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Do monopólio hermenêutico exercido pelo Supremo Tribunal Federal em face da extinção do controle difuso de constitucionalidade

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Agenda 19/04/2014 às 13:40

O processo atual de abstrativização das decisões em sede de controle difuso de constitucionalidade, estão colocando em risco a própria existência do instituto. Através da Teoria do Discurso procurar-se-á demonstrar a relevância do mesmo no Direito.

RESUMO: O controle de constitucionalidade das leis se mostra na dinâmica democrática moderna, como um dos principais mecanismos de equilíbrio entre os poderes. O instituto também tem como escopo garantir a participação dos indivíduos no processo de formação da identidade da jurisdição nacional. O controle difuso de constitucionalidade ainda que alguns autores e membros da instância mais alta do Poder Judiciário, qual seja o Supremo Tribunal Federal o tenham como obsoleto, o mesmo exerce um papel fundamental na estrutura do Estado Democrático de Direito, viabilizando o acesso de todos os cidadãos e juízes de primeiras instâncias no processo hermenêutico do texto constitucional, e o mais importante legitima a formação do direito constitucional. O controle concentrado de constitucionalidade das leis desempenha uma importante função na dinâmica de fiscalização das normas, mas não pode ser tido como o único apto a realizar tal feito, nem como evoluído o bastante para extinguir a forma difusa bem como seu efeito inter partes do ordenamento jurídico brasileiro. Diante das complexidades emanadas pelo pluralismo, o controle difuso de constitucionalidade ao contrário do que parte da doutrina Positivista e Comunitarista defendem, se mostra um instrumento democrático por excelência no tocante à aplicação das normas e legitimação do Estado Democrático de Direito. Dessa forma, o mesmo não pode ser extinto do direito brasileiro.

Palavras-chave: Controle de Constitucionalidade. Jurisdição. Controle Difuso de Constitucionalidade. Controle Concentrado de Constitucionalidade. Hermenêutica. Estado Democrático de Direito.

ABSTRACT

The judicial review developed in modern democratic dynamics, is a major mechanism of balance of powers. The institute also has the scope to ensure the participation of indivuals at process of identity formation of national adjudication. The decentralize judicial review even though some authors and members of the highest court of the Judiciary have to be as obsolete, it exerts a fundamental role in the structure of the Constitutional State, providing access for all citizens and singular judges at hermeutic process of the constitutional text, and most importantly, through this legitimizing the formation of process constitutional law. The centralize judicial review perform an important role at dynamics of examined, but then can not be taken as the only able to perform and to realize such deed, nor as evolved enough to extinguish the decentralize judicial review and its effect inter partes in Brazilian legal system. Faced with complexities issued by pluralism, the decentralize judicial review different that positivist and communitarian doctrine argue, shows a democratic instrument par excellence in application of standards and legitimacy Constitutional State. Therefore, that institute can not be extinguished by the Brazilian law.

Key-Words: Judicial Review. Jurisdiction. Decentralize Judicial Review. Centralize Judicial Review. Hermeneutic Process. Pluralism. Constitutional State.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO.2 DO MONOPÓLIO HERMENÊUTICO ATRAVÉS DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE .   2.1 Do Excesso de Poderes e Aspectos Críticos do Intérprete Oficial da Constituição.2.2 Da Extinção do Controle Difuso de Constitucionalidade Diante da Verticalização da Jurisdição Brasileira e  Dos Julgamentos Abstratos em Demandas Incidenter Tantum. 3 DO MODELO PROCEDIMENTAL DE JURISDIÇÃO. 3.1 Da Relevância do Controle Difuso de Constitucionalidade no Estado Democrático de Direito   .3.2 Da Necessidade do Espaço Público Garantidor de Livre Interpretação e Discussão. 3.3 Do Modelo Ideal do Legítimo Guardião da Constituição na Ótica Procedimental do Direito    .5 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS


1 INTRODUÇÃO

O tema de pesquisa proposto neste trabalho refere-se à correção da defesa da extinção do controle difuso de constitucionalidade em face do monopólio hermenêutico exercido pelo Supremo Tribunal Federal acerca do texto da Constituição de 1988, pois segundo alguns autores, com destaque para o Ministro Gilmar Mendes, o controle difuso estaria defasado em face da modernidade apresentada pelo controle concentrado de constitucionalidade, já que com o mesmo o efeito erga omnes é capaz de julgar diversas causas que se pulverizariam por todo o Poder judiciário brasileiro de uma única vez, permitindo ainda uniformidade decisória (segurança jurídica).

Após a Constituição de 1988, diversas mudanças no contexto social caracterizaram o desenvolvimento de uma sociedade plural, dinâmica e com traços culturais de identidade em formação. A partir disso, o Supremo Tribunal Federal condicionou-se como palavra final de questões sobre os preceitos constitucionais. Influenciados pela forma do controle de constitucionalidade alemão, é possível observar que os Ministros por intermédio de votos e decisões buscam conservar todo poder de fiscalização das leis nas mãos do órgão de cúpula do Poder Judiciário, caracterizando-o como intérprete único do texto constitucional.

Entretanto, elevou-se quantitativamente a demanda processual, em razão disso, atualmente o Poder Judiciário enfrenta uma situação de crise, tenta-se resolver problema tais como morosidade, ações com causa de pedir e pedido idênticos e acúmulo de processos através de um entendimento verticalizado do controle de constitucionalidade, construído pelas doutrinas comunitarista e positivista. Dessa forma, surgem teorias que não prezam por uma democracia efetiva.

Em razão do exposto procurar-se-á responder se estaria nos moldes democráticos o Supremo Tribunal Federal ao se posicionar como guardião da Constituição, conservando todo o controle de constitucionalidade em suas mãos, extinguindo a forma incidenter tantum, bem como se essa postura adotada seria suficiente a garantir as exigências de legitimidade trazida pelo Estado Democrático de Direito?

O presente estudo tem como marco teórico a Teoria Discursiva de Jürgen Habermas e sua concepção de Direito e de Democracia frente ao papel da jurisdição constitucional na ótica procedimental do Estado Democrático de Direito.

Através da Teoria Discursiva de Jürgen Habermas o discurso de aplicação é estendido de forma ampla aos possíveis afetados pela norma, sendo assim, as complexidades são postas através do discurso racional. Habermas traz a ideia adequada do papel da jurisdição constitucional no Estado Democrático de Direito.

Esta proposta norteada pela Teoria Discursiva de Jürgen Habermas, bem como sua concepção procedimental de jurisdição, tem como escopo verificar a incoerência interpretativa empregada pelo Supremo Tribunal Federal no controle difuso de constitucionalidade. Através do efeito erga omnes, juntamente com julgamentos de casos concretos feitos de forma abstrata e a ausência da participação do Senado da República na suspensão da eficácia das normas, originam uma modulação dos efeitos do instituto de forma não permissiva ao reexame do discurso de aplicação da norma. Desse modo, os argumentos empregados em defesa desta prática não estão realmente em consonância com os princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito.

Sendo assim, a aplicação do efeito vinculante e a eficácia erga omnes nos casos incidentais sem a participação do Senado da República implicam no tolhimento de liberdades subjetivas dos indivíduos, fere a gênese da tripartição dos poderes e afasta questões do Judiciário que são assemelhadas as já discutidas, ignorando suas peculiaridades, abortando qualquer possibilidade de utilização da razão comunicativa.

Não obstante, a proposta trazida por Habermas permite que tais casos sejam analisados como únicos, sendo assim, possibilita a igual utilização dos mecanismos jurídicos aos indivíduos reconhecendo liberdades Subjetivas e implicando na produção de uma decisão discursiva imparcial e legítima, garantidora aos afetados a realização dos direitos fundamentais, levando a sério a força normativa da Constituição.

O presente tema é de grande relevância no Estado Democrático de Direito, tendo em vista a Constituição como ordem suprema do sistema jurídico, faça-se mister, utiliza-la como pano de fundo em todas as decisões e interpretações feitas no universo Jurídico.

A atualidade do que será proposto mostra-se real por intermédio de decisões que cada vez mais, deixam de lado o promulgado pela Constituição 1988, bem como enfraquecem o poder normativo do texto constitucional. Destarte, o que se tem visto são atuações pelo Supremo Tribunal Federal colocando-se como poder constituinte originário e legislador, firmando entendimento que não poderá mais ser discutido, reinterpretado e contestado após sua última decisão.

Mostra-se exequível a proposta na medida em que a tendência de abstrativização do controle difuso através do efeito vinculante e a eficácia erga omnes, têm sido usadas para todas as modalidades do instituto, como forma de massificar as demandas levadas ao judiciário, padronizando as decisões com intuito tão somente de celeridade processual, argumento esse usado pelos adeptos as mudanças na via incidental.

Em voto na Reclamação 4.335/AC, no qual o Ministro Gilmar Mendes atuou como relator, juntamente com os argumentos do Ministro Eros Grau, ambos atribuem uma nova roupagem ao referido instituto através de teses distorcidas e antidemocráticas colocadas por ambos, que sutilmente tem o condão de ceifar do direito brasileiro efeito inter partes conjuntamente com a participação do Senado da República que lhe fora atribuída desde a Constituição 1934.

Toda essa manobra teleológica realizada pelo Supremo Tribunal Federal objetiva-se também a uniformização da jurisprudência e tentativa de garantir segurança e celeridade nas decisões.

Em sentido oposto a tal uniformização podemos extrair das ideias trazidas por Dworkin, no qual os órgãos jurisdicionais devem agir sempre buscando construir e reconstruir o direito da melhor forma a cada decisão, com o intuito de alcançar a melhor resposta possível ao caso, ou seja, o direito como integridade.

Como mecanismo de participação aos destinatários das normas estatais, o controle inter partes é um instrumento de extrema importância, sendo assim, a sua extinção implicará na restrição dos cidadãos na esfera do Judiciário, ferindo os pressupostos de existência do Estado Democrático de Direito.

Desta forma, realizar-se-á revendo votos proferidos por Ministros do Supremo Tribunal Federal pertinentes à modulação do controle difuso de constitucionalidade pós Constituição de 1988. Verificando o posicionamento doutrinário acerca do instituto bem como considerar as divergências doutrinárias ao passo de enriquecer a construção do trabalho proposto. Aprofundando na Teoria Discursiva do Direito de Habermas na perspectiva do controle de constitucionalidade brasileiro dando ênfase na tendência de julgamentos abstratos na via difusa. Conhecendo a importância que as práticas do método difuso detêm face às discussões de cunho concreto. Demonstrando o descompasso de tal tendência frente aos objetivos de uma democracia efetiva, tendo em vista, a sociedade fechada de intérpretes que se tornou o Supremo Tribunal Federal, ao contrário dos ensinamentos constantes na grande obra de Häberle e a participação dos indivíduos na construção do processo democrático abordada por Habermas.

Diante do que foi mencionado, objetiva-se fazer uma melhor leitura do Controle incidenter tantum junto ao seu papel no Estado Democrático de Direito através da perspectiva procedimental, por intermédio da Teoria do Discurso. Usar-se-á como complemento teórico a proposta da formação de uma sociedade aberta de intérpretes, com o intuito de realizar uma interpretação mais acurada nas decisões incidentais, levando em consideração as especificidades de cada caso levados em última instância.


2 DO MONOPÓLIO HERMENÊUTICO ATRAVÉS DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

2.1 Do Excesso de Poderes e Aspectos Críticos do Intérprete Oficial da Constituição

Após as duas grandes guerras mundiais de efeitos devastadores e os reflexos de desigualdade trazidos pelo Estado Liberal, bem como a queda da monarquia, segundo Maus (2000, p. 185) a sociedade se encontrou numa situação de orfandade, ou seja, em total desamparo.

Explica Maus (2000, p.184-185) que Marcuse[1] acreditava na perda da figura paterna da sociedade no âmbito da psicanalise, uma vez que a sociedade passou a construir consciências individuais determinadas por diretrizes sociais e não pela figura de um pai como antes como ocorria nos períodos monárquicos.

Indo em sentido oposto ao entendimento de Herbert Marcuse[2] a autora, viu no Judiciário a partir do seu crescimento ocorrido no século XX a figura de um pai para a sociedade, assim a mesma vai dizer que:

a primeira vista, o crescimento do século XX do “terceiro poder”, no qual reconhecem todas as características tradicionais da imagem do pai, parece opor-se a essa análise de Marcuse. Não se trata simplesmente da ampliação objetiva das funções do judiciário, com o aumento do poder da interpretação, a crescente disposição para litigar ou, em especial, a consolidação do controle jurisdicional sobre o legislador, principalmente no continente após as duas grandes guerras mundiais (MAUS, 2000, p.185).

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Segundo Maus (2000, p. 185) nos Estados Unidos da América esse retorno da figura paterna, originou-se da vasta produção de biografias de juízes, no qual eram apresentados como grandiosas personalidades, verdadeiros “deuses do Olimpo do Direito”.

Essa recepção passiva no tocante ao biografismo conforme expõe Maus (2000, p. 185), foi reflexo de uma sociedade ocupada por mecanismos objetivos, aspecto esse que remonta a ideia dos ‘espelhos dos príncipes’, bem como o entendimento de que decisões justas e racionais estariam ligados intrinsicamente na formação da personalidade dos juízes.

Maus (2000, p. 186) explica que o crescimento do Poder Judiciário teve como fundamento a noção superada do direito racional de direito natural, no qual se pautou o Iluminismo, para servir de suporte aos direitos fundamentais.

Construiu-se a ideia de uma ordem de valores justos no qual seria possível sua transmissão somente por intermédio de uma personalidade justa, tal qual se remeteria a figura da justiça, sendo resultado inevitável à transferência da figura do superego ao Judiciário, segundo Maus (2000, p. 186):

a “excepcional personalidade de jurista” criada por uma “formação ética” atua como indicio da existência de uma ordem de valores justa: “uma decisão justa só pode ser tomada por uma personalidade justa”. Nesta fuga da complexidade por parte de uma sociedade na qual a objetividade dos valores está em questão não é difícil reconhecer o clássico modelo de transferência do superego.

Dessa forma, Maus (2000, p. 187) explica que a justiça para a sociedade, se tornou a “condição de mais alta instância moral”, consequentemente perdeu-se a eficácia dos mecanismos de controle social perante a mesma. Diante dessa superioridade no que tange aos outros poderes de Estado bem como a sociedade, Maus (2000, p. 187) afirma que “é notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de integração social”.

Com a ascensão do Poder Judiciário, consequentemente as cortes constitucionais ganharam um status elevado, assim segundo Maus (2000, p.190) o status de justiça como instância moral manifestou não só nos pressupostos legais, mas também na credibilidade popular.

A justiça assume um papel institucional, segundo Maus (2000, p.190) caracterizado pela neutralidade de um terceiro no qual auxilia as partes envolvidas em demandas concretas. Este terceiro neutro por proferir decisões dotadas de imparcialidade e objetividade, é visto como justo, assim como seus atos proferidos.

As primeiras questões a serem encaradas pelo Tribunal Federal Constitucional, Maus (2000, p. 191) explica que se deram a respeito dos limites da própria competência. O Tribunal alemão afirmou que a forma de fiscalização exercida por ele poderia exceder aos parâmetros constitucionais.

Dessa forma, percebe-se a ascensão das competências Tribunal Constitucional alemão de modo exacerbado, no qual o mesmo se coloca acima das próprias normas constitucionais. Neste sentido, Maus (2000, p. 191-192) vai dizer que:

assim, a “competência” do TFC – como de qualquer outro órgão de controle de constitucionalidade – não deriva mais da própria Constituição, colocando-se em primeiro plano. Tal competência deriva diretamente de princípios de direito supra positivos que o próprio Tribunal desenvolveu em sua atividade constitucional de controle normativo, o que leva romper com os limites de qualquer “competência” constitucional. O TFC submete as outras instâncias politicas à Constituição por ele interpretada e aos princípios supra positivos por ele afirmados, enquanto se libera ele próprio de qualquer vinculação às regras constitucionais.

A prática judiciária conforme Maus (2000, p. 192) se tornando a última instância de consciência da sociedade, troca-se o cânone religioso pelo texto constitucional, resultando numa prática jurisdicional semelhante à religiosa, a verdadeira ‘Teologia Constitucional’.

O agigantamento das competências da justiça, bem como a dos Tribunais Constitucionais conforme colocado por Maus (2000) não se difere do ocorrido em nosso sistema jurisdicional.

No contexto jurisdicional brasileiro o controle da constitucionalidade das leis originou-se do modelo estadunidense, por intermédio do trabalho árduo do jurista Rui Barbosa. Dessa forma, como consequência a via incidental por muito tempo realizou o papel central no tocante a fiscalização das leis.

O Brasil influenciado pela doutrina jurídica alemã, não foi diferente do contexto exposto por Maus (2000), mais tarde importou muitos elementos da via concentrada, que após o advento da Constituição da República Federal de 1988 adquiriram dimensões mais amplas, e atualmente após mudanças na legislação infraconstitucional ocupa lugar de destaque no cenário da jurisdição constitucional.

O controle de constitucionalidade brasileiro na forma da doutrina clássica denomina-se misto, tendo em vista que o mesmo comporta as vias concentrada e difusa. A via difusa desde o seu surgimento na Constituição de 1891, localizou-se como a principal forma de fiscalização das leis, mas desde o seu surgimento em diante nota-se algumas mudanças ocorridas na jurisdição nacional que resultaram na diminuição do seu espaço.

Após a promulgação da Carta de 1988, o rol de legitimados à propositura das ações diretas de inconstitucionalidade foi ampliado tirando a exclusividade do Procurador Geral da República.

Mendes (2004, p. 261) afirma que essa alteração ocorrida com o advento da Constituição de 1988 no que tange aos legitimados, foi uma ampliação do sistema concentrado em face do sistema difuso.

Com isso Mendes (1999, p. 78) expõe que o objetivo da ampliação da via concentrada pelo Constituinte Originário, foi o de “correção” do sistema geral incidente.

O mesmo afirma que o modelo brasileiro não é adequado para a demanda de larga escala de processos decidida pelo Supremo Tribunal Federal. Segundo ele:

nosso modelo é inadequado para solver essas questões de massa, porque ele enfoca as questões como se fossem de caráter individual. Uma questão de constitucionalidade, de interesse geral, é tratada como se fosse uma ação processual individual. Quando, na verdade, sabemos – e isso é o que faz exatamente a vitalidade do modelo americano –, que aquilo que está sendo decidido é uma tese para todos e que isso é que é o fundamental (MENDES, 2004, p. 267).

Assim, com as mudanças ocorridas após a promulgação das leis n. 9.868/99 e 9.882/99, ficou perceptível o escopo de concentrar poderes hermenêuticos nas mãos do órgão de cúpula do Judiciário, bem como a ampliação da via concentrada e utilização do controle concentrado.

Dessa forma Mendes (2004, p. 267) expõe que a aplicabilidade dessas normas exige um “processo de racionalização” no qual atualmente ao sistema difuso estaria ausente qualquer possibilidade. De acordo com Cruz (2004) o resultado dessas mudanças é uma espécie de verticalização da jurisdição constitucional brasileira.

Esse processo de verticalização é recebido com louvores pela doutrina positivista e comunitarista, embora conforme expõe Cruz (2004, p. 13-14) ambas partem de enfoques diferentes, a primeira almeja a redução do trabalho, bem como “rapidez” das decisões. A segunda idealiza a escolha de valores supremos para que o magistrado possa recorrê-los e resolver os problemas da sociedade.

Em consequência do não exercício da via incidental, afasta-se a possibilidade do contato entre sociedade e jurisdição constitucional, Cruz (2004, p. 16) enfatiza o objetivo dos comunitaristas, segundo ele “a jurisdição constitucional não deveria mais ser tarefa do Judiciário comum ou ordinário, ou seja, pelos órgãos que integram a magistratura ordinária”.

Os adeptos do Comunitarismo e Positivismo, segundo Cruz (2004, p. 313) tem em comum o objetivo de reforçar os poderes conferidos ao Supremo Tribunal Federal, transformando o Tribunal em Corte Constitucional, com argumento de que assim o estariam em busca da realização da vontade do Poder Constituinte.

Cruz (2004, p. 191) explica que a doutrina comunitarista não poupa esforços na tentativa de efetuar tais mudanças, segundo ele:

nesse sentido, o empenho dos comunitarista em extinguir o Supremo Tribunal Federal e colocar no lugar uma Corte Constitucional justificar-se-ia pelo fato de acreditarem ser a única Instituição que, na qualidade de guardiã dos valores constitucionais, poderia assumir a defesa da Constituição, tornando-se instrumento de inclusão social.

Assim, a doutrina comunitarista almeja um Estado intervencionista, que solucione os problemas sociais e econômicos, realize os objetivos do Welfare State, em consequência disso espera-se um Tribunal Constitucional “justiceiro”, provedor de justiça social, nesse sentido, Cruz (2004, p. 187) vai dizer que:

o Comunitarismo brasileiro coaduna-se melhor com uma concepção estatizante, coletiva e intervencionista, “jogando nas costas” do Estado a tarefa de promover o desenvolvimento econômico e social do Brasil. Assim, a redução de desigualdades econômicas e regionais é tratada como função essencial do Estado brasileiro.

No mesmo diapasão, Cittadino (2000, p. 10) expõe o que se espera do Supremo Tribunal Federal através da ótica comunitarista. A mesma diz que:

a dimensão comunitária do constitucionalismo brasileiro revela-se seja quando adota uma concepção de Constituição enquanto ordem concreta de valores [...] enfim, quando atribui um papel preponderantemente político ao Supremo Tribunal Federal, que se deve recorrer a procedimentos interpretativos de legitimação e aspirações sociais e orientar a interpretação constitucional pelos valores éticos compartilhados.

Diante desse contexto, no qual super poderes são atribuídos ao Supremo Tribunal Federal, sentenças carentes de legitimidade no que diz respeito aos princípios democráticos, são prolatadas e recebem apoio doutrinário de juristas renomados da academia brasileira.

Um dos fortes mecanismos utilizados pelo Excelso Pretório é o efeito vinculante segundo Cruz (2004, p. 19) tem sido encarada como uma das soluções para os problemas enfrentados pelo Judiciário. Assim, parte da doutrina entende que o mesmo é responsável por garantir a segurança jurídica, recebimento de tratamento equânime por parte dos jurisdicionados, decisões previsíveis e objetivas com escopo de garantir a certeza e segurança jurídica e dar agilidade para o Judiciário como um todo.

Assim, como se tem pretendido através da via abstrata, a realização de um processo objetivo (sem lide) como pregado pela doutrina comunitarista, no qual a jurisdição brasileira estaria num processo racional e que resultaria na “evolução” do controle jurisdicional. Mendes (2000, p. 322) explicitamente revela o caráter absoluto no qual querem atribuir ao Supremo Tribunal Federal. Para melhor ilustrar o mesmo vai dizer que:

a gradual evolução de um sistema de controle incidente para uma modelo no qual a função principal do controle está concentrada no Supremo Tribunal Federal, reforça o caráter do Tribunal, como autêntica Corte Constitucional, uma vez que ele não apenas detém o monopólio da censura no processo de controle abstrato de atos normativos estaduais e federais em face da Constituição Federal, como quem tem a última palavra na decisão das questões constitucionais submetidas ao controle incidental.

Sendo assim, Mendes (2000) pretende concentrar toda a atividade hermenêutica no Supremo Tribunal Federal, afastando a sociedade da jurisdição constitucional. A “evolução” proposta pelo mesmo enseja no verdadeiro processo de verticalização, conforme expõe Cruz (2004, p. 15-16) Colocando a via incidental como arcaica e obsoleta, não mais capaz de garantir uma efetiva fiscalização das leis.

No mesmo sentido Veloso (2000, p. 196) adota a posição semelhante defendida por Mendes (2000), o mesmo vai dizer que:

o Supremo só poderá utilizar mecanismos tão extensos e de tanta largueza no controle jurisdicional, quando exigir a segurança jurídica e em nome do mais alto e nobre interesse social, já alertados. A temperança, o comedimento e a prudência no emprego da faculdade de dar conteúdo normativo às suas decisões serão os ingredientes essenciais para a democracia e salutar.

O fruto do processo de “verticalização” e “abstrativização” da forma de controle jurisdicional, qual seja a ampliação via concentrada bem como o efeito vinculante, retiram da sociedade a garantia de participar de decisões que irão os afetar. Desta forma, ao contrário do que é defendido pelos doutrinadores mencionados, o exercício absoluto do controle de constitucionalidade feito pelo Supremo Tribunal Federal conforme expõe Cruz (2004, p. 21) “enfraquecem a tutela dos direitos fundamentais e solapam as bases do próprio Estado Democrático de Direito”. Ou seja, ao invés de fortalecer a democracia ocorre exatamente o contrário.

O controle concentrado de constitucionalidade não é suficiente a garantir à legitimidade necessária a demanda ocorrida no Estado Democrático de Direito, de acordo com o exposto por Cruz (2000, p. 246) verifica-se a ausência de um debate no que diz respeito à pretensão jurídica, bem como não há a figura do contraditório, apenas um discurso produzido unilateralmente.

Sabe-se que o contraditório é um dos institutos basilares do Estado Democrático de Direito, garantidor da igualdade de participação dos possíveis afetados. A ausência do referido princípio implica no enfraquecimento na ordem democrática. Nesse sentido Cruz (2004, p. 246) diz que:

o contraditório é elemento essencial da dimensão pragmática do processo de obtenção da “resposta correta” ou da “norma ideal”. Ele compõe a racionalidade procedimental que afasta uma visão solipsista da Teoria da Decisão [...] E, na aplicação do Direito, o juiz haverá de trabalhar com um discurso organizado em forma contraditória, concedendo simétrica igualdade de participação às partes. O contraditório é peça fundamental nesse jogo de argumentação!

No mesmo sentido Silva Filho (2002, p. 67) esclarece que:

uma modalidade de jurisdição só pode ser considerada jurisdição constitucional sob os ditames do contraditório por questão de exigência da própria Constituição Federal, uma vez que os princípios constitucionalizados universalizaram as possibilidades da racionalidade, enquanto processo desenvolvido em contraditório, ampla defesa, indispensabilidade da atuação do advogado. Nem a racionalidade, nem a interpretação da Constituição são apanágios de um grupo que passou a ter competência funcional de decidir fundamentalmente e não segundo o próprio arbítrio.

De modo contrário ao ideal tecido pelos positivistas e comunitaristas, Habermas (1997, p. 301) entende que o modelo ideal de controle de constitucionalidade exercido pelo Judiciário, dever-se-á ocorrer pela via difusa, uma vez que o controle abstrato é função do legislador.

o controle abstrato de norma é função indiscutível do legislador. Por isso, não é inteiramente destituído de sentido reservar essa função, mesmo em segunda instância, a um autocontrole do legislador, o qual pode assumir as proporções de um processo judicial.

No mesmo diapasão, Cruz (2004, p. 247) explica que Habermas[3] entende ser função do legislador político a captação das mensagens resultantes do controle concreto da constitucionalidade das leis, assim, identificando as ilegitimidades por intermédio do principio da democracia, Nesse sentido, ideal seria uma instituição dentro do Poder Legislativo que agisse preventivamente com escopo de evitar a promulgação de normas ilegítimas, semelhante o modelo de fiscalização de leis ocorrido na França e na Holanda.

Cruz (2004, p. 248) explica os riscos em incorrer no autoritarismo quando o controle abstrato é realizado pelo Tribunal Constitucional, segundo ele:

quando, entretanto, o controle abstrato se perfaz por Tribunais Constitucionais, a legitimação do mesmo processa-se de forma complexa, em razão dos riscos de o Tribunal converter-se numa instância autoritária, por meio de uma remodelação do discurso de fundamentação, com base em preferências pessoais dos juízes.

A forma como deve ser feita o controle de constitucionalidade nos moldes democráticos é descrita por Cruz (2004, p. 248) com seguinte teor:

a função essencial do controle de constitucionalidade será a de examinar e garantir a pura concretização das condições procedimentais da gênese democrática do Direito. Assim, em primeiro lugar, os Tribunais Constitucionais devem preocupar-se com a regularidade do processo legislativo, no qual se destaca, em razão de sua importância, a revisão constitucional [...] No entanto, esse controle não pode limitar-se ao exame dos requisitos do processo legislativo. Ao verificar a adequação de uma norma ordinária e aplicar diretamente a Constituição. Nesse Processo, o Judiciário poderá defender a título de argumentação, a ilegitimidade da norma ordinária, por não se sustentar diante das exigências de reciprocidade da moralidade pós-convencional e dos direitos fundamentais, indispensáveis ao reconhecimento da legitimidade normativa.

A realidade atual da jurisdição brasileira após o alargamento da via concentrada de controle de constitucionalidade em face da limitação da via difusa é explicada de forma precisa por Pedron (2012, p. 35):

o que se vê, na realidade, são mediadas de constitucionalidade duvidosa tentando diminuir o acesso da sociedade aos canais institucionais de discussão da constitucionalidade das leis e dos atos normativos estatais em razão de um fechamento desses canais pela lógica do sistema concentrado.

A consequência do que se propõem os doutrinadores posivistas e comunitaristas, ou seja, o monopólio interpretativo do texto constitucional e a modulação do efeito vinculante exercido pelo Supremo Tribunal Federal resultam segundo a concepção de Häberle (1997) numa Jurisdição Constitucional que se encontra diante de uma sociedade fechada de intérpretes da Constituição.

Deste modo, de acordo com o exposto por Cruz (2000, p. 355) o cidadão é colocado na posição de simples destinatário das normas produzidas, e não possibilitando a ele iguais condições de participação no processo de formação do direito para que seja considerado livre na maior medida possível, bem como coautor do mesmo conforme idealizado pela teoria discursiva.

Ao contrário da evolução agregada de benefícios proposta pelos adeptos à expansão da via concentrada, observa-se cada vez mais o estreitamento das vias de acesso do cidadão à fiscalização das leis, inibindo as condições de participação do mesmo no âmbito da Jurisdição Constitucional. Resultado disso é o enfraquecimento normativo do texto constitucional, bem como o descredito da tutela dos direitos fundamentais.

2.2 Da extinção do Controle Difuso de Constitucionalidade Diante da Verticalização da Jurisdição Brasileira

O Supremo Tribunal Federal atualmente ocupa uma posição de relevo perante a justiça, bem como perante toda sociedade. Assim, como mencionado anteriormente, o órgão de cúpula do Poder Judiciário assumiu o papel de guardião da Constituição da República Federal de 1988.

Dessa forma, a concentração do poder hermenêutico, encontra-se no seio do Supremo Tribunal Federal, no qual tem se materializado através modulação do efeito vinculante nas decisões proferidas pelo mesmo.

A situação problemática não gira em torno do efeito vinculante, mas sim, como o mesmo tem sido empregado no que tange ao controle da constitucionalidade das leis.

Tendo como ponto de partida os votos proferidos na Reclamação nº 4.335/AC, dos Ministros Gilmar Ferreira Mendes e Eros Grau, nos quais se extrai como alguns dos membros do Supremo Tribunal Federal tem se posicionado a respeito do procedimento do controle difuso de constitucionalidade e a modulação de seus efeitos.

A Reclamação 4.335/AC distribuída no primeiro semestre do ano de 2006 teve como objeto o deferimento da progressão de regime de alguns condenados por crimes hediondos da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco do Estado do Acre.

A Reclamação em comento teve como base jurisprudencial o julgamento do HC n. 82.959, no qual houve o reconhecimento por parte do Supremo Tribunal Federal da inconstitucionalidade do art. 2º, da Lei n. 8.072/1990, no qual não fora aceita pelo juízo da comarca de Rio Branco, sob o argumento de ter sido uma vitória apertada de seis votos a cinco e que o julgado se deu em sede de controle difuso de constitucionalidade, logo os efeitos se restringiam apenas as partes envolvidas.

O relator foi o Ministro Gilmar Mendes, e seu voto proferido causou polêmica no tocante à interpretação do texto constitucional, segundo Pedron (2012, p. 10) os pontos enfrentados pela decisão giraram em torno do não cabimento da ação, bem como o uso do recurso empregado, qual seja, o instituto da Reclamação, e o papel atual a ser desempenhado pelo Senado Federal nas demandas incidentais.

O argumento extraído do voto do Ministro Mendes que chama atenção no tocante à interpretação do texto constitucional é o de atribuir a decisões prolatadas em sede de controle difuso de constitucionalidade, julgamentos abstratos com eficácia erga omnes e efeito vinculante, excluindo a participação do Senado Federal na suspensão da eficácia das normas. 

Nesse Sentido o Ministro Gilmar Mendes realiza uma reconstrução histórica do papel do Senado da República em face do controle difuso de constitucionalidade, conforme expõe Pedron (2012, p. 13) essa função de suspender a eficácia da norma exercida pelo Senado da República, foi inserida a partir de reflexos do que foi construído nos Estados Unidos no que tange ao controle de constitucionalidade do mesmo.

Mendes (2007, p. 249) entende que a partir da Emenda 16/1965 na qual fora inserido no constitucionalismo brasileiro a figura do controle concentrado, iniciou um processo de evolução no tocante à fiscalização das leis. Em seguida, após a promulgação da Constituição de 1988, bem como as mudanças trazidas pela mesma originou-se o sistema misto, ou seja, os métodos, difuso e o concentrado equipararam-se.

É explicito o objetivo perseguido pelo Ministro em comento, qual seja retirar de vez a via difusa do ordenamento jurídico nacional. Em suas palavras Mendes (2004, p. 267-268) afirma que o controle concentrado permite maior celeridade, nele há possibilidade da concessão de liminar, ou seja, é um mecanismo moderno frente ao volume das demandas enfrentadas pelo Judiciário, desta forma, enfatiza-se a total obsolência do controle difuso, sendo o controle concentrado de constitucionalidade uma evolução para o constitucionalismo nacional.

Conforme expõe Pedron (2012, p. 15-16) algumas mudanças ocorridas tais como, a do art. 557, do Código de Processo Civil, no qual foram ampliados os poderes do relator que em sede de recurso extraordinário que poderá negar seguimento quando se tratar de ausência de algum pressuposto processual, assim como, a possibilidade de dar e negar provimento monocraticamente, e por último o efeito erga omnes em declaração de inconstitucionalidade no tocante a leis municipais, mesmo em decisões de eficácia inter partes, serviram de base para o Ministro Mendes incorporar essa nova postura.

Por intermédio dessas mudanças surge à necessidade segundo Pedron (2012, p. 16) de uma nova interpretação do art. 52, X, da CR/88.

Na Reclamação 4.335/AC os Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau para justificarem a interpretação que culmina na dispensa do Senado da República em suspender a eficácia da norma tida como inconstitucional, bem como a aplicação dos mesmos efeitos pertinentes o controle concentrado ao controle difuso de constitucionalidade, se valem da teoria da “mutação constitucional”.

Os Ministros adotaram uma nova interpretação do disposto no art. 52, X da CR/88, de acordo com o Ministro Grau (GRAU, voto na Rcl n. 4.335/AC, p.10) a partir de então a leitura a ser feita seria:

Compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, a outro texto: “compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo.

Segundo o Ministro Mendes (MENDES, voto na Rcl. n. 4.335/AC, p. 27) as razões para atender o que está expresso no art. 52, da atual Constituição seriam meramente históricas, tendo em vista, a ampliação do controle abstrato após a CR/88 no qual possibilitou a suspensão liminar da eficácia de leis, emendas e atos normativos, com eficácia geral. Diante do exposto, o Min. Mendes entende que esses motivos seriam suficientes para que o efeito inter partes fosse retirado do ordenamento jurídico brasileiro.

No mesmo sentido o Ministro Mendes (MENDES, voto na Rcl. n. 4.335/AC, p. 33) diz que o de controle de constitucionalidade brasileiro evoluiu ao ponto em que se possam ser equiparado os efeitos das decisões proferidas na via difusa e concentrada.

Se for levada a cabo, a ideia empregada pelo Ministro Mendes de excluir a participação do Senado Federal, a jurisdição brasileira enfrentará situações problemáticas, de forma precisa Streck, Oliveira e Lima (2007, p. 7) explicam que:

o modelo de participação democrática no controle difuso também se dá, de forma indireta, pela atribuição constitucional deixada ao Senado Federal. Excluir a competência do Senado Federal – ou conferir-lhe apenas um caráter de tornar público o entendimento do Supremo Tribunal Federal – significa reduzir as atribuições do Senado Federal à de uma secretaria de divulgação intra-legistativa das decisões do Supremo Tribunal Federal; significa, por fim, retirar do processo de controle difuso qualquer possibilidade de chancela dos representantes do povo deste referido processo, o que não parece ser sequer sugerido pela Constituição da República de 1988.    

Interessante se faz a colocação posta por Streck; Oliveira e Lima (2007, p. 7) na qual a redução do Senado Federal a um simples “órgão de imprensa”, juntamente com a atribuição de eficácia erga omnes e efeito vinculante a decisões de controle difuso, comprometem o exercício dos direitos fundamentais e violam também aos princípios do devido processo legal, tais como, ampla defesa e contraditório (art. 5.º, LIV e LV, da Constituição da República).

A alteração do controle difuso de constitucionalidade, apesar da sofisticada argumentação do Ministro Mendes, onde o mesmo apresenta o alargamento da via concentrada como evolução para o direito brasileiro, é compreendida de forma contrária por Streck; Oliveira e Lima (2007, p. 8) os quais entendem que a não diferenciação entre controle concentrado e difuso jogaria por terra todas as peculiaridades no tocante aos efeitos de ambos, haja vista que possuem um papel importante na estrutura jurídica brasileira. Segundo Streck; Oliveira e Lima (2007, p. 8):

portanto, parece óbvio que, se se entendesse que uma decisão em sede de controle difuso tem a mesma eficácia que uma proferida em controle concentrado, cairia por terra a própria diferença. É regra que o controle concentrado tenha efeitos ex tunc (a exceção está prevista na Lei nº 9.868/99). O controle difuso tem na sua ratio o efeito ex tunc entre as partes.

Complementando esse raciocínio Streck; Oliveira e Lima (2007, p. 8) explicam que o dispositivo 52, X da CR/88 não pode ser considerado inútil, uma vez que, as decisões proferidas em sede de recurso extraordinário, caracterizam-se pelos efeitos inter partes e ex tunc e somente após a atuação do Senado Federal na qual possui grande relevância na ordem prática do controle constitucionalidade é que se operará o efeito erga omnes, bem como ex nunc.

Vale salientar a diferença entre suspensão da eficácia da lei e anulação da mesma, no que tange o controle difuso de constitucionalidade. A primeira opera-se o efeito ex nunc após a ação do Senado Federal, tendo em vista que o efeito ex tunc será apenas entre as partes. A segunda opera-se o efeito ex tunc, ou seja, como se nunca houvesse existido, não produzindo efeito jurídico algum. Diferença essa que se faz necessária para compreender as distinções entre os efeitos das decisões da via difusa em face da via concentrada[4].

O que se discute desta prática adotada pelo Supremo Tribunal Federal segundo Streck; Oliveira e Lima (2007, p. 9-10) não é a obrigatoriedade de o Senado Federal elaborar o ato, e sim a própria sobrevivência do controle difuso de constitucionalidade frente à retirada de seus efeitos. Assim como, a defesa não é em favor de tradicionalismos, mas sim, ao risco de lesão ao “modelo constitucional do processo”, bem como aos direitos fundamentais.

A não aplicação do disposto no art. 52, X, da CR/88, de acordo com Streck; Oliveira e Lima (2007 p.12) resulta na abertura de precedente para o descumprimento das normas constitucionais, colocando a integridade da Constituição em risco.

Complementando Streck; Oliveira e Lima (2007, p. 17), fazem uma colocação importante sobre a relevância do artigo em comento. Segundo eles:

na verdade, há uma questão que se levanta como condição de possibilidade na discussão acerca da validade (e da força normativa) do art. 52,X, da Constituição do Brasil. Trata-se de uma questão paradigmática, uma vez que sua ratificação (o que vem sendo repetido pelo menos desde 1934), em uma Constituição dos tempos de Estado Democrático de Direito, dá-se exatamente pela exigência democrática de participação da sociedade no processo de decisão acerca da (in)constitucionalidade de uma lei produzida pela vontade geral.

Conforme explica Streck; Oliveira e Lima (2007, p. 20) a compreensão realizada pelo Ministro Mendes no que diz respeito à teoria da mutação constitucional, é que a mesma tem o escopo de solucionar o problema de lacuna existente entre o texto constitucional e a realidade social, ocorrida pelo descompasso entre a norma e a realidade temporal. A mutação constitucional será entendida então como espécie de “jurisprudência corretiva”, tal teoria foi preconizada por Büllow no fim do século XIX, onde era realizada por juízes considerados “éticos; criadores do Direito”.

Com propriedade Pedron (2012, p. 16) explicita a finalidade buscada pelo Ministro Mendes, que não se difere ao objetivo de Büllow empregado no fim do séuculo XIX, segundo ele:

assim, opera-se a mutação defendida por ele por meio da decisão do STF para esse caso – que, na realidade, não está reconhecendo a existência de uma mudança na prática jurídica brasileira, mas antes, criando norma constitucional a partir de uma reinterpretação do texto da Constituição. Nesse novo quadro, a decisão de Mendes atribui a toda decisão – inclusive no controle difuso – a possibilidade da eficácia erga omnes, reconhecendo que a própria decisão contém uma “força normativa”, restando ao Senado Federal apenas a tarefa de publicar tal decisão.

Nesse mesmo diapasão, segundo Pedron (2012, p. 20) encontra-se o posicionamento do Ministro Eros Grau em seu voto na reclamação 4.335/AC, no qual entende o art. 52, X, da CR/88 como obsoleto, apesar de reconhecer a tradição do controle difuso presente desde o advento da Carta de 1981. O Ministro Grau propõe a mutação constitucional, no qual resulta no fim da distinção entre as formas de controle difusa e concentrada de constitucionalidade.

O Ministro Grau (GRAU, voto na Rcl. n. 4.335/AC, p. 14) chega a dizer que o Supremo Tribunal Federal não deve se importar com o que a doutrina pensa, e sim a doutrina quem deve segui-lo, tendo em vista a impossibilidade de ocorrer o inverso.

Segundo Pedron (2012, p. 21) as diretrizes positivistas escritas por Kelsen no que tange a diferenciação entre o intérprete autêntico e o intérprete não autentico, são traços marcantes na compreensão do Ministro Eros Grau.

O conceito de mutação constitucional defendido pelos Ministros em comento retrata a reação do positivismo legalista diante da crise de seu próprio paradigma, segundo Streck; Oliveira e Lima (2007, p. 21):

Na verdade, o conceito de mutação constitucional mostra apenas a incapacidade do positivismo legalista da velha Staatsrechtslehre do Reich alemão de 1870 em lidar construtivamente com a profundidade de sua própria crise paradigmática. E não nos parece que esse fenômeno possui similaridade no Brasil. E mesmo em Hsü-Dau-Lin (referido pelo Ministro Eros Grau) e sua classificação “quadripartite” do fenômeno da mutação constitucional não leva em conta aquilo que é central para o pós-segunda guerra e em especial para a construção do Estado Democrático de Direito na atualidade: o caráter principiológico do direito e a exigência de integridade que este direito democrático expõe, muito embora, registre-se, Lin tenha sido discípulo de Rudolf Smend, um dos primeiros a falar em princípios e espécie de fundador da doutrina constitucional alemã pós-segunda guerra.

Conforme Streck; Oliveira e Lima (2007, p. 21) pontuam de forma precisa no sentido em que mutação constitucional defendida pelos Ministros, proporciona a defesa de um decisionísmo realizado pelo Tribunal Constitucional. Tribunal este que pretende conservar em si mesmo “poderes constituintes permanentes”.

O Supremo Tribunal Federal excede sua competência nitidamente quando utiliza da tese da mutação constitucional, bem como lança mão do poder normativo da Constituição. Segundo Streck; Oliveira e Lima (2007, p. 21) “um tribunal não pode mudar a constituição; um tribunal não pode ‘inventar’ o direito: este não é seu legítimo papel como poder jurisdicional, numa democracia”.

No mesmo sentido Streck; Oliveira e Lima (2007, p. 21) mostram o modelo ideal de jurisdição vista de um ângulo no qual há um fortalecimento do poder normativo da Constituição, tendo em vista, estar dentro dos moldes democráticos de jurisdição segundo eles:

de uma perspectiva interna ao direito, e que visa a reforçar a normatividade da Constituição, o papel da jurisdição é o de levar adiante a tarefa de construir interpretativamente, com a participação da sociedade, o sentido normativo da Constituição e do projeto de sociedade democrática a ela subjacente. Um tribunal não pode paradoxalmente subverter a constituição sob o argumento de a estar garantindo ou guardando

Vale salientar o desvirtuamento do controle difuso de constitucionalidade e da redução da discussão jurídica a questões da validade das normas ocasionada pela tese da mutação constitucional defendida pelos Ministros Mendes e Grau, Segundo Streck; Oliveira; Lima (2007, p.21):

ao pretender que caibam reclamações contra as suas teses e não contra as suas decisões proferidas em casos propriamente ditos (observe-se, estamos tratando do controle difuso, cuja ratio é o exame de casos concretos e questões prejudiciais), o Supremo Tribunal Federal desloca a discussão jurídica para os discursos de fundamentação (Begründungsdiskurs), elaborados de forma descontextualizada. Passam a ser “conceitos sem coisas”. E isso é metafísica, para utilizarmos uma linguagem cara à hermenêutica de cariz filosófico [...] Em outras palavras, a tese esgrimida pelo Ministro Gilmar Mendes reduz a discussão jurídica a questões de justificação da validade das normas. Ora, a discussão jurídica é sempre concreta e, confessemos, pela simples razão de que não somos metafísicos, não somos seres numenais: até mesmo quando se faz controle concentrado, há concretude. Afinal, há muito já se disse que a filosofia tem de descer dos céus para a terra, uma vez que os problemas estão cá em terra firme e não no mundo das idéias platônicas.

Em sentido oposto ao dos Ministros, Pedron (2012, p. 211) a partir da teoria do direito como integridade de Dworkin[5], apresenta uma nova compreensão do conceito de mutação constitucional, na qual afasta de vez os ideais positivistas e apresenta uma solução ao descompasso entre a norma constitucional e a realidade social suscitado pelos Ministros Mendes e Grau, sem fazer do Judiciário um Constituinte Originário, segundo ele:

A ideia de interpretação construtiva, possibilitada pela teoria do direito como integridade, é uma via hermenêutica fundamental para a efetivação da integridade do Direito. Além disso, Dworkin apresenta uma concepção de direito que não é redutora da normatividade e um mero conjunto de regras, mas antes, compreende essa normatividade com base, principalmente, na identificação de que os princípios jurídicos existem.

Desta forma, a teoria da mutação constitucional colocada pelos Ministros Mendes e Grau, não está em consonância com os princípios basilares do Estado Democrático de Direito, o que realmente ocorre não é adequação da norma à atual realidade social e sim a adequação da norma aos interesses particulares dos mesmos. Consubstanciando na erradicação do controle difuso de constitucionalidade do ordenamento jurídico pátrio se forem postas em prática os ideais dos Ministros supracitados.

Sobre o autor
Wille Alves de Lima Ferreira

Advogado Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Sete Lagoas - UNIFEMM.<br>Especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Para o Desenvolvimento Democrático - IDDE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Wille Alves Lima. Do monopólio hermenêutico exercido pelo Supremo Tribunal Federal em face da extinção do controle difuso de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3944, 19 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27633. Acesso em: 22 nov. 2024.

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