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Crime militar praticado em serviço: autuação em flagrante ou instauração de IPM?

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Agenda 30/05/2014 às 13:34

O exercício da atividade de polícia judiciária militar deve ser comedida e razoada, principalmente em face dos crimes militares praticados em serviço ou em razão da função, quando ficar patente que o policial militar agiu no cumprimento da sua missão constitucional e albergado pelas excludentes de ilicitude ou culpabilidade.

1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal em seu art. 144, § 5º estabelece que às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública. No entanto, a cada dia, a atividade policial militar torna-se mais complexa face à ocorrência de grandes manifestações populares, rebeliões em presídios, ações do crime organizado, maior violência e letalidade por parte dos criminosos etc. Nesse contexto, em alguns casos, a ação policial tem como resultado a morte dos envolvidos, principalmente nas situações de alto risco em que o uso da força letal é inevitável (confrontos armados, ação de sniper etc). Dessa forma, ficando patente que o policial militar agiu no cumprimento de sua missão constitucional e albergado pelas excludentes de ilicitude ou culpabilidade, como deve agir a autoridade policial judiciária militar: atuar em flagrante o policial militar ou instaurar Inquérito Policial Militar para apurar o fato?

O presente artigo tem por objetivo analisar a atuação da autoridade policial judiciária militar em face dos crimes militares praticados em serviço ou em razão da função. Destarte, a partir de uma profunda pesquisa doutrinária, legislativa e jurisprudencial abordaremos o polêmico tema da discricionariedade da autoridade de polícia judiciária militar na análise das excludentes de ilicitude ou culpabilidade por ocasião da prisão em flagrante, bem como apresentaremos propostas de procedimentos que poderão ser adotados pela autoridade de polícia judiciária militar que conciliem respeito à dignidade do militar de polícia e aos princípios constitucionais, sem prejuízo à persecução penal e às atribuições do Ministério Público e do Poder Judiciário.


2. INQUÉRITO POLICIAL MILITAR E AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE DE CRIME MILITAR

Inicialmente é preciso destacar que na apuração de crime militar o procedimento legal cabível é o Inquérito Policial Militar – IPM. ALEXANDRE JOSÉ DE BARROS LEAL SARAIVA[1] conceitua o IPM como sendo o conjunto de diligências efetuadas pela polícia judiciária militar, destinado a reunir os elementos de convicção referentes à autoria e à materialidade de um crime militar, a fim de que o Ministério Público Militar possa exercer a ação penal.

Em relação à prisão em flagrante, o art. 244, CPPM[2] estabelece as hipóteses que caracterizam o estado de flagrância na Legislação Processual Penal Militar:

Art. 244. Considera-se em flagrante delito aquele que:

a) está cometendo o crime;

b) acaba de cometê-lo;

c) é perseguido logo após o fato delituoso em situação que faça acreditar ser ele o seu autor;

d) é encontrado, logo depois, com instrumentos, objetos, material ou papéis que façam presumir a sua participação no fato delituoso.

Parágrafo único. Nas infrações permanentes, considera-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência.

Após essas considerações, faz-se necessário estabelecer quais são as autoridades competentes para a lavratura do auto de prisão em flagrante de crime militar. A esse respeito, o art. 245, CPPM, assevera:

Art. 245. Apresentado o preso ao comandante ou oficial de dia, de serviço ou de quarto, ou autoridade correspondente, ou à autoridade judiciária, será, por qualquer deles, ouvido o condutor e as testemunhas que o acompanharem, bem como inquirido o indiciado sobre a imputação que lhe é feita, e especialmente sobre o lugar e a hora em que o fato aconteceu, lavrando-se de tudo auto, que será por todos assinados.

Por fim, é imprescindível frisar que a autoridade policial judiciária militar, por ocasião da lavratura do auto de prisão em flagrante, deverá colher o máximo de elementos probatórios bem como assegurar todas as garantias constitucionais do acusado.


3. INSTITUTO DA APRESENTAÇÃO ESPONTÂNEA

Neste momento, passaremos a analisar o instituto da apresentação espontânea e a sua importância na atividade policial militar. Destarte, é oportuno frisar que o militar que se apresenta espontaneamente não poderá ser preso em flagrante por não se enquadrar nas hipóteses elencadas no art. 244, CPPM. Assim, a autoridade policial judiciária militar não poderá proceder o Auto Prisão em Flagrante, e sim confeccionar o Termo de Comparecimento Espontâneo, como estabelece o art. 262, CPPM:

Art. 262. Comparecendo espontaneamente o indiciado ou acusado, tomar-se-ão por termo as declarações que fizer. Se o comparecimento não se der perante a autoridade judiciária, a esta serão apresentados o termo e o indiciado ou acusado, para que delibere acerca da prisão preventiva ou de outra medida que entender cabível.

Parágrafo único. O termo será assinado por duas testemunhas presenciais do ocorrido; e, se o indiciado ou acusado não souber ou não puder assinar, sê-lo-á por uma pessoa a seu rogo, além das testemunhas mencionadas.

A respeito dessa questão, nos fala ÉLIO DE OLIVEIRA MANOEL[3]:

A prisão em flagrante delito pressupõe que o autor do crime seja encontrado cometendo o crime, logo após ou em circunstâncias que se presuma ser ele o autor do delito. Agora, o cometimento do delito, se o autor se apresenta espontaneamente à autoridade não estará em situação de flagrante delito, portanto não poderá ser autuado em flagrante delito. Quando o militar se apresenta ao seu superior, logo após cometer crime, deverá ser lavrado o respectivo Termo de Apresentação Espontânea, que deverá ser instruído com os Autos de Exibição e Apreensão de armas, papéis, materiais e instrumentos, utilizados pelo autor do crime-militar, os quais servirão de prova. Contudo, a apresentação espontânea não significa confissão de crime, mas um indicativo dessa circunstância. [...].

Em termos da vida prática da atividade policial militar e o instituto da apresentação espontânea, aponta o referido autor[4]:

Como regra, quando policiais-militares têm sua autoridade resistida e em função disso precisam fazer o uso de força ou até mesmo de meios letais, crimes acabam acontecendo e as ações acabam configurando o estrito cumprimento do dever legal. A prática demonstrar que logo após as ações policiais já se fazem as comunicações ao superior. Essa simples comunicação já é o ato de apresentação espontânea, que precisa, apenas, no tempo oportuno, ser objeto de lavratura em termo próprio.

Nesse aspecto, é importante ressaltar ainda, por sua precisão e clareza, o antigo acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (RT 274/106), citado por DAMÁSIO DE JESUS[5], em que consta que se a principal finalidade da prisão em flagrante é a de evitar a fuga do criminoso, se este se apresenta espontaneamente à autoridade policial, óbvio é que não há lugar para flagrante. No mesmo sentido FERNANDO CAPEZ[6] quando assevera que a autoridade policial não poderá prender em flagrante a pessoa que se apresentar espontaneamente, de maneira que não se pode falar em flagrante por apresentação.


4. A ATUAÇÃO DA POLÍCIA JUDICIÁRIA MILITAR NOS CRIMES MILITARES PRATICADOS EM SERVIÇO

Neste tópico, a partir do estudo das fases do procedimento de prisão em flagrante e do poder discricionário da autoridade policial judiciária militar na análise das excludentes de ilicitudes ou culpabilidade por ocasião da prisão em flagrante, buscaremos responder ao crucial dilema pelo qual passa a autoridade policial judiciária militar quando se depara com a prática de ilícitos penais militares praticados em serviço ou em razão da função: autuação em flagrante do policial militar ou apuração do fato em IPM?

4.1 ANÁLISE DAS FASES DO PROCEDIMENTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE

Para melhor entendimento do tema abordado, cumpre inicialmente abordarmos a análise das fases do procedimento de prisão em flagrante. TALES CASTELO BRANCO[7] assim examina as peculiaridades da prisão em flagrante:

É prisão porque restringe a liberdade humana; é penal porque foi realizada na área penal; é cautelar porque expressa uma precaução, uma cautela do Estado para evitar o perecimento de seus interesses; e é administrativa porque foi lavrada fora da esfera processual, estando, portanto, pelo menos no momento de sua realização, expressando o exercício da atividade administrativa do Estado.

Nessa ordem de raciocínio, examinaremos as fases do procedimento da prisão em flagrante. Destarte, podemos classificar a prisão em flagrante em duas fases distintas: a primeira diz respeito à prisão-captura, efetivada no momento da voz de prisão àquele que esteja em estado de flagrância (art. 243, CPPM), e a segunda fase, diz respeito ao procedimento de autuação em flagrante propriamente dita, após a análise, por parte da autoridade policial judiciária militar, dos aspectos fáticos e jurídicos que ensejaram a prisão-captura do suposto infrator. Nesse aspecto, imprescindível se faz a lição de ADILSON LUIS FRANCO NASSARO[8]:

Via de regra o procedimento policial da prisão em flagrante desenvolve-se em dois momentos, ou etapas, conforme indicado: primeiro a constatação da prática de infração penal no estado de flagrante delito, oportunidade em que o responsável pela prisão-captura dá a voz de prisão, para então conduzir o preso, juntamente com as testemunhas e ofendido (logicamente, se pessoa física diversa de si próprio) até a presença da autoridade competente para a autuação, ou seja, para a lavratura do auto de prisão em flagrante. A etapa da formalização constituirá o segundo momento do procedimento, ocasião em que o presidente do auto confirmará a voz de prisão já proferida. A exceção fica por conta da hipótese prevista no art. 307 do CPP e, simetricamente, no art. 249 do CPPM (esfera penal militar) em que a própria autoridade que tem competência para autuar presencia, no exercício de suas funções, a prática de infração penal - que pode inclusive ser contra ela praticada -, circunstância que o habilita a dar a voz de prisão e, incontinente, presidir o auto de prisão sem a figura do condutor, em um procedimento caracterizado pela concentração de atos e pela declaração de vontade de apenas um órgão.

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Acerca da captura, o art. 230 do Código de Processo Penal Militar estabelece:

Art. 230. A captura se fará:

Caso de flagrante

a) em caso de flagrante, pela simples voz de prisão;

Caso de mandado

b) em caso de mandado, pela entrega ao capturando de uma das vias e conseqüente voz de prisão dada pelo executor, que se identificará.

No que tange à voz de prisão no ato da captura, nos fala ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO[9]:

A "voz de prisão em flagrante" constitui ato desenvolvido por policial ou por qualquer pessoa que surpreende ou presencia outrem em conduta legalmente definida como infração penal, ou na sequência da referida conduta, em situação denominada estado de "flagrante delito". Nesse momento dá-se a prisão-captura (a "detenção") daquele que se tem como autor da infração, em ato preparatório da prisão-custódia (recolhimento ao cárcere). No instante da prisão, o sujeito ativo - o que tem a iniciativa da captura - profere algumas breves palavras, que dão publicidade à sua ação e, com isso, garante a ciência ao sujeito passivo (infrator) e de quem mais esteja presente, objetivamente sobre a privação de liberdade que está impondo como consequência de tal intervenção.

Desse modo, conclui-se que a prisão em flagrante (captura) e a autuação em flagrante propriamente dita são coisas distintas, realizadas em momentos distintos e, por vezes, por autoridades distintas. Assim, deve-se ter em mente que a apresentação do conduzido à autoridade policial judiciária militar competente para a lavratura do auto de prisão não significa, necessariamente, que o conduzido será autuado em flagrante.

Por fim, é importante destacar ainda que parte da doutrina classifica o procedimento da prisão em flagrante como um ato administrativo complexo[10] com duas etapas distintas: a primeira diz respeito à fase administrativa (prisão-captura), englobando a prisão em virtude do estado de flagrância e a autuação em flagrante pela autoridade policial judiciária; e a segunda diz respeito à fase processual, em que o juiz exerce o controle jurisdicional da prisão em flagrante.  Nesse sentido, é oportuna a lição de TOURINHO NETO[11] a respeito das fases do procedimento da prisão em flagrante:

A primeira, que diz respeito à prisão-captura, de ordem administrativa, e a segunda, que se estabelece no momento em que se faz a comunicação ao juiz, de natureza processual, quando a homologação ou a manutenção ou transformação da prisão somente deve ocorrer se presente um dos fundamentos para a decretação da prisão preventiva (seria assim, ato administrativo na origem, sendo judicializado no final).

4.2 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO FLAGRANTE COMPULSÓRIO

A doutrina nos fala acerca do chamado flagrante compulsório com base no que estabelece a segunda parte do art. 301, CPP “... as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”. Todavia, devemos ter em mente que essa determinação diz respeito à prisão-captura daqueles que se encontram em estado de flagrância por força do art. 302, CPP. Nesse sentido, o flagrante compulsório é destinado aos integrantes das forças policiais tendo em vista que eles devem obrigatoriamente prender em flagrante (rectius, capturar) quem se encontra nas hipóteses previstas no art. 302, CPP. A este respeito, ensina NESTOR TÁVORA e ROSMAR ANTONINI[12] sobre o alcance do art. 301, CPP:

Alcança a atuação das forças de segurança, englobando as polícias civil, militar, federal, rodoviária, ferroviária e corpo de bombeiro militar (art. 144 da CF). Estas têm o dever de efetuar a prisão em flagrante, sempre que a hipótese se apresente (art. 301, in fine, CPP).

Logo, fica patente que o flagrante compulsório é destinado às instituições policiais e aos seus integrantes de forma genérica (primeira fase do ato da prisão em flagrante, ou seja, a prisão-captura), não devendo ser entendida no sentido de obrigar a autoridade policial a autuar em flagrante (segunda fase da prisão em flagrante, isto é, a atuação em flagrante propriamente dita) sem a mínima avaliação jurídica do caso concreto.

 Da mesma forma, discordamos daqueles que procuram fundamentar o flagrante compulsório com base no argumento de que o art. 304, CPP[13] utiliza de forma imperativa o verbo “lavar”, obrigando a autoridade policial a proceder a lavratura do auto de prisão em flagrante, como advoga EDUARDO AUGUSTO PAGLIONE[14] citando HÉLIO TORNAGHI:

O Código de Processo Penal, em seu art. 304, caput, utiliza a forma imperativa do verbo e prevê a lavratura do auto, sem dar margem a discricionariedade. Hélio Tornaghichega mesmo a afirmar que “a lavratura do auto é indeclinável desde que alguém tenha sido levado como preso em flagrante” (1987, p. 64), o que serviria para “aquilatar a responsabilidade de quem efetuou a prisão”, bem como “o acerto ou desacerto da autoridade policial” (loc. cit.).

Nesse aspecto, com a devida vênia, não compartilhamos dessa visão formalista, ao nosso sentir, a interpretação literal da norma processual penal se traduz em ofensa e indiferença à dignidade da pessoa humana, sendo inaceitável, em um Estado Democrático de Direito, a violação de direitos fundamentais, sob o argumento de cumprir as meras formalidades da lei processual penal. Acerca do tema, imprescindível se faz destacar a instrutiva jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[15]:

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 15a Câmara Criminal. Indivíduo exige que o delegado de polícia deva deliberar com prudência em todas as situações que lhe for possível a restrição de tal direito, as quais constituem hipóteses de extrema excepcionalidade. Não observada a prudência devida ficaria fadado a cometer abusos manifestos contra a pessoa; e assim também, se obrigado fosse, de forma automática, a praticar ato de restrição de liberdade por puro mandamento legal sem que pudesse sopesar da oportunidade para tanto. Logo, é do próprio cerne das decisões do delegado de polícia, possuírem conteúdo de discricionariedade, sob pena de praticarem os maiores abusos devido à obediência estrita da letra fria da lei, sem que possa apresentar sua interpretação, jungida à prudência e o bom senso. Aliás, a respeito do poder discricionário, HELYLOPES MEIRELLES observa que nem mesmo com relação aos atos vinculados o administrador está limitado a executar a lei cegamente: "Tanto nos atos vinculados como nos que resultam da faculdade discricionária do Poder Público, o administrador terá de decidir sobre a conveniência de sua prática, escolhendo a melhor oportunidade e atendendo a todas as circunstâncias que conduzam a atividade Habeas Corpus n° 990.10.078571-0 - Comarca de Sumaré - Voto n" 1766 j.

Por fim, é importante enfatizar que no estudo do tema aqui abordado nos referimos à legislação processual penal comum porque dela cuida grande parte da doutrina. No Código de Processo Penal Militar, o chamado flagrante compulsório ou obrigatório está estabelecido no art. 243 “[...] os militares deverão prender quem for insubmisso ou desertor, ou seja encontrado em flagrante delito”.

4.3 O PODER DISCRICIONÁRIO DA AUTORIDADE POLICIAL JUDICIÁRIA MILITAR

Superado o entendimento acerca do flagrante compulsório ou obrigatório, necessário se faz analisar o polêmico tema do poder discricionário da autoridade policial judiciária militar[16]. CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO[17] define discricionariedade como sendo a margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que este cumpra o dever de integrar com a sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal.

O Código de Processo Penal Militar em seu art. 244 estabelece as hipóteses que caracterizam o estado de flagrância:

Art. 244. Considera-se em flagrante delito aquele que:

a) está cometendo o crime;

b) acaba de cometê-lo;

c) é perseguido logo após o fato delituoso em situação que faça acreditar ser ele o seu autor;

d) é encontrado, logo depois, com instrumentos, objetos, material ou papéis que façam presumir a sua participação no fato delituoso.

Parágrafo único. Nas infrações permanentes, considera-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência.

Dessa forma, para que seja efetuada a prisão em flagrante delito, o militar deve estar em uma das situações descritas no art. 244, CPPM. Destarte, a autoridade policial judiciária militar deve formular mentalmente os seguintes quesitos:

-O policial militar fora preso praticando o crime?

-O policial militar fora preso quando acabou de cometê-lo?

-O policial militar fora preso em virtude de ter sido perseguido após o fato delituoso em situação que faça acreditar ser ele o seu autor?

-O policial militar fora encontrado logo depois, com instrumentos, objetos, material ou papéis que façam presumir a sua participação no fato delituoso?

Em seguida, ainda cabe a autoridade policial judiciária militar analisar:

- A conduta descrita configura ilícito penal?

- Existem elementos probatórios suficientes que confirme a prática de ilícito por parte do conduzido?

- Quais procedimentos deverão ser adotados (análise da conduta ilícita e seus aspectos jurídicos etc)?

Havendo dúvida, por parte da autoridade policial judiciária militar, sobre a certeza de que o militar que lhe foi apresentado encontra-se em alguma das hipóteses legais que autorizem a prisão em flagrante, deve-se optar pela não autuação, valendo-se de outros mecanismos que lhe oferece o direito militar, como por exemplo, determinar a apuração do fato em IPM ou em sindicância. Nesse sentido, nos ensina ELÁDIO PACHECO ESTRELA[18]:

A lavratura do auto de prisão em flagrante não deve ser um ato automático da autoridade policial judiciária militar, porquanto todos os elementos trazidos a sua presença têm que ser examinados, no sentido de se constatar se existe ou não os pressupostos para ser instaurado o feito.Nesse sentido, não se convencendo a autoridade da existência de pressupostos para a lavratura do auto, poderá simplesmente instaurar o inquérito policial militar, ou apenas instaurar sindicância disciplinar ou informativa (V. vol. II), para apurar os fatos que naquele momento lhe são trazidos e, no futuro, em razão dos seus desdobramentos, tomar a decisão legalmente mais adequada à apuração.

Da mesma forma, JULIO FABBRINI MIRABETE[19]:

Não se trata, porém, de ato automático da autoridade policial pela simples notícia do ilícito penal pelo condutor. A autuação em flagrante delito pressupõe a certeza absoluta da materialidade do crime e indícios mínimos da autoria. Inexistentes tais elementos, a autuação em flagrante delito pode constituir-se abuso de autoridade.

FERNANDO CAPEZ[20] assevera que “a autoridade policial, sendo autoridade administrativa, possui discricionariedade para decidir acerca da lavratura ou não do auto de prisão em flagrante”. Acerca da discricionariedade da autoridade policial judiciária, EDUARDO PAIXÃO CAETANO[21] nos traz farta jurisprudência:

TACRSP: “[...] Inocorre o delito do art. 319 do CP, na conduta de Delegado de Polícia que deixou de lavrar auto de prisão em flagrante de acusado que nessa situação se encontrava, iniciando somente o Inquérito Policial, pois a regra da lavratura do auto de prisão em flagrante em situações que o exijam, não é rígida, sendo possível certa discricionariedade no ato da Autoridade Policial, que pode deixar de fazê-lo em conformidade com as circunstâncias que envolvem cada caso”. (RDJTACRIM 51/193).

TACRSP: “Para a configuração do crime previsto no art. 319 do CP é indispensável que o ato retardado ou omitido se revele contra disposição expressa de lei, inexistindo norma que obrigue o Delegado de Polícia autuar em flagrante todo cidadão apresentado como autor de ilícito penal, considerando seu poder discricionário, não há se falar em prevaricação”. (RT 728/540).

TACRSP: “A autoridade policial goza de poder discricionário de avaliar se efetivamente está diante de notícia procedente, ainda que em tese e que avaliados perfunctoriamente os dados de que dispõe, não operando como mero agente de protocolo, que ordena, sem avaliação alguma, flagrantes e boletins indiscriminadamente”. (RJTACRIM 39/341).

TACRSP: “Compete privativamente ao delegado de polícia discernir, dentre todas as versões que lhe sejam oferecidas por testemunhas ou envolvidos em ocorrência de conflito, qual a mais verossímil e, então, decidir contra quem adotar as providências de instauração de inquérito ou atuação em flagrante. Somente pode ser acusado de se deixar levar por sentimentos pessoais quando a verdade transparecer cristalina em favor do autuado ou indiciado e, ao mesmo tempo, em desfavor daquele que possa ter razões para ser beneficiado pelos sentimentos pessoais da autoridade (RT 622/296-7).

TACRSP: “A determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia não se constitui em um ato automático, a ser por ele praticado diante da simples notícia do ilícito penal pelo condutor. Em face do sistema processual vigente, o Delegado de Polícia tem o poder de decidir da oportunidade ou não de lavrar o flagrante”. (RT 679/351).

E no âmbito da Justiça Militar, destacamos o entendimento do Superior Tribunal Militar – STM[22]:

Ementa: Violência contra inferior. Prevaricação. Rejeição da denúncia. Ausência de justa causa. [...] A ausência de elementos mínimos de convicção da prática delituosa. 2. O oficial Comandante que não vislumbra conduta delituosa descrita e, portanto, não instaura procedimento investigatório, age dentro dos limites de discernimento que a lei confere à polícia judiciária militar. Não comete, portanto, o crime de prevaricação. Recurso improvido. Unânime. (STM – recurso Criminal 2002.01. 007003-1-RJ – Rel. Min. Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, sessão de 07.11.2002 – DJU 10.12.2002).

Por fim, resta-nos ressaltar que a prisão-captura não vincula a autoridade policial judiciária militar à obrigatoriedade da lavratura do auto de prisão em flagrante, da mesma forma que o Promotor de Justiça não se vincula à conclusão do IPM, nem o Juiz se vincula ao posicionamento do membro do Ministério Público por ocasião da denúncia.

4.4 ANÁLISE DAS EXCLUDENTES DE ILICITUDE OU CULPABILIDADE POR OCASIÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE

Após o estudo da discricionariedade da autoridade policial judiciária militar, passaremos ao exame, da não menos polêmica, possibilidade da análise das excludentes de ilicitude ou culpabilidade pela autoridade policial judiciária militar por ocasião da prisão em flagrante.

Inicialmente, é oportuno destacar que o art. 244, CPPM estabelece que os militares deverão prender quem for encontrado em flagrante delito. Logo, pressupõe a prática de um crime para que se efetue a prisão em flagrante. Ocorre que o art. 42, CPM, assevera que não há crime quando o agente praticar o fato em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou em exercício regular de direito. As excludentes de culpabilidade, por sua vez, são estabelecidas no art. 38, CPPM[23]. Nesse contexto, paira o seguinte questionamento: como prender e atuar em flagrante delito o policial pela a prática de um fato que a legislação penal tipifica como crime, sendo que a mesma legislação estabelece que aquele fato, quando praticado em certas circunstâncias não se configura crime.

Esse controverso tema ainda comporta o seguinte questionamento: poderá a autoridade policial judiciária militar, após a análise dos aspectos jurídicos e fáticos, optar pela não autuação em flagrante do conduzido com base na inexistência de crime por verificar, de forma patente, a ocorrência de excludentes de ilicitude ou culpabilidade?

A doutrina[24] majoritária entende que não cabe à autoridade policial judiciária a análise de excludentes de ilicitudes, mas apenas a análise da tipicidade do fato, ou seja, a autoridade policial judiciária deve limitar-se a verificar se a conduta praticada pelo agente encontra-se prevista na legislação penal, pois apenas ao magistrado compete a análise das excludentes de ilicitude. GUILHERME DE SOUZA NUCCI[25] ensina que apenas ao juiz cabe proceder à análise de alguma excludente de ilicitude ou de culpabilidade. Nesse sentido, EDUARDO LUIZ SANTOS CABETTE[26] destaca o posicionamento da doutrina tradicional:

Espínola Filho, por exemplo, afirma que nessas condições cabe somente à Autoridade Policial prender em flagrante e apresentar o Auto de Prisão o mais rápido possível ao magistrado para este delibere sobre a concessão da liberdade provisória. Do mesmo entendimento comunga Tornaghi, alegando que a legislação brasileira foi prudente ao vedar a análise das excludentes pela Autoridade Policial executora do flagrante, devendo realmente tal mister caber somente ao Juiz. À Autoridade Policial só restaria comunicar a prisão ao magistrado, o qual procederia a devida avaliação.

Em sentido contrário, existe uma crescente corrente minoritária com o entendimento de que à autoridade policial judiciária compete também a análise das excludentes de ilicitude e culpabilidade por ocasião da prisão em flagrante, uma vez que a figura do crime deve ser analisada em seus aspectos globais: fato típico, antijurídico e culpável[27]. SIMON BOLIVAR ÁVILA[28], referindo-se à autoridade policial judiciária civil, estabelece que no que diz respeito à prisão em flagrante, cabe ao delegado de polícia verificar, diante do caso concreto, se estão presentes todos os requisitos legais, esclarecendo o referido autor que “quando se fala em requisitos legais, não se está falando em letra fria da lei, mas em Ordenamento Jurídico, que engloba a Constituição Federal, as leis, os princípios constitucionais e a jurisprudência”. Acerca do posicionamento dessa corrente, aponta DANIEL BARCELOS FERREIRA[29]:

Aqueles que pretendem afirmar que não cabe ao Delegado de Polícia a análise preliminar e precária de que o autuado agiu em legítima defesa valem-se de pseudo ausência de previsão legal. É forçoso se admitir que realmente não existe o artigo de lei expresso, mas igualmente é forçoso se admitir a existência inarredável de norma legal que não só autoriza como impõe ao Delegado tal análise, a partir de uma releitura do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República de 1988, especialmente sob a égide da excepcionalidade das prisões cautelares e da prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana. 

FLÁVIO MESSINA ALVIM[30]leciona da seguinte forma:

Ora, se somente se efetuará a prisão em flagrante delito daquele que comete crime, e sendo o delegado de polícia a autoridade competente para a execução deste ato, impossível não reconhecer competir a ela o dever de analisar se o caso apresentado se enquadra na conceituação tripartite de crime (típico, antijurídico e culpável). Pela leitura, percebe-se que o delegado de polícia precisa se convencer de estar diante de um crime, e não apenas de um fato típico - que é a mera descrição legal para uma transgressão à norma penal. A simples tipicidade não conduz ao crime, haja vista a necessidade de se agregarem, ainda, outros dois elementos essenciais para a sua caracterização: a antijuridicidade e a culpabilidade. Percebe-se que para se concluir pela existência de um crime e, portanto, efetuar um auto de prisão em flagrante, necessário se faz, também ao delegado de polícia, avaliar a presença dos elementos de antijuridicidade, que nada mais são do que a contrariedade ao ordenamento jurídico pátrio. Corroborando essa assertiva, tome-se o disposto no artigo 23 do Código Penal - CP.

SILVIO MACIEL[31] por seu turno esclarece:

[...] “A verdade é que o Delegado de Polícia – autoridade com poder discricionário de decisões processuais analisa se houve crime ou não quando decidir pela lavratura do Auto de Prisão. E ele não analisa apenas a tipicidade, mas também a ilicitude do fato. Se o fato não viola a lei, mas ao contrário, é permitida por ela (art. 23 do CP) não há crime e, portanto, não há situação de flagrante. Não pode haver situação de flagrante de um crime que não existe (considerando-se os elementos de informação existentes no momento da decisão da autoridade policial). O Delegado de Polícia analisa o fato por inteiro. A divisão analítica do crime em fato típico, ilicitude e culpabilidade existe apenas por questões didáticas. Ao Delegado de Polícia cabe decidir se houve crime ou não. E o artigo 23, I a III, em letras garrafais, diz que não há crime em situações de excludentes de ilicitude”.

E no âmbito do Direito Militar, CÍCERO ROBSON COIMBRA NEVES[32]:

Esta realidade normativa, inexoravelmente, conduz a uma situação tal que a autoridade de polícia judiciária militar somente poderá prender alguém em flagrante delito após uma análise – inicial e sem vincular o dominus litis, é verdade, mas ainda assim uma análise – acerca do conceito analítico de crime, ingressando por seus elementos genéricos, ou seja, no CPM, fato típico, antijurídico e culpável (“teoria tripartite”). Essa interpretação, note-se, impõe a prisão em flagrante delito como uma exceção á regra, em perfeito alinho com o mote principal da Constituição Federal, acima esmiuçado.

Concluindo o referido autor:

À guisa de exemplo, a prisão em flagrante delito não deve ocorrer quando a autoridade de polícia judiciária verificar a patente existência de causa excludente de antijuridicidade, como a legítima defesa. Da mesma forma, constatando-se uma excludente de culpabilidade (art. 39 do CPM) e do erro de fato essencial (art. 36 do CPM), a autoridade deve prestigiar a instauração de inquérito policial militar (IPM) em detrimento da prisão em flagrante delito.

Por fim, é importante destacar que a não autuação em flagrante do policial militar, que agiu sob o pálio da excludente de ilicitude ou culpabilidade, não significa que o fato não será devidamente apurado. Nesse sentido, mais uma vez a lição de CÍCERO ROBSON COIMBRA NEVES[33]:

Não se postula aqui, note-se bem, o não registro do fato crime em procedimento de polícia judiciária militar, mas apenas a necessidade de, em nome do favorecimento da manutenção do direito de locomoção, considerar a prisão em flagrante como exceção à regra, regra essa que deve consistir na instauração de IPM.

Nessa questão, é imprescindível ressaltar ainda que não haverá prejuízo para a persecução penal, uma vez que os fatos serão investigados em sede de IPM e enviados ao Ministério Público, o qual terá subsídios mais robustos para analisar a conduta do policial militar, verificando se ele agiu legitimamente ou de forma criminosa. Destacando-se ainda que durante as investigações em IPM, pode e deve haver, principalmente quando existirem dúvidas acerca da ação policial militar, o acompanhamento do Ministério Público, da OAB e entidades de controle da letalidade policial.

Cumpre distendermos também que o policial militar, na condição de agente público, no exercício da atividade policial tem presunção iuris tantum na legitimidade de suas ações. O próprio Superior Tribunal de Justiça[34] estabelece que a boa-fé é sempre presumida, enquanto a má-fé deve ser comprovada. Destarte, nas ações policiais, ao menos num primeiro momento, presume-se boa-fé na atuação do policial militar, a qual será comprovada ou não, com a apuração em IPM.

Assim, por observância do princípio da segurança jurídica, a presunção de legitimidade é uma regra que só poderá ser invertida quando contestada na esfera judicial ou administrativa. Logo, não se pode admitir qualquer tipo de tratamento discriminatório contra os policiais militares no sentido de se inverter contra eles o princípio da presunção de legitimidade.

Portanto, não se pode admitir que o militar de polícia, agente público que representa o estado e a sociedade na execução da atividade de segurança pública, seja preso e autuado em flagrante delito por agir em nome desse mesmo Estado no cumprimento de sua missão constitucional. É algo absurdo o fato de que o policial militar, ao agir em nome da lei, tenha como resultado de sua ação a repressão da própria norma jurídica, sendo preso e equiparado ao infrator que a lei lhe incumbiu combater.

Nessa linha de raciocínio é inaceitável que o policial militar, ao agir legitimamente, passe várias horas ou dias presos, esperando que o juiz analise o auto de prisão em flagrante para só então reconhecer a incidência de excludente de ilicitude ou culpabilidade que autorize a soltura do miliciano na forma do art. 253, CPPM[35]. A esse respeito, imprescindível se faz o questionamento de DANIEL BARCELOS FERREIRA[36]:

Considerando-se os princípios norteadores do novel processo penal, a partir da Constituição da República de 1988, especialmente o princípio da dignidade da pessoa humana, não vemos como admitir que seja lícito ao Estado obrigar o indivíduo que agiu autorizado por este próprio Estado, a permanecer o mínimo período que seja no interior de um cárcere.

Pelo acima exposto, devemos enfatizar que não se pode aceitar tantas ofensas à dignidade dos militares de polícia, talvez, ao nosso sentir, a categoria mais desafortunada do país, pois além de sofrerem várias vedações constitucionais[37], ainda estão sujeitos a serem investigados em dois inquéritos distintos (IP e IPM) nas hipóteses de crime militar contra a vida de civil (sendo o único servidor no país que sofre tal constrangimento).

Sobre o autor
José Wilson Gomes de Assis

Capitão da Polícia Militar do Piauí. Exercendo atualmente a função de superintendente do sistema prisional do Piauí. Bacharel em ciências de Defesa Social pelo Instituto de Ensino de Segurança do Pará - IESP. Bacharel em Direito e Especialista em Gestão de Segurança Pública pela Universidade Estadual do Piauí - UESPI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSIS, José Wilson Gomes. Crime militar praticado em serviço: autuação em flagrante ou instauração de IPM?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3985, 30 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29033. Acesso em: 25 nov. 2024.

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