emprega quando se fala de desemprego, de jovens de periferia, de sem-teto e de outros grupos sociais considerados problemáticos.

O termo exclusão implica uma heterogeneidade de usos e nomeia situações diferentes. É empregado, por exemplo, para designar situações que englobam de desempregados jovens de subúrbio que vivem vagando sem fazer nada e sem ir a qualquer lugar.

A exclusão social designa situações de degradação, gera uma situação de vulnerabilidade, caracterizada pelo trabalho precário, pelo isolamento social e pela dependência de uma rede de solidariedade.

Hoje é impossível traçar nítidas fronteiras claras entre os indivíduos que estão integrados na sociedade e os que estão sujeitos à precária relação de trabalho e os vulneráveis.

A exclusão do jovem drogado não é a mesma do desempregado. As trajetórias e as situações vividas por meninos de rua, jovens usuários de drogas, favelados, trabalhadores desempregados ou biscateiros, homossexuais, umbandistas, negros e mestiços são muito diferentes entre si, o que exige políticas públicas diferentes para reintegrá-los.

Mas no conceito de exclusão está implícita uma lógica classificatória ou binária, do sim e do não, que assinala diferenças.

Essas diferenças contribuem para a construção de identidades que ficam nas fronteiras entre grupos que se tocam ou se enfrentam e que são representados simbolicamente como diferenciados.

A exclusão social, segundo Young, é feita tendo como base os ricos, ou seja, uma atitude atuarial de cálculo e avaliação. O atuarialismo é forma de controle social da modernidade recente, significa agir em função da minimização de danos, por exemplo, dar droga para viciados e supervisionar seu uso para que eles não fiquem pelas calçadas.

A ideia é evitar problemas, o atuarialismo é que Bauman chamou de adiaforização: " despojar os relacionamentos humanos de seu significado moral, isentando-os de julgamento moral, tornando-os moralmente irrelevantes" e que Giddens ao discutir a sociedade de riscos, qualificou como atitude calculista, o que significa viver em uma atitude de cálculo em relação às possibilidades de ação positivas e negativas, com as quais somos continuamente confrontados.

A vida cotidiana é feita de encontros baseados no risco. As dificuldades devem ser evitadas e as diferenças, aceitas, desde que mantidas a distância.

Na sociedade atual, o compartilhar, aceitar ou mesmo tolerar o diferente tem limites restritos. Na demarcação das diferenças, nega-se que possa haver similaridades entre indivíduos e grupos diferentes. Nesse sentido, os depoimentos dos jovens apontam que há uma violência na relação entre pares que surge pela intolerância ao diferente, que discrimina negros, homossexuais, roqueiros e, etc.

Assim se fazem presentes os preconceitos e a intolerância frente ao outro, ao diferente. Os jovens constroem estereótipos uns sobre os outros, discriminam-se entre si e julgam-se de forma preconceituosa. Nas escolas, adolescentes e jovens interagem com outros que são diferentes deles ou de seu grupo de referência em função, por exemplo, da cor, da sexualidade, do corpo, da classe socioeconômica.

No espaço escolar essa interação com o diferente dá-se por meio de relações interpessoais pautadas por conflitos, confrontos e violência.

Ao se contraporem a outro há, muitas vezes, uma defesa sem críticas daquilo que é considerado certo e que, portanto, deve ser imposto como uma norma à qual não se permitem questionamentos ou respostas com condutas diferentes.

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Essas atitudes dos alunos opõem-se ao postulado de que a modernidade, ao preconizar a pluralidade de valores e promover um debate constante sobre as regras que mudam conforme os grupos sociais, gera certa dificuldade para a definição de padrões.

A existência de vários mundos, com várias regras, é constatada, mas não se permite a avaliação moral deles, pois uma avaliação desse tipo implicaria afirmar a superioridade de um mundo sobre outro ou de um padrão moral sobre outro.

Entretanto, mesmo que essas afirmações sejam correntes, nem todos os estilos de vida, valores e diferenças são permitidos e acolhidos e essa aceitação está relacionada aos grupos de pertencimento ou às comunidades que se integram, como pode ser constado no comportamento dos alunos.

A inconstância, o caráter volátil que caracteriza a identidade hoje não é possível para todos. Giddens ao discutir as limitações da escolha dos estilos de vida pelos diferentes grupos ou classes sociais, diz que, em grande parte, os pobres seriam quase completamente excluídos da possibilidade de escolher estilos de vida.

Na demarcação das diferenças, nega-se que possa haver similaridades entre indivíduos e grupos diferentes e, nesse processo de estabelecimento de diferenças, as identidades são hierarquizadas. Ao se hierarquizarem as diferenças, as relações de poder entre os indivíduos são estabelecidas.

Os indivíduos são medidos, comparados, relacionados e classificados. Ao classificar e hierarquizar as diferenças, atribuem-se diferentes valores aos grupos sociais. Dividir o mundo social entre nós e eles é classificar e ordenar grupos sociais.

Para Hall, normalizar é hierarquizar, é eleger uma identidade como parâmetro, é atribuir a ela tudo de positivo e avaliar o resto como negativo. A identidade considerada normal fica, inclusive, invisível.

Quando os indivíduos são reduzidos aos estereótipos, a sociedade constrói teorias ou ideologias para explicar essa diferença e justificar a discriminação. Fixa-se uma imagem social do outro, o diferente, que, ao ressaltar a diferença, o transforma em problema social que assusta e incomoda.

Os jovens que cometem atos violentos ou uma infração ou que já estiveram em situação de liberdade assistida são, qualificados como violentos.

Tal qualificação adere-se a eles como uma tatuagem e eles começam a ser vistos a partir do ato de violência cometido.

A diferença social pode gerar intolerância preconceito, discriminação. Temos aí uma violência que surge pela intolerância ao diferente, ao discrimina pobres, negros, homossexuais, maus alunos, rejeita os gordos e os feios.

A diferença é o modo, por comparação, se explicita uma não igualdade, enquanto o preconceito é o resultado de um juízo ou de uma concepção não problematizada, quando o diferente é transformado no desigual e no inferior.

Lembramos aqui que a diferença não é em si um problema. A diferença permite-nos legitimar o que somos e é valorizada na sociedade contemporânea. No processo de construção das identidades sempre há a referência ao "outro", ou seja, eu não sou o que o outro é. As pessoas constroem suas identidades a partir dessas diferenças.

As identidades dos excluídos são essencializadas como parte do processo de estigmatização. Bauman afirma que o essencialismo cultural contribui para a crença na superioridade de uns e na demonização do outro, percebido então como depravado, estúpido e criminoso.

O essencialismo facilita a exclusão social a fornecer alvos e estereótipos, reafirmar a identidade de grupo e possibilitar a desumanização dos excluídos por meio de colocações como esta: "são selvagens, só entendem pela violência".

O essencialismo contribui ainda para o processo de responsabilização da vítima, pois a culpa é dela, enquanto indivíduo, e não decorrente da estrutura e dos valores da sociedade. Também contribui para que certos grupos sejam tratados com condescendência, isto é, de forma paternal, porque são inferiores, infantis ou simplórios.

Mas da mesma forma que as identidades são atribuídas elas são assumidas. A exclusão social, segundo Young, contribui para que o desviante adote a essência a ele imputada.

Os jovens de classe baixa, inclusive como forma de enfrentamento, tendem a essencializar sua identidade para se mostrarem diferentes. Assim, por exemplo, estudantes operários assumem uma atitude machista, racista e anti-intelectual, como mostrou Paul Willis.

Identidades essencializadas são assumidas e projetadas. E, mesmo dentro da comunidade há diferenciações entre eles... por pertencerem aos diferentes comandos (o Vermelho, o Terceiro Comando, o ADA) e por posições diferentes: polícia versus banido; pela conversão de alguns membros às igrejas pentecostais que proíbem o contato com as outras religiões.

As entrevistas com pais de alunos que temos realizado têm apontado nessa direção. Os pais de alunos considerados bons, muitas vezes, atribuem a culpa dos problemas do bairro e da própria escola aos pais dos alunos protagonistas de violência.

Cabe assinalar ainda que o processo de exclusão não se dá apenas em nível simbólico. A sociedade atual é excludente e promove essa exclusão em três níveis: econômico, social e legal.

A crise dos anos oitenta e noventa promove uma exclusão econômica ao gerar desemprego, recessão e marginalização em massa. Não há postos e salários estáveis, a mão de obra é terceirizada e o trabalho não define mais as trajetórias da vida.

A exclusão social e legal ocorre quando um grupo de pessoas da sociedade civil tem, enquanto cidadãs, seus direitos sociais e legais negados.

A modernidade, ao romper com estado de bem-estar social, promove a exclusão social, a ruptura de laços sociais e o deslocamento das populações vulneráveis para a periferia.

Certas pessoas não conseguem ser incluídas e ter seus direitos assegurados. Mais do que isso, essas pessoas são percebidas como perigosas e se recomenda que sejam mantidas a distância.

Em uma sociedade em que tudo é possível, em que os estilos de vida podem ser mudados, e as regras, constantemente substituídas e renegociadas, o suposto é que a tolerância ao outro deve nortear as relações entre as pessoas. O esperado é que o pluralismo de códigos de conduta, de estilos de vida e padrões morais caracterize a vida em sociedade.

Porém, na sociedade atual, o compartilhar, aceitar ou mesmo tolerar o diferente tem limites restritos. As relações entre as pessoas são caracterizadas por processos simultâneos de integração comunitária e de fragmentação social.

Na escola, os alunos são classificados e em função dessa classificação, excluídos e/ou incluídos. As diferenças são aceitas desde que mantidas a distância. Há um comportamento público de evitar o outro que por ser diferente, provoca medo.

Evidentemente, as explicações para a violência de alunos na escola não são simples: relacionam-se à forma de organização da escola, aos métodos didáticos que são empregados, aos procedimentos institucionais aplicados e ao significado que a escola assume para os alunos.

Elas se relacionam também ao processo de atribuição de identidades e à sua essencialização, do mesmo modo como se relacionam à violência social que, como diz Dubet entra na escola pela pobreza, pela marginação, pela delinquência e pelo prolongamento da idade de escolarização obrigatória - situação que é agravada pelo desemprego, pelo tráfico de drogas, pelo crime organizado, pela miséria, pela concentração de renda e desigualdades presentes na sociedade brasileira.

Nas escolas, o discurso da importância do coletivo e da formação para a cidadania predomina. Todavia, como fazer isso em uma sociedade na qual o individualismo é a regra? Ou, como pergunta Martuccelli, como querer moral e ética como norteadores em uma sociedade na qual os significados devem ser constituídos por cada um?

A violência de jovens que acontece no âmbito escolar e fora dele está relacionada à exclusão social e à inclusão cultural, tanto material como simbólica, à falta de trabalho e à necessidade de consumo..

Enfim, cabe à escola reconhecer o desencontro entre esta e as populações excluídas, procurar construir um ambiente menos estigmatizante em relação aos alunos, preservando sua dignidade.

Ainda que os alunos das escolas que estudamos, em geral, só sejam encaminhados as profissões mais desqualificadas, essa trajetória não precisa ser acompanhada por um processo de estigmatização e desvalorização deles enquanto pessoas.

Agir para que se construa uma relação baseada no respeito é, parece-nos, uma condição fundamental para que se possa reduzir a violência no contexto escolar e mesmo fora dela.

A palavra violência pode nos trazer imediatamente  sua  pluralidade semântica e a dificuldade de definição. Porém, buscando seu núcleo semântico, através da própria etimologia que advém do substantivo violentiae e significa veemência e impetuosidade e remete a vis, que significa força, do mesmo modo que o termo grego correspondente também poderá significar força vital.

A etimologia mostra, portanto, um componente que pode ser estendido para o mundo vital não humano e até mesmo para os fenômenos físicos, como é o caso da força do mar ou de uma tempestade. Já num aspecto antropomórfico, o substantivo violentia está ligado ao verbo violare, de onde provém violar significando também infringe, transgredir, profanar, tratar com irreverência coisas sagradas, devassar, como em violar um segredo. Também significa transgressão.

Numa breve viagem etimológica mostra-se a vinculação do termo violência com as ideias de transgredir e de profanar, o que evidencia a sua relação essencial com o normativo e o sagrado, e, desse modo, com aquilo que o pensamento grego diagnosticou como a falta de medida, desmensura e o excesso que habitam o homem e o faz transgredir a medida verdade, a justiça e as leis divinas que expressam a ordem sagrada do mundo.

A etimologia parece indicar que a violência tida como transgressão e profanação refere-se a um fenômeno não tanto da natureza phisis, mas próprio da cultura (ethos).

A segunda ideia é que a violência humana pode ser considerada um paradoxo. Posto que vinculada a uma condição antropológica fundamental, sendo portanto, um fenômeno especificamente humano e se o que define o essencialmente humana, é a cultural, então a violência está intimamente ligada à cultura; se chamamos de cultura é uma construção material e simbólica complexa que emergiu da evolução como estrutura necessária para compensar e ultrapassar o déficit biológico de nossa espécie e seu decorrente desamparo psicológico.

A cultura então produz simultaneamente as condições da vida e da violência, ou seja, estranhamente parece negara si mesma.

Se cultura nega a si mesma, o que seria uma absurda contradição, a partir da qual a cultura se autoafirma e se transforma e se a violência é um elemento constitutivo dessa dialética interna da cultura, o desenvolvimento histórico da cultura humana o que podemos comodamente designar como processo civilizatório, não pode ser interpretado como um progresso linear que deixa a violência para trás como um estágio primitivo e residual da animalidade do homem.

A violência e civilização não são excludentes mas ao revés se relacionam intimamente.  E incrementada pelo crescimento econômico, o desenvolvimento técnico, as conquistas políticas e jurídicas, a dominação da natureza, a racionalização do mundo, enfim, tudo aquilo que caracterizamos e consagramos como o progresso moderno não elimina sozinha a violência, uma vez que está não é um mero resíduo da agressividade anima, e nem da suposta vida primitiva. É antes uma condição antropológica e uma possibilidade inerente da civilização.

Quando o ocidente atribuiu certos surtos chocantes de violência, seja numa perspectiva etnocêntrica que seja adotada do esquecimento da história recente. A conjunção da tese da violência como paradoxo antropológico não teria implicações éticas desastrosas.

A violência é inerente ao ser humano e não há nada que possamos fazer, e todo esforço de transformação histórica e de luta política tem se revelado inútil. É uma constatação trágica, é um paradoxo antropológico que se ergue contra a ingenuidade da posição iluminista, que não conseguia explicar a violência que eclode no coração do mundo civilizado.

Quando os judeus chegaram ao campo de concentração de Auschwitz, em cuja porta de entrada havia a frase que se tornou a palavra de ordem da racionalidade instrumental: "o trabalho liberta” [1], já se conclamava, "não pense, simplesmente funcione” [2], ele que estava mergulhado em sua perplexidade recebeu para sua pergunta.. o porquê?

Há de se confrontar a violência do real insistindo na possibilidade da hermenêutica... assim construiremos uma nova frase à porta... pense, interprete e se libertará da ditadura da força.

Uma das causas cruciais da violência contemporânea é a negação da diferença. Não reconhecemos o outro como pessoa. A modernidade inventada a partir do final do século XV necessitou padronizar, igualar os menos diferentes e excluir os mais diferentes, num processo de construção da identidade nacional e como essa rejeição, rebaixamento ou encobrimento do outro está na base de várias formas de violência típicas de nossos dias.

Esse processo narcisista de construção de nacionalidade sobre o outro, sobre a diferenciação e a exclusão do outro é um dispositivo mental da cultura moderna ocidental que pode ser acionado diante de situações complexas em momentos distintos da história.

A identidade nacional foi fundamental para a centralização do poder e para a construção das principais instituições modernas que nos acompanham ou nos perseguem até hoje, e sem as quais o capitalismo teria sido inviável. O poder central dos exércitos nacionais, a moeda nacional, os bancos nacionais, o direito nacional uniformizador, especial o direito de família, de sucessões, o direito reais, a polícia nacional, as polícias secretas e a burocracia estatal as escolas uniformizadas e uniformizadoras.

E não podemos esquecer da religião nacional, posto que a religião é mecanismo essencial para a uniformização de comportamentos e, logo, de valores que podem estar presentes em todos os espaços da vida pública e privada.

Daí que, mesmo formalmente muitos estados tenham se tornado laicos no decorrer do processo moderno; essa separação da religião é muito mais formal do que efetiva. E, a religião continua tendo importância nos debates políticos e nas justificativas de decisões no plano das relações internacionais.

A construção da identidade nacional que fora fundamental para erguer o Estado nacional, e, ipso facto para o capitalismo em todas as suas formas requer o estranhamento do outro, da exclusão do não nacional, do diferente. A construção da nacionalidade, é, em suma, um projeto narcisista.

Esse referido dispositivo de estranhamento, de exclusão e de autoafirmação pelo rebaixamento do outro está presente em nós como frutos da modernidade, mormente naturalizada, e existe um “ Eichman”[3] dentro de cada um de nós.

Esse “Eichman” está desperto em alguns, controlado ou acorrentado em outros, ou apenas adormecido, podendo ser despertado em momentos históricos que reúnam as condições para tal.

Os genocídios podem ser explicados pelo despertar desse “Eichman”, desse dispositivo interno moderno de afirmação perante o rebaixamento do outro.

As origens da modernidade têm no ano de 1492 especial significação. Nestes dois fatos marcaram o início da construção do mundo moderno como conhecemos hoje.

A invasão das Américas iniciada por Cristóvão Colombo em 1492. Chegando nestas terras começou processo de extermínio, assassinatos, torturas e encobrimento que durou mais de quinhentos anos até os movimentos indígenas assumirem o poder na Bolívia e no Equador, e se organizarem e conquistarem espaços e direitos em outros estados americanos.

A invasão do mundo começando pela América foi fundamental para o desenvolvimento do sistema econômico criado pelos europeus: o capitalismo mercantilista. Não haveria hoje o capitalismo atual e o poderoso processo de industrialização da Europa, sem as riquezas retiradas das Américas (ouro, cobre, prata, madeira e diversas outras riquezas) inicialmente, assim como as riquezas da Ásia e da África.

Não haveria tampouco capitalismo sem as instituições modernas dotado de moeda nacional, bancos nacionais, exércitos nacionais (para invadir e retirar as riquezas dos outros), o direito nacional e a religião nacional tidos como mecanismos de uniformização de valores construindo uma massa uniforme e uniformizada que se transformará nos consumidores de hoje (que tendem a gostar das mesmas coisas, especialmente mercadorias de consumo, marcas e grifes de produtos diversos).

Neste momento de globalização moderno, o presumido mercado global gira e simultaneamente cria padrões de comportamentos e valores uniformizados em escala universal, fundamental para o sucesso do capitalismo contemporâneo. Parcelas cada vez mais expressivas de pessoas são convertidas ao credo do capitalismo: ao individualismo e a competição permanente.

Os cidadãos são convertidos em consumidores. Uma nova subjetividade é construída em escala universal em que os comportamentos e valores são construídos por complexas relações sociais e econômicas históricas são naturalizadas.

O ser humano consumidor, egoísta e competitivo construído pela modernidade, é naturalizado. Em outras palavras, isso significa que as pessoas passaram a perceber esses valores e comportamentos como se fossem naturais no ser humano, o que obviamente não são.

A completa invasão e dominação militar do mundo será seguida por uma dominação ideológica. A Europa será apresentada a todos como sendo um padrão a ser seguido. É posta como civilização mais sublime e avançada, mais bem acabada, e portanto, destino natural de todos que pretendem evoluir.

Essa naturalização histórica coloca outras civilizações, com compreensões e graus de complexidade distintas, não como diferentes, mas como menos evoluídas e primitivas. O conhecimento europeu tem a pretensão de validade universal, a única filosofia existente é europeia. As outras formas de compreensão do mundo e da vida são consideradas primitivas, não complexas e sem posição científica.

Uma outra filosofia não existe, sendo admitida, no máximo, por alguns, uma entnofilosofia em outros espaços do globo que não a Europa. Essa perspectiva é reproduzida até hoje nas universidades e faculdades de filosofia.

A expulsão

O segundo grande fato simbólico para compreender o processo moderno foi a queda de Granada em 1492[4], a última grande cidade em domínio muçulmano. Traduz-se na expulsão do outro, do mais diferente, abrindo-se agora espaço para a construção do Estado moderno com a uniformização dos menos diferentes e a invenção do europeu e dos nacionais europeus.

Seguindo a expulsão dos muçulmanos, vem a expulsão dos judeus e a construção de Estados modernos uniformizados pela imposição de uma única religião que ditava comportamentos ao lado do Estado para todas as esferas da vida de todas as pessoas. Quem não se enquadrasse estava fora. Foi então criada a polícia da nacionalidade: a Santa Inquisição[5], é um bom exemplo.

A uniformização de comportamento e valores é essencial para o reconhecimento de um poder agora unificado e centralizado.

Estado moderno na Europa

A formação do Estado moderno a partir do século XV ocorreu após lutas internas nas quais o poder do Rei se afirma perante os poderes dos senhores feudais, unificando o poder interno, unificando os exércitos e a economia, para então reafirmar esse mesmo poder perante os poderes externos, os impérios e a Igreja.

Trata-se de um poder unificador numa esfera intermediária, pois cria um poder organizado e hierarquizado internamente, sobre os conflitos regionais, identidades existentes anteriormente à formação do Reino e do Estado nacional que surge nesse momento e, de outro lado, afirma-se perante o poder da Igreja e dos Impérios. Esse é o processo que ocorreu em Portugal, Espanha, França e Inglaterra.

Diante desses fatos históricos decorreu o surgimento do conceito da soberania em duplo sentido: a soberania interna a partir da unificação do Reino sobe os grupos de poder representados pelos nobres (senhores feudais), com a adoção de um único exército subordinado a uma única vontade; a soberania externa a partir da não submissão automática à vontade do papa e ao poder imperial (multiétnico e descentralizado).

Um problema importante surge nesse momento, fundamental para o reconhecimento do poder do Estado, pelos súditos inicialmente, mas que permanece para os cidadãos no futuro estado constitucional: para que o poder do Rei ou do Estado seja reconhecido, este Rei não pode se identificar particularmente com nenhum grupo étnico interno.

Os diversos grupos de identificação pré-existentes ao Estado nacional não podem criar conflitos ou barreiras intransponíveis de comunicação, pois ameaçarão a continuidade do reconhecimento do poder e do território desse novo Estado soberano.

Assim, a construção de uma identidade nacional se torna fundamental para o exercício do poder soberano.

Desta forma se o Rei pertencesse a uma região do Estado, que tenha uma cultura própria, elemento comum com o qual ele claramente se identificasse, dificilmente outro grupo, portador de outras identificações, o reconhecerá como Rei e como o poder.Assim, a principal tarefa desse novo Estado é criar uma nacionalidade, ou seja, um conjunto de valores de identidade, por sobre as identidades já existentes.

A unificação da Espanha ainda hoje está, entre outras razões, na capacidade do poder do Estado em manter uma nacionalidade espanhola por sobre as nacionalidades já existentes (galegos, bascos, catalães, andaluzes, castelhanos, entre outros).

Se um dia tais identidades regionais prevalecerem sobre a identidade espanhola, o Estado espanhol estará condenado à dissolução. Como exemplificação recente, podemos citar a fragmentação da Iugoslávia entre vários pequenos estados étnicos independentes, tais como a Macedônia, Sérvia, Croácia, Montenegro, Bósnia, Eslovênia e, em 2009, o impasse com Kosovo.

Assim, a tarefa de construção do Estado nacional (do Estado moderno dependia da construção de uma identidade nacional, noutras palavras, de imposição de valores comuns que deveriam ser compartilhados pelos diversos grupos étnicos, pelos diversos grupos sociais para que todos reconhecessem o poder do Estado, do soberano.

Desta forma, na Espanha, o rei castelhano agora era espanhol, e todos os grupos internos também deveriam se sentir e se assumirem como espanhóis, reconhecendo a autoridade do soberano.

Esse processo de criação de uma nacionalidade dependia da imposição e aceitação pela população de valores comuns. Tais como um inimigo comum (na Espanha do século XV eram os mouros, o império estrangeiro), uma luta comum, um projeto comum e, naquele momento, o fator fundamental unificador: uma religião comum;

Nascia então a Espanha com a expulsão dos muçulmanos e, posteriormente, dos judeus[6]. É criada na época uma polícia da nacionalidade: a Santa Inquisição.

Ser espanhol significava ser católico, e quem não se comportasse como bom católico era excluído.

A formação do Estado moderno portanto está intimamente relacionada com a intolerância religiosa, cultural, a negação da diversidade fora de determinados padrões e limites.

O Estado moderno nasce da intolerância com o diferente e dependia de políticas de intolerância para sua plena afirmação. Atualmente ainda hoje assistimos o fundamental papel da religião diante dos conflitos internacionais, a intolerância com o diferente é ainda uma tônica.

Mesmo os estados constitucionalmente que aceitam a condição de laicos possuem na religião uma base forte de seu poder: e o caso mais assustador é o dos EUA, divididos entre evangélicos fundamentalistas de um lado e protestantes liberais de outro. E, isso repercute diretamente na política norte-americana, nas relações internacionais e nas eleições internas.

A mesma vinculação religiosa com a política dos Estados pode ser percebida em uma União Europeia cristã, que resiste à aceitação da Turquia e convive com o crescimento da população muçulmana europeia.

O Estado absolutista foi a grande criação da modernidade, somada, mais tarde, no século XVIII, com a afirmação do Estado constitucional.

Ao contrário do que alguns apressadamente anunciam, o Estado nacional não acabou e ainda resistirá por algum tempo, assim como a modernidade está ainda presente, com todas as suas criações, em crise sim, mas sem podermos ainda visualizar o que será a pós-modernidade anunciada e já tão proclamada por alguns. Estamos ainda mergulhados nos problemas da modernidade.  Há os que vejam na pós-modernidade apenas mais uma fase evolutiva da modernidade... a chamada modernidade líquida.

Estado moderno na América

Na América Latina, os Estados nacionais se formaram a partir das lutas pela independência no decorrer do século XIX. E os entes soberanos foram construídos para uma parcela minoritária da população. Não interessava para as elites econômicas e militares que a maior parcela da população se sentisse integrante do Estado.

Dessa maneira, em proporções diferentes em toda a América, muitos dos povos originários (grupos indígenas os mais distintos) assim como milhões de imigrantes forçados africanos, foram radicalmente excluídos de qualquer concepção de nacionalidade.

O direito não era para tais maiorias; a nacionalidade não era para essas pessoas. Não interessava às elites que indígenas e africanos se considerassem nacionais.

De maneira diferente da Europa, onde foram construídos Estados nacionais para que todos que se enquadrassem ao comportamento religioso imposto pelo poder do Estado, já na América não se esperava que os indígenas e negros se comportassem como iguais; era melhor que permanecessem à margem ou mesmo, no caso dos povos originários (chamados de índios[7] pelo invasor europeu) que não existisse: e por isso foram dizimados praticamente.

A situação começou a mudar com as revoluções democráticas e pacíficas da Bolívia e do Equador, com seus poderes constituintes democráticos que fundaram um novo Estado capaz de superar a brutalidade dos estados nacionais nas Américas: o Estado plurinacional, democrático e popular.

Nunca na América tivemos tantos governos democráticos populares como esse surpreendente século XXI. O relevante é que estes governos não são apenas democráticos representativos, mas fortemente participativos e dialógicos.

“Nós” versus “eles”

As nomeações de grupos, os nomes coletivos que serviram para a unificação do poder do Estado serviu, historicamente, para desagregar, excluir e justificar genocídios e outras formas de violência.

A construção dos significados que escondem complexidades e diversidades é o tema do livro Alain Badiou (2005), “La portée du mot juif” (o âmbito da palavra judeu),

O referido autor cita um episódio acontecido em França há algum tempo. O primeiro-ministro Raymond Barr, comentando um atentado a uma sinagoga, declarou para a imprensa francesa o fato de que morreram judeus que estavam dentro da sinagoga e franceses inocentes que passavam na rua quando a bomba explodiu. Perguntou-se qual o significado da palavra judeu e como agiu de maneira indisfarçável na fala do primeiro-ministro?

A palavra "judeu" escondeu toda a diversidade histórica, pessoal, e do grupo de pessoas que são chamadas por esse nome.

A nomeação é um mecanismo de simplificação e de geração de preconceitos que facilita a manipulação e a dominação.  A estratégia de nomear facilita a dominação.

Um outro mecanismo de dominação e manipulação do real é a estratégia amplamente utilizada pela imprensa de explicar o geral pelo fato particular. Slavoj Zizek no livro Plaidouer em faveur de l'intolerance (Editions Climats, Castenal-leLez, 2004 menciona dois exemplos norte-americanos.

Cita o caso da jovem mulher de negócios bem sucedida que transa com o namorado e engravida e resolve abortar para não atrapalhar sua carreira. Esse é um caso que ocorre entre milhares e, talvez milhões de outras situações.

Entretanto, o poder toma esse caso como exemplo permanente para demonstrar o egoísmo que representa o aborto diante da opinião pública. Ao explicar o geral pelo particular ou construir predicados para grupos sociais, a tarefa de manipulação para a dominação se torna mais fácil.

Badiou ainda menciona que o antissemitismo de Barre não é mais tolerado pela média da opinião francesa. Entretanto, um outro tipo de antissemitismo surgiu, vinculado aos movimentos em defesa da criação do estado palestino.

No livro, Badiou não pretendeu discutir o novo ou o velho antissemitismo, mas debater a existência de um excepcional significado da palavra "judeu", um significado sagrado, retirado do livre uso das pessoas.

Nesse sentido Giorgio Agamben em sua obra “Profanações” de 2007 explica o processo de sacralização como mecanismo que retira do livre uso das pessoas determinadas coisas, objetos, palavras, jogos, etc. Por meio da profanação, do rompimento do rito com o mito, é possível devolver essas coisas, palavras, ao livre uso.

Assim como ocorre com várias outras palavras mas de forma menos contundente e radical (liberdade e igualdade, por exemplo), a palavra judeu foi retirada do livre uso, da livre significação. E ganhou status sacralizado especial, intocável. O seu sentido é predeterminado e intocável, vinculado a um destino coletivo, sagrado e sacralizado, no sentido de que retira a possibilidade de as pessoas enxergarem a complexidade, a historicidade e a diversidade daqueles que recebem esse nome.

Badiou ressalta que o debate que envolve o antissemitismo e a necessidade de sua erradicação não recebe o mesmo tratamento de outras formas de discriminação, perseguição, exclusão ou racismo.

Existe uma compreensão no que diz respeito a palavra “judeu” e a à comunidade que reclama esse nome que é capaz de criar uma posição paradigmática no campo dos valores, superior a todos os demais.

Não propriamente superior, mas em um lugar diferente. De modo, pode-se discutir qualquer forma de discriminação, mas quando se trata do judeu a questão é tratada como universal, indiscutível, seja no sentido de proteção ou de ataque.

Da mesma forma, toda produção cultural e filosófica, assim como as políticas de Estado tomam essa conotação excepcional. Talvez nenhum outro nome tenha tido tal conotação ou, para Badiou, a força e a excepcionalidade do nome "judeu" só tenha tido semelhança com a sacralização do nome Jesus Cristo.

Não há, entretanto, um medidor para essa finalidade. O fato é que o nome judeu foi retirado das discussões ordinárias dos predicados de identidade e foi especialmente sacralizado.

O nome “judeu”[8] é um nome em excesso em relação os nomes ordinários, e o fato de ter sido uma incomparável vítima se transmite não apenas aos descendentes, mas a todos que cabem no predicado concernente, sejam chefes de Estado, chefes militares, mesmo que oprimam os palestinos ou qualquer outro.

Logo, a palavra “judeu” autoriza uma tolerância especial com a intolerância daqueles que a portam, ou ao contrário, uma intolerância especial com os mesmos. Depende do lado em que se está.

Relevante lição que se pode retirar da questão judaica, da questão palestina, do nazismo e demais nomes que lembrem os massacres ilimitados de pessoas é a de que toda introdução enfática de predicados comunitários no campo ideológico, político ou estatal, seja de criminalização (como nazista ou fascista) seja de sacrifício (como cristãos, judeus e muçulmanos) expõe-nos ao pior.

Combater as nomeações, a sacralização de determinados nomes, significa defender a democracia, o pluralismo, significa o reconhecimento de sujeito que não ignore os particularismos, mas que os ultrapasse, que não tenha privilégios e que não interiorize nenhuma tentativa de sacralizar os nomes comunitários, religiosos ou nacionais.

Badiou dedicou sua obra a uma pluralidade irredutível de nomes próprios, o único real que se pode opor à ditadura dos predicados.  O filme O trem da vida é um maravilhoso poema dedicado à pluralidade nomes próprios que foram reduzidos a um único predicado "judeu" na Segunda Grande Guerra Mundial.

O filme ressalta a pessoa, os grupos dentro dos grupos e como a identificação com determinados grupos dentro de um outro grupo gera segregação. A introdução do tema identidade e identificação com grupos, religiões, Estados, partidos, ideias como fator de segregação, sempre irracional. Como anulação do sujeito livre, com a anulação do nome próprio em nome do grupo.

O fato de o debate político atual ocorrer em torno da pessoa, sua história de vida e sua bondade ou maldade distorce a vontade popular, conduzindo a discussão fora do campo que interessa à democracia representativa: o debate de projetos, ideias e programas de ação política.

Conceitos morais simplificados que servem muito bem à manipulação da opinião pública levam à polarização da população, que tenderá a se dividir em uma relação amigo-inimigo, primeiro passo para o ódio e suas nefastas consequências sociais. Nesse sentido, graças aos grandes órgãos de imprensa, especialmente a mídia impressa e televisiva.

Pessoas vitimadas pela polarização, reagem como o esperado pelo projeto fascista: a agressão ao outro, ao ser considerado inimigo.

Uma classe média raivosa esbraveja sua irracionalidade na internet, nos bares e incrível nas igrejas. A generalização com fundamento moral superficial. O processo “nós” versus “eles” fora posto em marcha. Pessoas que nem se conhecem se agridem e se odeiam peremptoriamente, pois são colocadas em lados diferentes.

Como estudou o filósofo e psicanalista francês Alain Badiou, a divisão da sociedade entre nós e eles é o primeiro passo para a violência.

O segundo passo vem, então com maior facilidade: como afirma o pesquisador Jacques Sémelin que esse "outro" inferior é estigmatizado, rebaixado e anulado.

Na Alemanha nazista isso precedeu ao assassinato de fato. Primeiro o outro é animalizado em uma operação do espírito. Assim, ouvimos expressões como petralhas, terrorista, operário sujo e muitas outras. Está desperto dentro de muitos brasileiros de classes média e alta uma herança conservadora, escravista, racista e preconceituosa.

O contato com a realidade começa a desaparecer. Os discursos são recheados de agressões, o sangue circula mais rápido e o ouvido se fecha.

O terceiro passo para a violência também foi dado pela grande mídia com o apoio do candidato e seu grupo de sustentação. A aproximação da política com a religião e, o que é pior, a transformação da política em um espaço religioso. Essa fórmula esteve presente na Alemanha nazista e na Itália fascista e foi utilizada em outros processos eleitorais pela América, inclusive na eleição de W.Bush.

Outro autor muito instrutivo para a compreensão da política fascista é o constitucionalista, Carl Schmitt[9], o jurista do nazismo.

O problema da confusão entre os âmbitos da religião e da política é o fato de que a política deve ser um espaço de discussão racional enquanto a religião é um espaço de fé. Quando as pessoas torcem para um partido político ou para um candidato à presidência como se fosse um clube de futebol, algo anda muito errado. O pior é quando argumentos de pureza, religiosos e morais começam a ser utilizados.

Qual o problema com os argumentos de pureza? O problema é que essa pureza é irreal, é idealizada. A pureza é realmente inexistente, mas assumida por um grupo como pretensão realizada. Assim foi a pureza racial para os nazistas (argumento insustentável do ponto de vista concreto), assim foi a pureza política stalinista e assim será qualquer argumento de pureza.

O problema de acreditar que alguns são puros e o que os considerados impuros são animalizados, inferiorizados, estigmatizados e eliminados. O discurso da pureza, a crença de que alguns são puros e outros impuros, a não compreensão (a incompreensão) das pessoas como seres processuais em permanente processo de transformação e que aprendem principalmente com seus erros será um passo para o extermínio do outro.

Esse discurso é extremamente perigoso, seja qual for o espaço em que ele seja realizado, especialmente nas Igrejas. A crença na pureza absoluta, a repressão extrema do ser real (impuro, incompleto e complexo em cada um de nós) gera distorções absurdas e afasta ainda mais as pessoas de seus laços com o real, jogando cada pessoa e o grupo social em uma relação paranoica distante dos fatos e cada vez mais mergulhada no imaginário.

A vivência em um espaço imaginário visto como realidade é reforçada pela experimentação dessa paranoia de forma coletiva. Esse processo aumenta o narcisismo. A distinção em relação ao outro é motivo de satisfação, o que reafirma a negação do outro com igual, como portador de argumento que mereça ser ouvido.

O quarto passo em direção da violência também foi dado pela campanha e pela grande mídia: o problema da segurança e a destruição do inimigo. O medo antecede o ódio, e os discursos se encarregam de estruturar essa transformação de medo em ódio. Por vezes, se faz necessário um fato para os próximos passos. Uma situação trágica que faça surgir o desejo de vingança. Esse passo, felizmente, não foi dado.

Para não sermos enredados inocentemente por um poder que representa interesses que não são os nossos, precisamos desconfiar, estudar, avaliar, e principalmente, pensar sem preconceitos e sem ódio.

O fascismo e o nazismo, onde se manifestaram, envolveram milhões de pessoas que inocentemente acreditaram estar defendendo seus interesses, construindo um país melhor. Quando descobriram que se tratava de objeto de manobra ideológica sofisticada, já era tarde demais.

Zizek enxerga três formas de violência: uma subjetiva e duas objetivas. A subjetiva é facilmente visível, praticada por um agente que podemos identificar no instante em que é cometida. Essa violência geralmente é vista como quebra de um fundo zero de violência. Tudo está sem violência até que o ato violento é praticado.

Essa forma subjetiva, entretanto, deve ser compreendida juntamente com as duas outras formas objetivas:

a) a violência simbólica presente nos discursos, palavras e representações diárias.  A utilização da linguagem, a atribuição de sentidos contém violências, hegemonias, traços visíveis de opressão e exclusão.

b) a violência sistêmica representada pelo jogo de relações sociais, econômicas, políticas, religiosas. Em outras palavras, se a violência subjetiva é uma quebra de uma aparente normalidade de ausência de violência, a violência objetiva sistêmica é essa normalidade.

Na ausência do ato que quebra a aparente normalidade pacífica, ela atua permanentemente. A alteração dessa normalidade (violenta) pode gerar rupturas ou violências subjetivas em escala crescente.

Durante séculos no Brasil vivemos uma ordem social e econômica de exclusão, racismo e opressão. Essa era a normalidade objetivamente violenta. Negros e pardos pobres trabalham em posição subalterna permitindo a afirmação do narcisismo de uma classe média e alta que se satisfaz diante da superioridade que julgam ter diante desses servos: empregados domésticos, cozinheiros, jardineiros e lixeiros, etc.

Muitos desses narcisos exercem extrema bondade caridosa em relação aos outros inferiores afirmando ainda mais sua superioridade. Número muito expressivo de pessoas que eram completamente excluídas do mercado de consumo passaram a consumir.

Em poucos anos, as pessoas que nunca viajaram de avião não frequentavam shoppings, não estudavam em universidades públicas ou particulares, não comiam em restaurantes, não dirigiam automóveis passaram a frequentar tais lugares, e a dividir espaços com aquela classe média e alta, quase sempre branca, que tinha esses ambientes de seu uso exclusivo. Aquela que deveria ser a empregada doméstica agora estava sentada na poltrona bem ao lado da patroa. O outro passou a invadir espaço que antes não eram dele. O nós foi obrigado a conviver com o eles.

Isso é insuportável para alguns. A afirmação decorrente do narcisismo, a afirmação em relação ao outro inferior, rebaixado, é comprometida. Isso é sentido como um golpe à posição ocupada, e mais, um golpe contra o sentimento de identidade de classe superior.

Essa realidade gerou ódios, e atos de violência subjetiva proliferaram. Crescem as agressões contra pobres, pardos e negros. O discurso conservador aumenta o tom e os adeptos. Dentro desse contexto ocorreram as eleições de 2010 no Brasil.

E perigosos passos foram dados no sentido de dividir a população como mecanismo de marketing eleitoral. É necessário entender tais mecanismos e compreender o funcionamento desse sistema violento para poder desmontá-lo. Não haverá menos violência subjetiva, rupturas de normalidades aparentemente não violentas enquanto esse sistema objetivo e seu aparato simbólico de opressão não forem desmontados.

Em outras palavras, podem invadir quantas favelas quiserem que a paz só será obtida com o desmonte da violência objetiva, sistêmica e simbólica.  A guerra contra o tráfico transmitida pelas emissoras de TV e rádios e noticiadas por revistas e jornais é o reforço da violência simbólica. Pessoas raivosas destilam seu ódio prepotente defendendo a morte dos bandidos para acabar com a violência.

Cogita-se na "paz armada" pelos policiais e pelas unidades pacificadoras de polícia.

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Gisele. Violência cotidiana e escolar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3900, 6 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26842. Acesso em: 26 dez. 2024.

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