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Um novo modelo de democracia:

democracia participativa no Estado Constitucional

Agenda 29/04/2014 às 16:41

A democracia procedimental de Habermas exige que a legitimidade do Direito esteja vinculada à existência de um espaço em que as pessoas democraticamente se comunicam e se consideram reciprocamente em um discurso racional, a fim de fundamentar a aceitação do resultado do processo.

 Com a crise do modelo social de Estado nos países centrais, agravada pela incapacidade financeira do Estado para atender às despesas sempre crescentes da providência estatal, visto que enfrentava a constante oposição da classe burguesa, e não conseguia mais atender a uma sociedade radicalmente plural, surge, como alternativa, o “Estado Democrático de Direito”, ou melhor, o “Estado Democrático Constitucional”.

Como já elucidado anteriormente, porém, o Brasil, assim como outros países periféricos, teve um marco temporal diferenciado do restante do mundo, diante do fato de ter vivido por largo período sob regime militar (1964 a 1985), passando por uma lenta abertura política que somente se principiou em 1974. Assim, apenas em 05 de outubro de 1988, com o advento da Constituição Federal, é que se impôs ao Brasil sua afirmação como um “Estado Democrático de Direito”.

Realmente, era preciso um novo modelo para enfrentar a crescente mobilização de vários segmentos da sociedade civil que exigiam, dentre outras coisas, participação constante nos debates de interesse público e a implantação de direitos individuais, sociais, coletivos e difusos. Não era mais possível limitar o conceito de povo e sua participação na vida política do Estado. Não havia outra solução a não ser implantar um novo regime de governo, pelo o qual o povo pudesse se manifestar e tivesse voz ativa. Como aponta Celso Campilongo:

Dez anos de estagnação econômica fizeram com que o país — e praticamente toda a América Latina — tivesse os alicerces de sua estrutura social abalados. A classe média proletarizada — e nisso se incluem, também, militares e magistrados — e o proletariado reduzido a crescentes graus de miserabilidade fazem da sociedade brasileira um compreensível arsenal de reivindicações radicalizadas e sem respostas eficazes do aparato estatal.1

Nesse contexto, “esse período de ‘transição para democracia’, isto é, passagem de um sistema normativo autoritário para um contexto de regras do jogo mais abertas e transparentes”, é marcado, no Brasil, por uma grande crise de hegemonia política, com ausência de mecanismos de articulação do consenso entre os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo. Em razão disso, “a lei transforma-se em instrumento relativamente impotente”.2

Entretanto, “o enfoque crítico emprestado ao conceito de estado de direito, notadamente o inconformismo com os limites do princípio da legalidade, não significa recusa ou negação da lei”. Almejava-se “um esforço de combinação do conteúdo de estado de direito com o conteúdo social da lei”, o que demandava a “transformação dos instrumentos de mediação dos conflitos tradicionalmente utilizados pelo Poder Judiciário”.3

Nas palavras de Campilongo, “o velho modelo legalista, concebido no século passado no bojo de um processo codificador adequado a sociedades mais estáveis e Estados menos interventores, dá seguidas demonstrações de não atender a grande parte das exigências da ordem social justa”. Ou seja, com a mudança de parâmetros de ordem e de justiça, “a legalidade precisa adaptar-se à nova conjuntura”.4

Não se questiona que “a observância do estado de direito e o cumprimento da legalidade caracterizam a ordem jurídica democrática”. Contudo, como alerta o autor, no contexto de crise da legalidade que tipifica o momento institucional brasileiro, o tema ganha contemporaneidade e importância. E acrescenta:

Na geometria da tripartição dos poderes, o juiz submete-se ao império da lei. A submissão é compensada pela independência do magistrado perante todos os outros fatores do processo decisório. Isso caracteriza a atuação do Judiciário no estado de direito. A simplicidade harmônica do modelo esbarra numa única dificuldade: o mundo real.

A avaliação feita pelo magistrado no momento de aplicar a lei não está submetido apenas à observância estrita da norma jurídica. A tarefa do julgador não é meramente técnica. Ao contrário, é social e politicamente determinada.5

Nesse sentido, no Estado Democrático, inaugurado a partir de um novo modelo constitucional, os “desarranjos sociais, acrescidos do esvaziamento do conceito liberal de legalidade, transformam o Judiciário num foro que vai além da aplicação mecânica da lei”.6

Celso Campilongo aduz que “o que está em jogo nos tribunais é também a interpretação a ser dada ao direito”, em que a lei é apenas uma das peças do tabuleiro, impotente para responder a todas as exigências dos jogadores. Essa a razão da necessidade “para os participantes do jogo, de ampliação de suas referências cognitivas”, ou seja, outras peças têm que entrar em cena.7

Ora, a grande peça que entra em jogo, dando norte a todas as regras deste, é a Constituição. Ela é quem trará a coerência à convivência das diversas leis existentes no sistema. Diante do rompimento “com os postulados de harmonia e homogeneidade da era das ‘grandes codificações’”,8 somente a Constituição é capaz de garantir a unidade do ordenamento jurídico e seu ajuste à realidade social.

Ademais, atendendo à pretensão de que todos os participantes do jogo realmente dele façam parte, é preciso ressaltar, conforme Hermes Zaneti Júnior, que o Estado Democrático de Direito, para além de consolidar as conquistas liberais (liberdades negativas), as conquistas decorrentes do surgimento da questão social — entendidas como conquistas igualitárias (liberdades positivas) — e as conquistas da solidariedade, direitos difusos e coletivos, reconhece como fundamental a participação do cidadão, “de forma a assegurar a participação dos destinatários do ato final de decisão nos atos intermediários de formação dessa decisão, bem como o direito de questionar a posteriori a decisão tomada na sua esfera de interesses”.9

Em suma, esse novo paradigma acrescenta, para além dos já consolidados direitos fundamentais, uma quarta dimensão referente à participação na formulação das decisões políticas, em senso amplo.

Diante das considerações anteriormente alinhavadas, constata-se que foi imprescindível a ruptura com o antigo modelo, o que envolveu a reestruturação da relação entre a esfera pública e a privada, por meio da retomada da soberania popular. Este resgate garante ao cidadão, de certa forma, ser autor das normas jurídicas, e ao mesmo tempo, com a consolidação dos direitos fundamentais, ser destinatário destas normas. Com isso, o Estado Democrático de Direito realiza a conjunção da autonomia pública e da autonomia privada dos sujeitos de direitos.

Hermes Zaneti Júnior aduz que para um Estado Democrático Participativo de Direito:

[...] é inarredável a percepção de que os modelos normativos de democracia liberal (indivíduo como centro do sistema e garantia da autodeterminação) e de democracia comunitária (comunidade como centro do sistema e garantia do “bem comum”, coletivamente identificado com uma concepção de “bem” fornecida a priori pelo consenso moral) não conseguem dar vazão às pretensões de um regime democrático pluralista, no qual a Constituição revela-se o eixo narrativo da unidade.10

Na atual sociedade resgata-se a ideia rousseauniana do pertencimento do poder ao povo, ou seja, de soberania popular. Retoma-se com isso o antigo conceito de “democracia”, palavra que vem do grego (demos = “povo” + kratos = “governo”) e quer significar que é o povo quem detém o poder soberano de tomar importantes decisões políticas, seja direta ou indiretamente, por meio de representantes eleitos. O termo “kratein” é traduzido como “governar”, mas outras traduções possíveis são poder, dominar, comandar, ou seja, ter força, capacidade e habilidade.

Friedrich Müller, na obra em que discute quem é o povo, aduz que não só o termo “demos” deve ser levado mais a sério como problema, como o termo “kratein”, além de ser “governar”, deve significar em grau hierárquico igual, isto é, “ser efetivamente levado a sério como fator determinante, como o fator decisivo com vistas à legitimação”. Finaliza da seguinte forma: “Quem deve, nesse sentido, ser efetivamente levado a sério como fator determinante? O povo”.11

Nesse esteio, Jorge Amaury Nunes ressalta que é quase automática a afirmação de que o titular do poder é o “povo”, mas alerta:

[...] não, porém, o povo como unidade homogênea, mas sim de forma fragmentária, embora não estamentalizada, onde a sociedade, organizada ou inorganizada, encontra múltiplas formas de manifestações e interesses sem que se possa perceber exatamente qual o interesse prevalecente, sendo certo que o prevalecer de ideias não está necessariamente ligado à expressão numérica do fragmento social, mas sim à capacidade de organização, articulação e pressão.12

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O professor é implacável ao afirmar que é a democracia que estimula uma nova visão de Estado e de Direito, os quais devem, por sua vez, ter uma nova visão de soberania e de exercício do poder, por meio da qual se compreende que essa titularidade de poder pelo povo encontra-se “diluída entre vários detentores de maneira não uniforme, com vários projetos de poder convivendo no mesmo sistema e buscando meios de resolver suas tensões internas em um contexto de definições pouco precisas e pouco estáveis”.13

Interessante notar que, como afirma Norberto Bobbio, a democracia, como forma de governo, é bastante antiga, vinda do pensamento político grego e definida como “governo dos muitos, dos mais, da maioria, ou dos pobres”,14 em contraposição ao governo de poucos. Leciona que:

Seja o que for que se diga, a verdade é que, não obstante o transcorrer dos séculos e todas as discussões que se travaram em torno da diversidade da democracia dos antigos com respeito à democracia dos modernos, o significado descritivo geral do termo não se alterou, embora se ressalte conforme os tempos e as doutrinas, o seu significado valorativo, segundo o qual o governo do povo pode ser preferível ao governo de um ou de poucos e vice-versa.15

Nada se alterou com relação à titularidade do poder, que sempre foi do povo, “mas o modo (mais ou menos amplo) de exercer esse direito”.16

Corroborando essa assertiva, José Afonso Da Silva é categórico ao explicar que “democracia é um conceito histórico. Não sendo por si um valor-fim, mas meio e instrumento de realização de valores essenciais de convivência humana, que se traduzem basicamente nos direitos fundamentais do homem”. Dessa forma, na medida em que há evolução social, seu conteúdo se enriquece. Assim, “democracia não é um mero conceito político abstrato e estático, mas é um processo de afirmação do povo e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da história”.17

O constitucionalista, citando Lincoln, afirma que a democracia, como regime político, é governo do povo, pelo povo e para o povo. É, pois, em razão da historicidade do conceito, um processo de convivência social “em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo, e em proveito do povo”. Em suma, “além de ser uma relação de poder político, é também um modo de vida, em que, no relacionamento interpessoal, há de verificar-se o respeito e a tolerância entre os conviventes”.18

Na esteira dessa doutrina, “a democracia não precisa de pressupostos especiais. Basta a existência de uma sociedade. Se seu poder emana do povo, é democracia; se não, não o é”.19

Seus princípios fundamentais são “o da soberania popular, segundo o qual o povo é a única fonte do poder”; e o da “participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este seja efetiva expressão da vontade popular”, sendo que nos casos em que a participação é indireta, surge um princípio derivado ou secundário: o da representação.20

Ademais, as técnicas que se utiliza para concretizar seus princípios evoluem com o tempo, “predominando, no momento, as técnicas eleitorais com suas instituições e o sistema de partidos políticos, como instrumentos de expressão e coordenação da vontade popular”.21

A democracia, portanto, tem como valores fundantes a igualdade substancial e a liberdade. Nas palavras de Cláudio Pereira de Souza Neto, “a liberdade dos cidadãos é uma condição fundamental para o efetivo exercício da soberania popular porque, sem liberdade, não é possível uma esfera pública autônoma”, pois “a racionalização e a legitimação das decisões políticas dependem da troca livre e igualitária de argumentos e contra-argumentos”.22

Tem-se, pois, que uma democracia decorrente efetivamente da soberania popular não se satisfaz mais tão somente com a democracia representativa. Não se propõe, porém, uma democracia direta plena, que “seria impossível materialmente nas sociedades complexas”. Como afirma Hermes Zaneti Júnior, “além de insensata, a democracia do ‘todos decidem sobre tudo’ seria uma forma totalitária de politizar tudo, obrigando o homem a viver da manhã até a noite sua tarefa política de cidadão, não deixando espaço para o simplesmente humano e o privado das relações sociais e da intimidade”.23

Paulo Bonavides afirma que o avanço a uma democracia direta, de acordo com os temperamentos exigidos em nossa época, realiza-se por meio de uma “democracia participativa”, que possui uma feição aberta para a participação do povo soberano em todas as questões vitais da ação governativa.24

Nessa toada, imperioso ressaltar que, para o autor, está-se a falar do “verdadeiro conceito de povo no que toca à esfera abstrata das justificações de seu poder”. Aduz que:

O povo é posto aí no interior e na cabeça da Constituição como instância concreta e material das supremas decisões coletivas da Nação, isto é, como ente político organizado e autodeterminativo que deixou de ter morada em regiões abstratas e metafísicas de puro simbolismo.

Constituição, povo e soberania, desse modo, exprimem a qualidade do poder superlativo em termos contemporâneos de legitimidade.

O povo é a Constituição, a Constituição é o povo; os dois com o acréscimo da soberania compõem a santíssima trindade política do poder.

Mas não de qualquer poder, senão daquele que traz a inviolabilidade, a grandeza ética, a fundamentalidade da democracia participativa.25

Assim, vislumbra-se a consolidação de uma democracia integral, que possibilite ampla participação do “povo”, titular do poder, nos procedimentos decisórios do Estado. Para tanto, “as sociedades complexas em que são muitos os polos de difusão do poder (família, mercado, Estado etc.) devem assegurar o dissenso e a possibilidade de um discurso jurídico válido, mesmo contra as maiorias aparentes”, cuja “necessidade está aliada à unidade da Constituição e à ‘pretensão de correção’ que lhe confere sentido”.26

Quando se fala em participação do povo nas questões de governo, pensa-se tanto nas decisões de política pública, por meio de iniciativas de projetos de lei, manifestações em audiências públicas, plebiscitos e outros mecanismos de debate público, quanto nas decisões judiciais do caso concreto, por meio de um processo civil democrático, em que existe um contraditório efetivo, como se pretende demonstrar nos próximos tópicos.

Somente com o dissenso e a distribuição do poder é que se poderá obter uma abertura da sociedade civil, que, finalmente, alarga-se e passa a integrar a democracia política.27 Alcança-se, desta feita, um modelo de democracia participativa, que se identifica com uma potencial atuação dos sujeitos e grupos sociais.28

Isso porque, segundo Cândido Rangel Dinamarco, a capacidade de influenciar na tomada de decisões dos centros de poder significa praticar democracia, de modo que quaisquer formas de influência nesse sentido são tidas como participativa.29 Ou seja, a democracia não se restringe a votar e ser votado, mas avança para a caracterização de um direito fundamental de participação do cidadão.

Entretanto, como elucida Paulo Bonavides, “para alcançar e instituir o novo modelo da democracia participativa faz-se mister, em sede teórica, repolitizar a legitimidade e, no campo positivo e objetivo, repolitizar também a legalidade”.30

Desta forma, o controle democrático-participativo deixa de primar somente pela ideologia positivista da juridicidade da lei, que almejava uma postura neutra, sem conexão com a axiologia do sistema. Este controle revela que a legitimidade não se retira da legalidade, mas de outra instância de poder, qual seja, o povo constitucional e soberano.31 Tem-se com isso uma repolitização da legitimidade.

Salta aos olhos, pois, a relevância que adquire a Constituição nesse modelo de democracia, uma vez que, como lei das leis, “é também a essência mesma da soberania como conceito jurídico”.32 E, como mencionado acima, como o povo está imerso na Constituição, esta é soberana, porém enquanto:

expressão substantiva e legítima de ordem e poder, a saber, direito supremo que regula a vida polis e da Sociedade, enquanto determinação de princípio e valor, por onde se limitam atos de governo e formas de exercício de cidadania nas sociedades organizadas debaixo da égide do Direito.33

Como diz Paulo Bonavides:

Em verdade, Constituição, Estado e Direito em sociedades abertas e pluralistas são, por um certo prisma, conceitos extremos, os quais na raiz da democracia fazem a conservação, a justificação e a plenitude da autoridade, da segurança e do comportamento.

Há neles a representação de uma forma de identidade. Há, sobretudo, um sistema de princípios e regras, uma ordem condensada de valores, um símbolo, um feixe de poderes legítimos que fluem das bases do Contrato Social.34

Entretanto, a Constituição, que abriga normas visualizadas pelos seus conteúdos e valores, não possui mais como fim uma segurança formal, “senão também a justiça substantiva, a justiça material, a justiça que se distribui na sociedade, a justiça em sua dimensão igualitária; portanto, a justiça incorporadora de todas as gerações de direitos fundamentais”,35 dentre os quais os de quarta geração, isto é, direito à democracia, à participação. Em suma, como bem leciona o autor:

Soberana é a Constituição, por garantir o Estado de Direito, a independência do juiz, a autoridade da lei, a execução das sentenças judiciais, a observância e proteção dos direitos humanos, o primado da norma de direito internacional, o livre e democrático funcionamento dos sistemas judiciais, a governança popular e representativa, a supremacia normativa dos princípios.36

Ao se teorizar acerca de democracia participativa exequível, portanto, não se pode desfazer de um conceito-chave para concretizá-la, que é o conceito de soberania, que já foi trabalhado anteriormente. Como visto, “a soberania constitucional é a verdadeira soberania do Estado — noutras palavras é a soberania do povo havida por pedra angular da democracia de participação”. Portanto, “assim concebida, em identidade com o povo, a soberania é qualidade do poder, conforme já entendia Jellinek; qualidade do supremo poder popular”.37

No campo positivo e objetivo da teoria da democracia participativa, trabalha-se com a ideia de repolitização da legalidade, em vista da necessidade de sua releitura nos termos da Constituição, a partir da recém-adquirida prevalência do princípio da constitucionalidade sobre o princípio da legalidade.

Nesse esteio, imperioso identificar os fundamentos dessa democracia participativa que possibilitará a efetividade dos direitos fundamentais constitucionais, cujo germe vem parcialmente expresso no parágrafo único do primeiro artigo da Magna Carta, pelo qual “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Paulo Bonavides, estudioso incansável e proponente desse novo modelo de democracia, afirma que:

A construção teórica da democracia participativa no âmbito jurídico-constitucional demanda o concurso de elementos tópicos, axiológicos, concretistas, estruturantes, indutivos e jusdistributivistas, os quais confluem todos para inserir num círculo pragmático-racionalista o princípio da unidade material da Constituição, o qual impetra, de necessidade, para sua prevalência e supremacia, uma hermenêutica da Constituição ou Nova Hermenêutica Constitucional, conforme tantas vezes, em inumeráveis espaços textuais, neste e noutros escritos, já referimos, debaixo dessa mesma denominação, tendo por desígnio metodológico e nomenclatural distingui-la da hermenêutica antiga e clássica.38

Assim, para a teorização da democracia participativa necessita-se de uma nova hermenêutica constitucional, cujas premissas metodológicas devem ser fundadas em valores e princípios, e de uma nova doutrina e ciência acerca da norma jurídica.39 Nesse passo, vale dizer que como “os princípios iluminam e dão vida às normas e cláusulas flexíveis da Constituição”, tem-se que “a teoria principiológica forma a base da teoria constitucional da democracia participativa”.40

De fato, diante da estrutura aberta composta por princípios, regras e valores, a hermenêutica clássica — dedutivista, jusprivatista e operada por positivistas confessos — ou ignorava ou rejeitava a materialidade normativa da Constituição, o que não é mais aceitável nesse modelo de democracia.

A nova hermenêutica constitucional para Paulo Bonavides é baseada nos ensinamentos de Friedrich Müller, para quem a norma deve ser transformada no substantivo da concretude, isto é, parte-se do texto, passa-se pela realidade para somente depois formular a regra e completar “o circuito concretizante ao aplicá-la”.41

Isso porque, ao contrário do que acreditavam os positivistas do formalismo jurídico, os enunciados do texto “ainda não contém a norma, mas o círculo limitativo do sentido no qual ela deve conter-se, e do qual o aplicador ou intérprete há de partir para construí-la e aplicá-la, e, depois, dar-lhe o mergulho ou a inserção na realidade fática”.42 Nessa trilha, aduz o constitucionalista que:

[...] a par da verticalidade legislativa do sistema, poder-se-á também com a democracia participativa traçar um círculo normativo de legitimidade, cujo percurso o intérprete faz, tendo por ponto de partida a obra constituinte, passando deste à do legislador quando faz a lei ou reforma a Constituição, até chegar, finalmente, ao juiz que estatui a regra do caso concreto, coroando dessa maneira a concretude jurídica do sistema sob a égide dos princípios e dos valores do ordenamento.

O juiz da democracia participativa não será, como no passado, ao alvorecer da legalidade representativa, o juiz “boca da lei”, da imagem de Montesquieu, mas o magistrado “boca da Constituição” e do contrato social, aquele que figuraria decerto a imagem de Rousseau redivivo.43

Diante disso, as três chaves teóricas capazes de conduzir a uma democracia participativa são (i) a repolitização da legitimidade por meio da soberania constitucional/popular, (ii) a repolitização da legalidade, uma vez que a lei cede lugar em importância à Constituição e (iii) uma nova hermenêutica constitucional. Demais disso, para além dessas condições, é possível acrescentar, como complemento e quarta condição teórica de exequibilidade do modelo de democracia participativa, a teoria discursiva de Jürgen Habermas.

Realmente, para efetivação da garantia dos direitos fundamentais, em vista da evolução do Estado e em nome de uma exigência idealizante de democracia, foi necessário materializá-los formalmente em um “texto escrito”, que contasse com a participação e o controle por parte de todos os beneficiados/afetados pelas medidas adotadas. Habermas, porém, não acredita no modelo tradicional de democracia e aposta em uma teoria discursiva que funda “a legitimidade do direito moderno numa compreensão discursiva da Democracia”. Na explicação de Menelick de Carvalho e Guilherme Scotti:

Como demonstrado pela própria história institucional da modernidade, o direito positivo, coercitivo, que se faz conhecer e impor pelo aspecto da legalidade precisa, para ser legítimo, ter sua gênese vinculada a procedimentos democráticos de formação de opinião e da vontade que recebam influxos comunicativos gerados numa esfera pública política e onde um sistema representativo não exclua a potencial participação de cada cidadão [...]. A essa relação entre positividade e legitimidade Habermas denomina tensão interna entre facticidade e validade, pois presente no interior do próprio sistema do Direito.44

Como em uma democracia participativa deve existir espaço para a participação dos cidadãos, não se pode ignorar que certamente haverá conflitos de valores decorrentes das interações sociais. Nesse caso, surge a questão de como agir diante do dissenso, quer dizer, como se deve neutralizar normativamente pela positividade a garantia da coexistência em igualdade de direitos com o asseguramento da legitimação mediante procedimentos, ou seja, como lidar com a tensão entre facticidade e validade em um ambiente de interação social. Habermas aponta que é preciso buscar uma regulamentação neutra:

[...] uma regulamentação capaz de encontrar, no plano mais abstrato da coexistência de diversas comunidades eticamente integradas, o reconhecimento racionalmente motivado de todas as partes envolvidas no conflito e que convivem em igualdade de direitos. Para essa mudança do plano de abstração é necessária uma mudança de perspectiva. Os envolvidos precisam deixar de lado a pergunta sobre que regulamentação é “melhor para nós” a partir da respectiva visão que consideram “nossa”; em vez disso, precisam checar, sob o ponto de vista moral, que regulamentação “é igualmente boa para todos” em vista da reivindicação prioritária da coexistência sob igualdade de direitos.45

Todavia, apesar de não ser possível uma solução moral passível de consenso para essa circunstância — pois os participantes desse debate possuem liberdade de expressão da vontade, o que, em assuntos da prática cotidiana, pode levar a um dissenso permanente —, é preciso que se decida.

Assim, considerando que é necessária a existência de uma decisão, seja política ou jurídica, para regular a sociedade, e esta deve ser legítima, inclusive em razão de a “qualidade específica do direito poder coagir”, torna-se necessário firmar um “proceder” do “processo democrático”, que inaugura a concepção de uma racionalidade procedimental do Direito, como força legitimadora das decisões.

A democracia, para Habermas, tem uma função epistêmica por manter a expectativa de que a legitimidade do Direito emerge do procedimento democrático que pressupõe a aceitabilidade racional dos resultados produzidos diante do princípio do discurso de que “apenas são válidas as normas nas quais todas as pessoas possivelmente afetadas possam concordar como participantes de um discurso racional”.46 O autor elucida que:

O discurso racional é supostamente público e inclusivo, para garantir iguais direitos comunicativos aos participantes, para exigir sinceridade e para desmantelar todo tipo de força salvo a débil força do melhor argumento. Esta estrutura comunicativa supostamente deve criar um espaço deliberativo para a mobilização das melhores contribuições disponíveis para os tópicos mais relevantes.47

Por conseguinte, a teoria discursiva de Habermas contribui para a afirmação de um novo modelo de democracia — a democracia participativa — pois, ao criar um novo paradigma de racionalidade (procedimental) e fundar a legitimidade do Direito moderno numa compreensão discursiva da democracia, exige que a legitimidade do Direito esteja vinculada à existência de um espaço em que as pessoas democraticamente se comunicam e se consideram reciprocamente em um discurso racional, a fim de fundamentar a aceitação do resultado do processo (no caso, uma norma).


Notas

1 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Op. cit., p. 120.

2 Ibidem, p. 118.

3 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Op. cit., p. 118.

4 Ibidem, p. 118.

5 Ibidem, p. 118.

6 Ibidem, p. 120.

7 Ibidem, p. 120.

8 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Op. cit., p. 123.

9 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 114-115.

10 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Op. cit., p. 266.

11 MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 89.

12 NUNES, Jorge Amaury Maia. Op. cit., p. 31.

13 Ibidem, p. 34.

14 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 2000, p 31.

15 Ibidem, p 31.

16 Ibidem, p. 32.

17 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 125-126.

18 Ibidem, p. 126.

19 Ibidem, p. 128.

20 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 131.

21 Ibidem, p. 131.

22 SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Deliberação Pública, Constitucionalismo e Cooperação Democrática. In: BARROSO, Luís Roberto. (Org.). A reconstrução democrática do Direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 53-54. O autor também aponta a igualdade em suas diversas dimensões, como (i) a igualdade “político-formal”, ou seja, igualdade de “possibilidades” de participação política (igualdade de acesso); (ii) a igualdade “material”, que pressupõe a distribuição justa dos recursos sociais, para que as decisões resultem da vontade popular (dimensão econômica); (iii) igualdade “de capacidades”, para que os cidadãos exerçam “real influência” na participação coletiva, o que demanda “capacidade para uso pleno e efetivo das oportunidades políticas e liberdades na deliberação”; (iv) igualdade “de possibilidades de manifestação de diferenças” (dimensão cultural), que exige o reconhecimento das diferenças e pressupõe o pluralismo, com “tratamento igualitário, no sentido de atribuição de um igual respeito às identidades tradicionalmente discriminadas” (Ibidem, p. 58-63).

23 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Op. cit., p. 132.

24 BONAVIDES, Paulo. Teoria... Op. cit., p. 345.

25 BONAVIDES, Paulo. Teoria... Op. cit., p. 304.

26 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Op. cit., p. 135.

27 Ibidem, p. 137.

28 Ibidem, p. 138.

29 DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p. 201.

30 BONAVIDES, Paulo. Teoria... Op. cit., p. 346.

31 Ibidem, p. 347.

32 Ibidem, p. 343.

33 Ibidem, p. 343-344.

34 Ibidem, p. 343-344.

35 BONAVIDES, Paulo. Teoria... Op. cit., p. 28.

36 Ibidem, p. 343.

37 Ibidem, p. 42-43.

38 BONAVIDES, Paulo. Teoria... Op. cit., p. 42.

39 Ibidem, p. 206.

40 Ibidem, p. 352.

41 Ibidem, p. 39.

42 Ibidem, p. 39.

43 BONAVIDES, Paulo. Teoria... Op. cit., p. 22.

44 CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do Direito: a produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 111.

45 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução George Sperber; Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002, p. 311.

46 HABERMAS, Jürgen. Facticidade e validade: reflexões de um autor. Denver University Law Review, v. 76, n. 4, 1999, p. 940.

47 Ibidem, p. 940.

Sobre a autora
Renata Espíndola Virgílio

Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001), especialização em Direito Processual Civil pela Unicsul (2007) e em Defesa da Concorrência pela Fundação Getúlio Vargas (2010). É Procuradora Federal (Advocacia Geral da União) e mestre em Direito, na linha de processo, pela UnB (2013).<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIRGÍLIO, Renata Espíndola. Um novo modelo de democracia:: democracia participativa no Estado Constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3954, 29 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27953. Acesso em: 22 dez. 2024.

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