Resumo: O presente artigo tratará da infração administrativa prevista no art. 117, inciso XI, da Lei nº. 8.112/90, conhecida como advocacia administrativa ou tráfico de influência administrativa, que veda a atuação do servidor público como procurador ou intermediário de terceiros, visando evitar a utilização do cargo público em benefício de terceiros. Serão analisados os requisitos e a repercussão disciplinar e criminal.
Palavras-chave: Servidor público. Infração disciplinar. Tráfico de influência administrativa.
I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A infração capitulada no inciso XI do art. 117 da Lei nº. 8.112/90 veda a atuação do servidor público como procurador ou intermediário de terceiros, visando evitar a utilização do cargo público em benefício de terceiros, em homenagem aos princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa, proibindo condutas que ponham em evidência favorecimentos e conflitos de interesse.
Nesse sentido dispõe a Lei nº. 8.112/90 em seu art. 117:
Art. 117. Ao servidor é proibido:
[...]
XI – atuar, como procurador ou intermediário, junto a repartições públicas, salvo quando se tratar de benefícios previdenciários ou assistenciais de parentes até segundo grau, e de cônjuge ou companheiro.
Quando o agente público atua como procurador junto a repartições públicas, intuitivamente age com deslealdade à instituição a que serve (art. 116, inciso II, da Lei nº. 8.112/90) e deixa de observar as normas legais e regulamentares (art. 116, inciso III, da Lei nº. 8.112/90) pertinentes, proibitivas desse tipo de atuação.
Note-se que se trata de infração disciplinar assemelhada à prevista no art. 117, inciso IX da mesma lei (valimento do cargo), e que se caracteriza quando o servidor, valendo-se do prestígio, respeito ou especial relacionamento com os demais colegas, atua em nome de terceiro junto a órgãos ou entidades da Administração Pública, com ou sem instrumento de mandato, ou seja, como procurador ou intermediário.
Consoante o entendimento de José Armando Costa1, citando Alberto Bonfim:
Ambos os tipos, procurando reprimir o tráfico de influência administrativa da forma mais abrangente possível, mencionam o agir como procurador ou intermediário. Procurador é quem, munido do respectivo mandato, age abertamente no interesse de outrem; ao passo que a figura do intermediário, não dispondo de tal instrumento procuratório, atua sorrateiramente e de modo dissimulado. Referindo-se a esses dois atores (um de direito e o outro de fato), pondera Alberto Bonfim:
O intermediário, na sua posição, não se confunde com o procurador; este litiga, aquele intercede; este age a descoberto, aquele nos bastidores; este exige o reconhecimento do direito, aquele suplica a boa vontade. Sob esse aspecto, a atuação do intermediário é mais nefasta à boa administração do que a do procurador, quando ambos reúnam a tais posições a qualidade de funcionário público.
A norma busca evitar que os pleitos patrocinados pelo servidor atuando como procurador ou intermediário, junto a qualquer repartição pública, obtenha sucesso tão-somente em razão da qualidade específica de aquele agente ser agente público, o que lhe propicia acesso às repartições, seja por conta própria, seja por amizade, coleguismo ou clientelismo.
II – PRESSUPOSTOS
A citada infração disciplinar reside no animus de patrocinar pretensão alheia junto à administração pública, valendo-se da facilidade de acesso, camaradagem ou influência de que goza em razão da sua condição de servidor público (lobby ou tráfico de influência).
Logo, para que se caracterize a infração disciplinar do art. 117, inciso XI, da Lei nº 8.112/90, sujeita, em regra, à pena de demissão, é necessário que o servidor tenha, de alguma forma, se valido do poder de influência na repartição pública com o fim de obter um resultado satisfatório para aquele a quem patrocina ou intervém. Assim, não há a infração se o servidor atua como procurador ou intermediário, mas não utiliza o cargo para obter vantagem.
Segundo ensina Mauro Roberto Gomes de Mattos2:
O tipo objetivo da presente infração disciplinar é o patrocínio do servidor público, direta ou indiretamente, junto a repartições públicas, ainda que não no exercício do cargo, emprego ou função, mas valendo-se de sua condição funcional, para interceder em direito alheio.
Patrocinar corresponde a defender, pleitear, advogar junto a terceiros ou superiores hierárquicos o interesse particular.
Apenas para figurar a compreensão, destaque-se que a configuração desta irregularidade independe da existência e da validade de instrumento de mandato. No mesmo rumo, para a configuração, dispensa-se que o benefício a favor do terceiro esteja ou não na alçada de competência do servidor infrator; que se tenha conseguido ou não o objeto do pedido a favor do terceiro; que seja lícito ou ilícito o interesse do terceiro; e que se tenha comprovado o recebimento de vantagem de qualquer espécie pelo infrator.
III – TIPIFICAÇÃO PENAL
No tocante a tipificação penal da citada infração disciplinar, leciona Ivan Barbosa Rigolin3:
No inciso XI se impede ao servidor exercer a chamada “advocacia administrativa”, que é aquela modalidade de tráfico ou trânsito de influência, dentro da Administração pública, a qual pode eventualmente seduzir o servidor amigo de outros servidores com poder decisório em questões administrativas. Tal conduta é tipificada, aliás, pelo Código Penal, art. 321, como crime contra a Administração.
O citado art. 321 do Código Penal conceitua a advocacia administrativa nos seguintes termos:
Art. 321. Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário. Pena [...].
No âmbito penal, a advocacia administrativa exige mais do que um mero ato de encaminhamento ou protocolado de papéis. É curial que se verifique o efetivo patrocínio de uma causa, complexa ou não, perante a administração. Essa é a esclarecedora lição de Basileu Garcia, citado por Rogério Sanches Cunha4:
Que é patrocinar? Patrocínio é proteção, auxílio, amparo. Patrocinar uma causa é advogá-la, defendê-la. De certo modo, toda manifestação de boa vontade de um funcionário a certos papéis, na sua repartição, poderia ser interpretada como favorecimento, ou patrocínio. Precisamos, porém, colocar-nos dentro da realidade, sem fantasias mitológicas, ao cuidar de impor sanções penais. É impossível evitar que funcionários se interessem pelo andamento de determinados papéis, atendendo ao pedido de um amigo ou conhecido. Seria absurdo vislumbrar-se nesse fato corriqueiro e inocente o patrocínio de interesses, visado pelo legislador ao punir a advocacia administrativa. O que se desejou punir é, como a própria denominação da modalidade criminosa adverte, a atitude que comprove, da parte do funcionário, o ânimo de advogar pretensões alheias, utilizando-se da sua qualidade e do seu poder de funcionário, como força para a vitória que, desse modo desleal, tende a ser concedida a uma das partes. Para essa advocacia criminosa não é preciso ser formado em direito.
Anote-se, contudo, que o crime de advocacia administrativa, previsto no art. 321 do Código Penal, não se confunde, necessariamente, com a infração disciplinar prevista no art. 117, inciso XI, da Lei nº. 8.112/90. A infração disciplinar, para configurar-se, não exige que o agente patrocine interesse privado, nem que se valha da sua condição de funcionário público. Basta, para tanto, que atue como procurador ou intermediário junto a repartições públicas.
IV – A PENALIDADE CABÍVEL
No tocante a aplicação da penalidade disciplinar cabível, observa-se o disposto no art. 132, inciso XIII, da Lei nº. 8.112/90, que prevê a pena de demissão ao servidor, sendo-lhe vedado investir-se novamente em cargo público pelo prazo de cinco anos. Entretanto, cada caso deve ser analisado sob o princípio da proporcionalidade, verificando-se no caso concreto, por exemplo, se o servidor já foi punido anteriormente ou se o ato praticado importou em lesão aos cofres públicos5.
De acordo com o Manual de Processo Administrativo Disciplinar da Controladoria-Geral da União6 para se caracterizar a infração, dispensa-se a comprovação do sucesso do pedido ou interesse patrocinado pelo servidor; da licitude deste interesse; ou mesmo da comprovação de que a atuação do servidor em nome de outrem tenha proporcionado vantagem indevida a este. Basta, para que a conduta infrinja o dispositivo, que haja a possibilidade de que a atuação do servidor possa proporcionar um tratamento diferenciado do pleito do terceiro.
Cumpre destacar que o Tribunal de Contas da União7 já entendeu que
O servidor federal afastado sem remuneração, no gozo de licença-interesse, não pode licitamente advogar ou defender na condição de procurador interesses de terceiros junto à União ou a alguma de suas entidades, salvo quando se tratar de benefícios previdenciários ou assistenciais de parentes até o segundo grau, e de cônjuge ou companheiro, conforme estabelece o art. 117, inciso XI, da Lei nº. 8.112/1990;
O servidor que praticar a conduta acima descrita comete ilícito administrativo disciplinar, estando sujeito à pena de demissão, conforme estabelece o art. 132, inciso XIII, da Lei nº 8.112/1990.
Ademais, esse modo de proceder, da mais evidente imoralidade, por discriminatório, é excepcionado quando se tratar de pleiteamento, por servidor público, em nome de algum seu parente até segundo grau, ou de cônjuge ou companheiro, de benefícios previdenciários ou assistenciais8.
Cumpre trazer à baila, os ensinamentos de Marcos Salles Teixeira9:
A configuração desta irregularidade independe da existência e da validade de instrumento de mandato. No mesmo rumo, para a configuração, dispensa-se que o benefício a favor do terceiro esteja ou não na alçada de competência do servidor infrator; que se tenha conseguido ou não o objeto do pedido a favor do terceiro; que seja lícito ou ilícito o interesse do terceiro; e que se tenha comprovado o recebimento de vantagem de qualquer espécie pelo infrator. Advirta-se que, nessas duas últimas hipóteses, sendo interesse ilegítimo ou tendo o servidor recebido alguma vantagem por sua atuação, pode-se cogitar de enquadramento mais grave de improbidade.
Na exceção expressamente prevista no enquadramento (atuação em favor de benefícios previdenciários ou assistenciais), uma vez que a Lei não explicitou se os parentes para os quais permite procuração ou intermediação são afins e/ou agregados, interpreta-se que a permissão abrange a ambos. Aliás, a vedação expressa no dispositivo em comento é tão cristalina e inequívoca, cabível como uma espécie do grande gênero ‘valer-se do cargo’, que até se pode cogitar que o texto legal também se justifica para destacar a exceção, ou seja, para expressar que aquele tipo de conduta (atuação em favor de benefícios previdenciários ou assistenciais para parentes) é permitido.
A exceção em favor de tais benefícios foi aberta pela lei em razão do induvidoso caráter assistencial, social, humanitário, benemérito, que revestem; dificilmente, com efeito, alguém pleiteará, de maneira imoral ou egoisticamente interessada, benefícios previdenciários para seus parentes. Parentesco até segundo grau, por outro lado, é aquele assim definido pelo Código Civil, art. 333, e cada grau de parentesco é diferenciado do subsequente pela ocorrência de uma geração, seja em linha reta, seja em linha colateral10.
REFERÊNCIAS
COSTA, José Armando da. Direito Administrativo Disciplinar. Brasília: Editora Brasília Jurídica, 2004, p. 391.
CUNHA, Rogério Sanches. Código Penal para Concursos. Salvador: Ed. Podivm, 2009, p.487.
Manual de Processo Administrativo Disciplinar da Controladoria-Geral da União, 2013. Disponível em: <http://www.cgu.gov.br/publicacoes/GuiaPAD/Arquivos/ManualPAD.pdf>. Acesso em 15 out. 2013.
MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Lei nº. 8.112/90 interpretada e comentada. 2ª ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2006.
RIGOLIN, Ivan Barbosa. Comentários ao Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis. 6ª ed. revista e atualizada. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.
Superior Tribunal de Justiça. MS 7261/DF. Rel. Min. Nilson Naves. Terceira Seção. DJe 28.10.2009.
Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1159/2012 – Plenário. Rel. Ministro-Corregedor Augusto Nardes. Julgado em 16.05.2012.
Notas
1 COSTA, José Armando da. Direito Administrativo Disciplinar. Brasília: Editora Brasília Jurídica, 2004, p. 391.
2 MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Lei nº. 8.112/90 interpretada e comentada. 2ª ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2006, p. 569.
3 RIGOLIN, Ivan Barbosa. Comentários ao Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis. 6ª ed. revista e atualizada. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 267-8.
4 CUNHA, Rogério Sanches. Código Penal para Concursos. Salvador: Ed. Podivm, 2009, p.487.
5 STJ, Mandado de Segurança nº 13.169: Ementa: 5. Não viola o dever de proporcionalidade o ato disciplinar que, levando em conta a gravidade e repercussão da falta funcional, impõe a penalidade de demissão previamente prevista na norma legal.
6 Manual de Processo Administrativo Disciplinar da Controladoria-Geral da União, 2013. Disponível em: <http://www.cgu.gov.br/publicacoes/GuiaPAD/Arquivos/ManualPAD.pdf>. Acesso em 15 out. 2013.
7 TCU. Acórdão nº 1159/2012 – Plenário. Rel. Ministro-Corregedor Augusto Nardes. Julgado em 16.05.2012.
8 RIGOLIN, Ivan Barbosa. Op. cit., 2010, p. 268.
9 TEIXEIRA, Marcos Salles. Anotações sobre o Processo Administrativo Disciplinar. Manual do PAD. p. 464. Disponível em: <http://www.cgu.gov.br/publicacoes/GuiaPAD>.
10 RIGOLIN, Ivan Barbosa. Op. cit., 2010, p. 268.