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A revisão criminal e a soberania dos veredictos no tribunal do júri

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Agenda 05/07/2014 às 15:45

3 TRIBUNAL DO JÚRI

O Tribunal do Júri, assim como a coisa julgada, possui assento constitucional, estando disposto no art. 5º, inciso XXXVIII da CF[13], que o reconhece como instituição organizada por lei, sendo assegurado o sigilo das votações, a plenitude de defesa, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

A origem dessa instituição ainda é alvo de divergência entre os doutrinadores, o que leva Rogério Laurita Tucci (1999, p. 12) a dizer que:

Há quem afirme, com respeitáveis argumentos, que os mais remotos antecedentes do Tribunal do Júri se encontram na lei mosaica, nos dikastas, na Heliéia (tribunal dito popular) ou no Areópago gregos; nos centeni comites, dos primitivos germanos; ou, ainda, em solo britânico, de onde passou para os Estados Unidos e, depois, de ambos para os continentes europeu e americano.

Para Tucci (1999, p. 15-16), a origem do tribunal popular, que hoje se denomina Tribunal do Júri, se encontra em Roma, mais precisamente “no segundo período evolutivo do processo penal, qual seja o do sistema acusatório, consubstanciado nas quaestiones perpetuae”. A “quaestio”, afirma o autor, seria uma espécie de comissão, um “órgão colegiado constituído por cidadãos, representantes do populus romano [...]”.

Para que um homem fosse julgado por seus pares, seria necessário que o tribunal popular apresentasse uma estrutura mínima e regras previamente estabelecidas. É nesse viés que ele estabelece comparações entre as “quaestiones perpetuae” e o atual tribunal do júri, colocando-as como a “celula mater da instituição do júri nacional.” (TUCCI, 1999, p. 25).

José Frederico Marques (1997, p. 20), por sua vez, sustentou que o Tribunal do Júri teve sua origem na Inglaterra, “depois que o Concílio de Latrão aboliu as ordálias e os juízos de Deus [...]”. Para o autor, depois da independência do Judiciário face ao Executivo, o júri, que havia sido “levado ao continente europeu como reação à magistratura das monarquias absolutistas”, acabou perdendo sua característica política. Com isso, verificou-se a sua inferioridade, isto é, o “jus libertatis” do acusado também poderia ser protegido por meio da “justiça togada”.

Lado outro, Paulo Rangel (2012b, p. 40) alega que “o tribunal popular, diferente do que muitos pensam, não nasce, propriamente dito, na Inglaterra, pois já existiam, no mundo, outros tribunais com as suas características”.

Nessa linha, Ruy Barbosa (1950, p. 27-28) explicita os seus pressupostos:

Se o Júri, de que já se encontra a prefiguração longínqua nos judices romanos [...], se não nos dikastas gregos, e nos centeni comites dos primitivos germanos, imortalizados por Tácito, autorizando historiadores e entusiastas seus a gabarem-no de medir o curso da civilização [...], recebeu os primeiros traços da sua forma definitiva no solo britânico, depois da conquista normanda, sob Henrique II, extinguindo-se na França, de onde fora transplantado nos seus mais grosseiros rudimentos com as Capitulares, na média idade inglesa é que ele revestiu a imagem, sob que a era moderna o adotou.

O que se vê, portanto, é que a questão da origem do Tribunal do Júri é bastante controversa na doutrina, não havendo certeza, onde, de fato, o Júri surgiu.

Todavia, em que pese as divergências históricas, não pode haver dúvida quanto à destacada natureza pública do Júri, isso porque, além da presença do agente estatal pertencente ao Poder Judiciário, verifica-se, também, a presença dos cidadãos, representantes do povo, “investidos diretamente do poder de julgar sobre a pretensão punitiva estatal.” (VIVEIROS, 2003, 16).

Logo, o Júri é um órgão colegiado e heterogêneo, composto “por um juiz togado, seu presidente e por 25 (vinte e cinco) jurados”[14], que serão alistados pelo juiz e escolhidos posteriormente para compor o Tribunal do Júri e o Conselho de Sentença, os quais possuem elementos permanentes e temporários.

“O presidente do Tribunal do Júri é o órgão permanente que [...] deve estar, durante todo o tempo [...], à testa de seus trabalhos”. A parte temporária são os jurados, já que “o Conselho de Sentença é formado, em julgamento por julgamento, podendo assim compor-se de pessoas diferentes em cada sessão que o Tribunal do Júri realizar [...].” (MARQUES, 1997, p. 122).

Dessa forma, o juiz de direito, agente estatal do Poder Judiciário, é aquele que deve estar legitimado ao exercício da jurisdição criminal, conforme as leis vigentes. Os jurados, por sua vez, são os cidadãos, as pessoas do povo que possuem a função de julgar o réu e que são escolhidos “dentre os de notória idoneidade na comunidade em que vivem.” (TUCCI, 1999, p. 34, grifo do autor).

Segundo o art. 425 do CPP, o presidente do Tribunal do Júri alista, anualmente, cerca de 800 (oitocentos) a 1.500 (um mil e quinhentos) jurados nas comarcas cujo número de habitantes ultrapassa 1.000.000 (um milhão). Nas comarcas que possuem mais de 100.000 (cem mil), o número de jurados é reduzido, ficando entre 300 (trezentos) e 700 (setecentos). Já nas comarcas de menor população o número fica entre 80 (oitenta) e 400 (quatrocentos) jurados.

À vista disso, a instituição do Júri acaba inserindo no processo legal valores democráticos, que se concretizam pela participação do cidadão comum no julgamento de seu semelhante (VIVEIROS, 2003, p. 76-78).

Mauro Viveiros (2003, p. 3) ainda destaca que, “integrando os ‘direitos ou garantias individuais’ [...], o Júri sempre esteve associado à ideia de defesa dos valores sociais mais relevantes, tais como vida, liberdade, segurança individual e propriedade”.

Ocorre que, esse entendimento não é unânime na doutrina, já que existem autores que rejeitam o fato do Júri estar relacionado ao exercício da democracia. Para Frederico Marques (1997, p. 149-150), “o jurado não tem parcela alguma de mandato popular, pois não é escolhido pelo povo para o exercício de suas funções”. Por isso, não seria razoável “[...] invocar os postulados da democracia para justificar a instituição do Júri”.

Nessa esteira, Paulo Rangel (2012b, p. 89-90) também critica a instituição, afirmando que, diferentemente do que a doutrina tradicional pensa, a função dos jurados não é de julgar os seus pares, porque o povo “é a sociedade organizada e incluída no sistema de um mundo globalizado e excludente”.

Para o autor, a função dos jurados, assim como a sua escolha, não passa por um “filtro ético axiológico e, consequentemente, constitucional”, devendo existir uma nova reforma a fim de que o instituto seja, de fato, “um instrumento de garantia do acusado”.

Em Ruy Barbosa (1950, p. 69) encontra-se a seguinte explicação:

Há, em verdade, na questão do júri, duas classes de reformadores distintas: a dos seus adeptos que, crentes na eficácia da instituição, se empenham em aperfeiçoá-la, e a dos seus antagonistas que, mediante providências inspiradas no pensamento oposto, buscam cercear e desnaturar progressivamente essa tradição, até que a eliminem. Os segundos usam sempre o nome de reformadores, quando o que realmente lhes cabe seria o de abolicionistas: porque a tendência dos seus alvitres, é se nem sempre confessada, ao menos sempre manifesta, a abolição do júri.

Isso mostra que o Júri ainda é alvo de muitos debates, sobretudo em razão da reforma processual que ocorreu com a Lei nº 11.689/2008, nascida do Projeto de Lei nº 4.203/2001, que alterou alguns dispositivos do CPP relativos ao Tribunal do Júri (MOREIRA, 2008).

Acerca da reforma, Paulo Rangel (2012b, p. 83) afirma que, “a Lei nº 11.689/2008 não fez uma reforma total do processo penal, mas sim parcial do Tribunal do Júri”.

Para Rômulo Moreira (2008), porém, “é evidente que o ideal seria uma reforma total, completa, que propiciasse uma harmonia absoluta no sistema processual penal, mas, [...] se assim o fosse as dificuldades que já existem hoje, seriam ainda maiores”.

Nesse aspecto, vê-se que o entendimento do referido autor diverge do posicionamento de Rangel (2012b, p. 92), para quem “uma reforma parcial [...] acaba quebrando a harmonia do sistema e, no caso do Júri, acendeu na doutrina críticas ainda maiores à instituição”.

Assim, surgiram críticas à questões como a supressão do libelo; a incomunicabilidade dos jurados; a obrigatoriedade em ser jurado; a redução da idade para exercer a função de jurado, entre outras, que não serão esgotadas no presente trabalho.

A incomunicabilidade dos jurados está prevista no §1º do art. 466 do CPP[15], e tem como finalidade preservar a opinião dos jurados, de modo que eles não podem discutir o caso entre si ou com outrem. Isso, na verdade, é um modo de impedir que um jurado influencie o outro na hora da votação, o que poderia favorecer ou prejudicar o réu (PORTO, 1996, p. 55).

Ressalte-se aqui que, a incomunicabilidade se difere do sigilo das votações, na medida em que “o sigilo visa evitar que se exerça pressão sobre a votação dos jurados, seja com perseguições, ameaças, chantagens, vantagens [...]” (RANGEL, 2012b, p. 81). Ou seja, “o sigilo no julgamento pelo júri expressa-se [...] sob duplo aspecto: o sigilo das votações e a incomunicabilidade dos jurados.” (LOPES, 1999, p. 259).

Logo, a crítica que se estabelece é em relação ao sigilo sob o aspecto da incomunicabilidade dos jurados e não ao sigilo das votações, pois, de fato, o sigilo das votações garante ao jurado uma maior segurança e tranquilidade ao dar o seu voto.

Dessa forma, o CPP estabelece no art. 483[16] que, havendo resposta afirmativa ou negativa de mais de três jurados aos quesitos de materialidade do fato e autoria ou participação, a votação será encerrada e implicará, nos casos em que a resposta for negativa, na absolvição do acusado; ou, nos casos de resposta afirmativa, implicará em formulação de novo quesito.

E o que dizer das cédulas de “sim” e “não”, distribuídas aos jurados? De igual modo, consiste em visível “cerceamento da comunicação dos jurados” (RANGEL, 2012b, p. 246), além de ofender a Constituição, pois não é razoável que a Carta Magna estabeleça a fundamentação das decisões do Judiciário e os jurados se limitem a responder “sim” ou “não” aos quesitos.

Nesses termos, Paulo Rangel (2012b, p. 206), para quem “a linguagem, no júri, tem de ser usada em nome da liberdade e da vida do outro [...]”, deixa claro que: “a incomunicabilidade é o que há de pior no Tribunal do Júri por vedar aos jurados a transparência de seu agir comunicativo, através da ética da alteridade: o respeito ao outro enquanto um ser igual a nós na sua diferença”.

O que a lei pretende com a incomunicabilidade, portanto, é o que os jurados decidam com base nas suas próprias convicções, sem a influência de outrem. Todavia, o que normalmente ocorre difere dessa pretensão, pois é praticamente impossível que os jurados não se comuniquem, sobretudo nos intervalos das sessões.

Outra mudança que não foi bem recebida, e que está relacionada com a questão da obrigatoriedade em ser jurado, foi a redução da idade para exercer tal função. Antes da reforma pela Lei nº 11.689/2008, a idade para ser jurado era de 21 anos, mas hoje, de acordo com o art. 436 do CPP, os cidadãos maiores de 18 anos, que tenham notória idoneidade, devem ser alistados para exercer a função de jurado, salvo as hipóteses do art. 437 do CPP[17].

Essa redução evidencia a escolha de um critério desproporcional e eticamente irresponsável, já que no Júri o bem em jogo é a liberdade do ser humano. Para ser jurado, portanto, deveria se exigir do sujeito certa experiência de vida, o que normalmente não ocorre a alguém de 18 anos. Além disso, por conta da obrigatoriedade do serviço, a função de jurado no Brasil está longe de ser um exercício de cidadania (RANGEL, 2012b, p. 195-196).

Com a modificação, a instituição do Júri fica ainda mais vulnerável às críticas e podem ocorrer sérias consequências ao réu, sobretudo em face da soberania dos veredictos. A redução da idade para exercer a função de jurado pode ocasionar a formação de um Conselho de Segurança muito jovem, sem a necessária experiência de vida, tornando difícil exigir uma idoneidade manifesta de um sujeito que acabou de se tornar habilitado, pela lei[18], à prática dos atos da vida civil.

Vê-se, por conseguinte, que o legislador confundiu inexperiência com a falta de conhecimento dos jurados, que é, ou deveria ser, predicado substancial do Júri, e acabou ocasionando uma mudança pouco ou nada eficaz à instituição. Sendo assim, melhor seria ter mantido o dispositivo “velho”, em detrimento de uma reforma pouco funcional e eficiente, que acabou tornando ainda mais frágil a questão da responsabilidade dos jurados.

Destaca-se, ainda, que, além da natureza pública, o Júri se caracteriza por sua natureza condenatória, na medida em que “tem por causa finalis o julgamento de uma acusação”. O que se pede ao Júri é que “se julgue procedente o libelo [...], que é o instrumento formal da acusação”, isso porque, com a denúncia ainda não existe acusação, mas apenas imputação (MARQUES, 1997, p. 104-105, grifo do autor).

Na visão de Barão de Ramalho (1956 apud MARQUES, 1997, p. 338), o libelo “consiste na ‘exposição escrita e articulada do fato criminoso, feita em forma legal, em que se pede a punição do réu”. Isto quer dizer que apenas no libelo é que vai ocorrer o pedido de condenação.

Desse modo, o Tribunal do Júri poderia decidir, julgando acerca do crime e da autoria e o presidente do Júri poderia decidir, na sentença, sobre as sanções penais aplicáveis ao caso (MARQUES, 1997, p. 105).

O libelo, apesar disso, no dizer de Paulo Rangel (2012b, p. 179), “foi revogado pela Lei nº 11.689/2008”, embora sempre tenha existido, na doutrina, “manifestações contrárias e a favor do libelo”. Para o autor, o libelo era “uma fonte de nulidade quando o MP não era estruturado em carreira como é hoje” e, devido à estrutura acusatória do processo, a função de julgar não era do juiz.

Portanto, a supressão do libelo acarreta nulidades ao processo e não agilidade, pois se corre o risco de ter uma “denúncia vaga, ambígua ou genericamente formulada, por falta de informações precisas [...]”, já que o libelo era “um importante guia de orientação para os jurados e para a própria defesa, que conhecendo antecipadamente os termos da acusação” se articulava melhor para “um embate lógico em plenário.” (VIVEIROS, 2003, p. 224).

Posto isso, e superando as polêmicas que cercam a instituição, ressalta-se o caráter contraditório e oral do Júri, notadamente, na medida em que a “contrariedade da instrução criminal [...] está inserida entre os direitos e garantias individuais, no contexto da Carta Magna [...]” (TUCCI, 1999, p. 35, grifo do autor).

Assim, a fim de que “o órgão julgador competente, devidamente formado o seu convencimento, possa se pronunciar o mais corretamente possível, e com justiça” (TUCCI, 1999, p. 35), é que se considera a contraditoriedade do processo penal.

Já a oralidade, nas palavras de Frederico Marques, (1997, p. 84) “é o que tem o Júri de mais consubstancial e típico”, isto é, “júri é linguagem.” (RANGEL, 2012b, p. 152).

O Júri está inserido na organização judiciária, sendo considerado como um órgão especial da justiça comum e, embora “sua organização seja regulada em lei federal, a sua formação e recrutamento estão entregues à magistratura local dos Estados.” (MARQUES, 1997, p. 91-92).

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De acordo com o autor, suas atribuições são definidas por lei e pela Constituição, ou seja, só é da competência do Júri o que a lei ou a Constituição lhe houver reservado. Assim, o que não for de competência do júri será da competência da justiça togada.

A instituição do Júri poderá, ainda, ser classificada em comum e especial, desde que o texto da Carta Magna seja respeitado, porque “nada impede que ao lado de um Júri comum existam formas especiais do Tribunal do Júri.” (MARQUES, 1997, p. 98, grifo do autor). A forma especial desse Tribunal está prevista e disciplinada na Lei nº 1.521/51, que dispõe “sobre crimes contra a economia popular”.

O procedimento da instituição do Júri é desenvolvido em duas fases distintas: a primeira, que corresponde a um juízo de admissibilidade feito pelo juiz e a segunda, que se refere ao julgamento pelo corpo de jurados (VIVEIROS, 2003, p. 34).

Ao juízo de admissibilidade dá-se o nome de “fase da formação da culpa”, a qual se desenvolve “a partir do recebimento da denúncia do Ministério Público [...]”. Nessa fase serão recolhidas as provas que servirão para demonstrar a “viabilidade da acusação” e, principalmente, o imediato desenvolvimento do processo. Assim, “encerrada a instrução criminal, abre-se às partes oportunidade para apresentação de alegações finais, culminando com decisão denominada sentença de pronúncia [...] cuja função [...] é encaminhar o réu a julgamento perante o Júri.” (VIVEIROS, 2003, p. 34).

Antes da fase de julgamento, porém, existe uma fase preparatória, que é uma fase intermediária, posta entre a fase da formação da culpa e a fase do julgamento. Ela é inserida “para a preparação do processo a ser enviado à sessão de julgamento do Tribunal do Júri”, o que significa dizer que será desenvolvida na presença de “um juízo monocrático, pois que a instância é dirigida por juiz singular da magistratura togada.” (MARQUES, 1997, p. 117).

Destarte, encerrada a fase da formação de culpa e vencida a fase preparatória, segue-se para a fase ulterior do julgamento, onde o Júri irá apreciar o mérito do processo, isto é, “sucede-se [...] ao judicium accusationis, o judicium causae [...]” do plenário de julgamento (MARQUES, 1997, p. 425).

Essa fase terá início “quando operar-se a preclusão no tocante à pronúncia” (MARQUES, 1997, p. 429) e terminará, após as alegações orais, com a votação dos quesitos e a pronúncia da sentença (MARQUES, 2009, p. 220).

Ocorre que, o juiz pronunciará o réu apenas se estiver convencido da materialidade do fato e de que há sinais suficientes de autoria ou de participação, conforme dispõe o art. 413 do CPP[19]. Ou seja, em caso de dúvida, o juiz deverá absolver o réu e não pronunciá-lo, mandando-o a Júri, como ensina a doutrina tradicional, sob pena de se ter uma condenação injusta.

Paulo Rangel (2012b, p. 152), nesse sentido, alega que:

[...] Se há dúvida, é porque o Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou em sua denúncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, não sendo admissível que sua falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a júri, onde o sistema que impera, lamentavelmente, é o da íntima convicção.

Portanto, no caso do juiz não ter se convencido da materialidade do fato ou da existência de sinais suficientes de autoria ou de participação, não poderá pronunciar o acusado e, a despeito do que estabelece o art. 414 do CPP[20], não deveria impronunciá-lo, mas sim absolvê-lo.

É que a decisão de impronúncia acaba deixando o réu numa situação de insegurança, visto que ele não é condenado nem absolvido. Isto é, encontra-se numa “área cinzenta”, esperando a extinção da punibilidade ou o surgimento de novas provas. Além do que, “no Estado Democrático de Direito não se pode admitir que se coloque o indivíduo no banco dos réus [...] como se o tempo é que fosse lhe dar a paz e a tranquilidade necessárias.” (RANGEL, 2012b, p. 162).

Apesar disso, o legislador, entendendo de forma diversa, preservou, na reforma, a sentença de impronúncia, que se caracteriza como a decisão que encerra a formação da culpa, extinguindo o processo mediante sentença terminativa, “dando pela inviabilidade da acusação, isto é, tendo o autor como carecedor da ação penal.” (TUCCI, 1999, p. 42, grifo do autor).

José Frederico Marques (1997, p. 359) esclarece:

A sentença de impronúncia, assim como a de despronúncia[21], encerra o processo penal condenatório, mas não decide do mérito da pretensão punitiva. Com isso, apresenta-se tal decisão, como interlocutória mista, a qual pondo fim à instância penal, tem ainda o nome de decisão terminativa.

Outra possibilidade de encerramento da formação da culpa e que também impede o encaminhamento da imputação para o julgamento pelo Júri é a sentença de absolvição sumária. Nos casos em que restar provada a inexistência do fato; demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime; provado não ser o acusado autor ou partícipe do fato ou, ainda, quando restar provado que o fato não constituiu infração penal, conforme o disposto no art. 415 do CPP, o juiz poderá absolver, desde logo, o acusado.

Conforme leciona Paulo Rangel (2008, p. 543, grifo do autor):

Trata-se de um verdadeiro e único caso de julgamento antecipado do caso penal no processo penal brasileiro, pois o juiz natural da causa é o Tribunal do Júri, porém, neste caso, o juiz singular (presidente do Tribunal do Júri, que dirige o processo), verificando a presença dos requisitos previstos no art. 411[22] do CPP, antecipa o julgamento e dá ao réu o status libertatis.

Dessa maneira, a sentença de absolvição sumária é definitiva, uma vez que “declara improcedente a pretensão punitiva do Estado, incidindo, desse modo, sobre o meritum causae” (MARQUES, 1997, p. 359), e “afastando de vez a competência do Tribunal do Júri.” (TUCCI, 1999, p. 45).

Ressalte-se que, a sentença absolutória não deve se estender aos crimes conexos que foram levados ao Júri, pois, absolvido o réu, cessa a competência da instituição para julgar o delito conexo. Assim, havendo absolvição, o juiz deverá esperar o trânsito em julgado da decisão para remetê-la ao juiz singular competente, que se manifestará sobre o crime conexo (RANGEL, 2008, p. 544).

A respeito, o Tribunal de Santa Catarina:

RECURSO CRIMINAL - TENTATIVA DE HOMICÍDIO SIMPLES (CP, ART. 121, CAPUT, C/C ART. 14, II)- ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA QUE SE IMPÕE - ACUSADO QUE AGIU SOB O MANTO DA LEGÍTIMA DEFESA (CP, ART. 25)- PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS - PLEITO DESCLASSIFICATÓRIO DO CRIME PREVISTO NO ART. 16, PAR.ÚN, IV, PARA O ART. 14, CAPUT, AMBOS DA LEI N. 10.826/2003 - IMPOSSIBILIDADE - ARTEFADO COM NUMERAÇÃO RASPADA EM TESE - ARMA DE USO PERMITIDO - IRRELEVÂNCIA - PERÍCIA DEFINITIVA PENDENTE DE CUMPRIMENTO - EXAME TÉCNICO JÁ DETERMINADO PELO JUIZ A QUO - REMESSA DOS AUTOS A ORIGEM PARA JULGAMENTO DO FEITO EM RELAÇÃO AO DELITO CONEXO - NECESSIDADE DE AGUARDAR-SE O TRÂNSITO EM JULGADO DO PRESENTE DECISUM PARA POSTERIOR ANÁLISE. I - É cediço que a "absolvição sumária por legítima defesa, na firme compreensão da jurisprudência e doutrina pátrias, somente há de ter lugar, quando houver prova unívoca da excludente, a demonstrá-la de forma peremptória (Código de Processo Penal, artigo 411). (HC 99194/PE, rel, Min. Felix Fischer, j. em 18-8-2008)." Assim sendo, para a caracterização da aludida excludente de ilicitude, necessário se faz coexistência dos pressupostos delineados no art. 25 do Código Penal, quais sejam, o uso moderado dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio. Dessa forma, em se evidenciado a existência do exercício da legítima defesa por parte do acusado, na medida em que este somente desferiu o tiro contra um dos agressores visando proteger sua vida, bem como a de seu filho, reagindo, assim, à agressão atual e injusta por parte dos agressores, além de não ter em momento algum ultrapassado os limites necessários e os meios moderados para sua caracterização, a absolvição sumária se mostra imperiosa, não havendo necessidade de se submeter o réu a julgamento pelo Tribunal do Júri. II - Apesar de o caput do art. 16 da Lei n.º 10.826/03 referir-se a armas de fogo, munições ou acessórios de uso proibido ou restrito, o parágrafo único, ao incriminar a conduta de portar arma de fogo modificada, refere-se a qualquer arma, sendo irrelevante o fato de ela ser de uso permitido, proibido ou restrito." (REsp n. 918867, rela. Mina. Laurita Vaz, j. em 28-9-2010). III - Em sendo decretada a absolvição sumária, deve o crime conexo ser julgado pelo juízo comum, haja vista não se enquadrar dentre os de competência do Tribunal do Júri, de modo que sua análise recairá sobre o juízo singular, cuja remessa dos presentes autos se fará necessária após o trânsito em julgado do presente decisum. (SANTA CATARINA, 2011, grifo nosso).

Sem embargo, poderão existir casos em que o juiz que proferiu a sentença no Júri possui uma jurisdição cumulativa, sendo o competente para julgar os crimes conexos que foram atraídos pela instituição (RANGEL, 2012b, p. 171). Isso ocorre, pois a CF, ao estabelecer a competência do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, não limitou a possibilidade de o Júri julgar os crimes que lhe forem conexos (VIVEIROS, 2003, p. 237).

Em 2007, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu ser possível o julgamento dos crimes conexos pelo Júri:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 213, CAPUT, E ART. 213 C/C ART. 14 INCISO II, TODOS DO CP, E ART. 10, § 1º, INCISO III DA LEI 9.437/97. JÚRI. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DO FEITO. DESCLASSIFICAÇÃO PRÓPRIA. CRIMES CONEXOS. COMPETÊNCIA. JUIZ PRESIDENTE. I - Verificada a presença de crimes conexos em relação ao delito doloso contra a vida, o juiz natural da causa - incluindo aí os crimes conexos - será o Tribunal do Júri. II - Contudo, operada em Plenário a desclassificação própria do delito doloso contra a vida, ao Juiz Presidente competirá julgar tanto o delito desclassificado quanto os demais porventura a ele conexos. (Precedentes do Pretório Excelso). Ordem denegada. (BRASIL, 2007a, grifo nosso).

A propósito, o julgamento dos crimes dolosos contra a vida e seus conexos, de competência do Júri, abrange tanto os delitos consumados quanto os tentados[23]. Esses crimes se referem ao homicídio doloso, simples, privilegiado ou qualificado; induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio; infanticídio e aborto, em todas as suas modalidades[24]. O latrocínio, em que pese resulte em morte, não compete ao Tribunal do júri, mas ao juiz singular, de acordo com o que estabelece a Súmula 603 do STF.

Dentro desse contexto, sobreleva-se a questão do desaforamento[25], que consiste numa “derrogação de competência territorial” (MARQUES, 1997, p. 259), ou seja, noutros termos, o julgamento do réu é transferido “para o foro de outra Comarca [...] ou para outra Vara da mesma Seção Judiciária da Justiça Federal [...]” (TUCCI, 1999, p. 51).

O desaforamento, tratado no capítulo II, seção V do CPP, é um instituto excepcional e constitui característica peculiar do Júri. Nas lições de Tucci (1999, p. 90), “daí a sua valia, em prol da efetivação da normalidade do julgamento, com provável reflexo no acerto do veredicto”.

Por fim, cabe evidenciar as semelhanças e diferenças entre Júri e escabinado, a fim de não confundir os institutos. Embora ambos sejam órgãos heterogêneos, compostos por magistrados e leigos, e possuam “recrutamento popular, sorteio e [...] divisão do julgamento”, diferem quanto às atribuições dos seus membros: no escabinado, o caso é julgado “em conjunto, pelos juízes leigos e juízes profissionais [...]”; no júri, apenas “o elemento popular decide sobre a existência e autoria do crime.” (MARQUES, 1997, p. 33-35).

3.1 OS PRINCÍPIOS BÁSICOS DO JÚRI

A CF/88 consagrou no seu art. 5º, inciso XXXVIII, alguns princípios basilares que informam o Tribunal do Júri: a plenitude de defesa; o sigilo das votações e a soberania dos veredictos. Esses princípios são fundamentais e visam estruturar melhor a instituição, conferindo-lhe “um perfil constitucional apropriado à sua natureza popular.” (VIVEIROS, 2003, p. 17).

Porquanto os princípios do sigilo das votações e da ampla defesa terem sido analisados em capítulo anterior, aqui serão tratados de forma breve e o destaque será conferido à soberania dos veredictos, tendo em vista que a sua ideia, por vezes, é confundida com a ideia de onipotência e arbitrariedade e, além disso, o seu conhecimento é imprescindível à compreensão do presente estudo.

3.1.1 A Plenitude de Defesa

A ampla defesa é um direito fundamental que a CF[26] assegura a todos os cidadãos, possibilitando uma defesa sem restrições. Nesse âmbito, quando se fala em plenitude de defesa quer-se dizer que, mais do que ampla, a defesa é potencializada e abrangente.

O princípio da plenitude de defesa é ínsito ao Tribunal do Júri e confia à instituição maior efetividade, levando-se em consideração as particularidades do julgamento popular, como, por exemplo, a decisão baseada na íntima convicção. Isso mostra que, sem a defesa plena, completa, a liberdade do indivíduo restaria prejudicada, justamente pelo fato de que se consagra no Júri a não fundamentação da decisão dos jurados (VIVEIROS, 2003, p. 18).

Isto é, como o Júri decide por livre convicção, sem se limitar ao que foi alegado e provado, a defesa tem que ser a mais completa possível, a fim de que a liberdade do réu, também assegurada constitucionalmente, seja tutelada. Como caracteriza Guilherme de Souza Nucci (1999 apud VIVEIROS, 2003, p. 18), “um tribunal que decide sem fundamentar seu veredicto precisa proporcionar ao réu uma defesa acima da média [...]”.

A jurisprudência se manifesta no mesmo sentido:

TRIBUNAL DO JÚRI (PLENITUDE DE DEFESA) – TRÉPLICA (INOVAÇÃO) – CONTRADITÓRIO/AMPLA DEFESA (ANTINOMIA DE PRINCÍPIOS) – SOLUÇÃO (LIBERDADE) – 1- Vem o júri pautado pela plenitude de defesa (Constituição, art. 5º, XXXVIII e LV). É-lhe, pois, lícito ouvir, na tréplica, tese diversa da que a defesa vem sustentando. 2- Havendo, em casos tais, conflito entre o contraditório (pode o acusador replicar, a defesa, treplicar sem inovações) e a amplitude de defesa, o conflito, se existente, resolve-se a favor da defesa – Privilegia-se a liberdade (entre outros, HC-42.914, de 2005, e HC-44.165, de 2007). 3- Habeas corpus deferido. (BRASIL, 2009a, grifo nosso).

Sendo assim, é de extrema relevância que se atribua à defesa não só amplitude, mas também plenitude, com o propósito de tornar a instituição do Júri mais efetiva e de resguardar a liberdade, valor sagrado do homem.

3.1.2 O Sigilo das Votações

O princípio do sigilo das votações, como já retratado no ponto 3 do presente capítulo, não deve ser confundido com a incomunicabilidade dos jurados. De dizer-se que, esse princípio permite ao jurado se posicionar sobre o caso de forma mais espontânea e livre, possibilitando uma decisão mais tranquila e refletida. Caso contrário, sentindo-se pressionado e exposto, o jurado poderia comprometer a sorte do réu (VIVEIROS, 2003, p. 20-21).

Por isso, a votação será realizada em sala secreta, conforme dispõe o art. 485, caput, do CPP[27] e os jurados receberão as cédulas de “sim” e “não”, para que respondam aos quesitos, computando os votos (TUCCI, 1999, p. 62).

Esse procedimento secreto é, portanto, uma forma de se garantir a segurança dos jurados e a sua quebra implica em nulidade do julgamento (LOPES, 1999, p. 259). Nessa linha, Ruy Barbosa (1950, p. 107) já afirmava que “‘[...] o segredo é da essência das deliberações do júri [...]’”.

O autor também ensinou que:

Base fundamental do júri, na expressão de uns, parte da sua essência, na de outros, não podia o sigilo do voto ser subtraído ao júri, senão por quem sôbre êste possuísse a autoridade de criar e destruir. Se os estados, em face da cláusula da constituição que lhe dá existência nacional, não podem abolir o júri, tão pouco lhes seria lícito desfalcá-lo na sua base e na sua essência; porque é pela essência, que as compõe, ou pela base, onde assentam, que as realidades existem, ou se extinguem. (BARBOSA, 1950, p. 109).

3.1.3 A Soberania dos Veredictos

Soberania é um termo ligado, à priori, “à caracterização do poder do Estado” (VIVEIROS, 2003, p. 22), como um poder perpétuo e absoluto. No entanto, para a moderna teoria do Direito, essa soberania se ajusta à ordem jurídica. Assim, Kelsen (2000, p. 544) descreve que o Estado pode ser considerado poder soberano, porque se entende que a ordem jurídica desse Estado seja suprema, “[...] acima da qual não existe nenhuma outra ordem jurídica”.

Contudo, a soberania aqui tratada não alcança essa definição. A soberania dos veredictos consiste na impossibilidade do Poder Judiciário, ou qualquer outro órgão estatal, alterar o conteúdo das decisões dos jurados. Ou seja, a “[...] soberania dos veredictos traduz [...] a impossibilidade de uma decisão calcada em veredicto dos jurados ser substituída por outra sentença sem essa base [...].” (VIVEIROS, 2003, p. 23-26).

A própria instituição do Júri, frise-se, e não apenas os seus veredictos, é revestida pela soberania. Como define Mossin (1997, p. 99), o júri soberano “é aquele ao qual não se substitui nenhum magistrado para julgar uma questão criminal já decidida pelos jurados”.

Isso significa que o Judiciário só pode interferir no judicium acusationis, estando impedido de intervir na fase do judicium causae, que diz respeito apenas aos jurados:

Nova intervenção judiciária é justificável apenas em situações que não digam respeito à decisão do Conselho de Sentença, pois esta nasce da convicção íntima dos jurados – imperscrutável – consequente da irretorquível soberania constitucional dos veredictos. (NASSIF, 1996 apud VIVEIROS, 2003, p. 25).

Em conformação a esse pensamento, Roberto Lyra (1935 apud BARBOSA, 1950, p. 14) afirma que “o júri não está adstrito ao alegado e provado nos autos, nem à estreiteza dos textos, e não seria Júri se deixasse de sentir o conjunto das realidades individuais e sociais”.

A soberania dos veredictos, ressalte-se, associada ao fato do Júri decidir por sua consciência, é um dos motivos que levam muitos doutrinadores a criticarem a instituição e ficarem temerosos quanto à impossibilidade de se rever um julgado que contenha erro (MOSSIN, 1997, p. 99). Não obstante, adiante-se que, não há razão para tal temor.

Uma prova de que a soberania não pode ser, e não é, onipotente e “sem freios” (MARQUES, 1997, p. 75), é a previsão do art. 593, inciso III, alínea ‘d’ do CPP: “caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias [...] das decisões do Tribunal do Júri, quando [...] for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos” (BRASIL, 1941).

Saliente-se, entretanto, que, para quem defende a soberania dos veredictos de forma irrestrita, esse dispositivo fere o preceito constitucional, como afirma José Armando da Costa Júnior (2007, p. 44):

Essa sistemática, data vênia, ofende extraordinariamente a soberania dos veredictos, que sofre um profundo e evidente revés em seu significado, em seu sentido. Está-se, na verdade, diante de uma soberania incompleta, truncada, vacilante. Se se estivesse diante de uma verdadeira soberania, nenhum recurso poderia ser previsto contra as decisões de mérito do Tribunal do Júri.

Eugênio Pacelli de Oliveira (2009, p. 805), embora reconheça a preocupação com o risco de erro ou desvio no julgamento pelo júri, também vai abraçar essa tendência:

Por mais compreensível e louvável que seja a preocupação com o risco de erro ou desvio no convencimento judicial do júri popular, fato é que aludido dispositivo legal põe em cheque a rigidez da soberania das decisões do júri. Aliás, não será a única vez, porquanto será possível também a modificação da aludida decisão pela via da ação de revisão criminal (art. 621, CPP), a ser julgada diretamente nos tribunais.

Todavia, com o devido respeito, o presente trabalho diverge dos referidos autores, pois entende que a possibilidade de recorrer da decisão dos jurados não fere a soberania dos veredictos, visto que ela pode ser mitigada para salvaguardar a liberdade do indivíduo, direito fundamental igualmente garantido pela Constituição Federal. Além do que, a soberania dos veredictos não significa onipotência ou arbitrariedade dos jurados, não podendo, assim, acobertar os possíveis erros no julgamento.

3.2 O JÚRI NO BRASIL: UM BREVE APANHADO HISTÓRICO

O júri alcançou o Brasil na época em que a Corte Portuguesa se transferiu para o país, em 1807. Isso ocorreu porque Portugal, no século XIX, havia sofrido forte influencia política da Inglaterra, onde o júri já existia desde 1215, e, por esse motivo, o Príncipe Regente D. Pedro acabou sendo compelido pelas orientações inglesas (VIVEIROS, 2003, p. 13).

Assim, o júri foi instituído no Brasil por meio do Decreto Imperial de 18 de junho de 1822 para julgar, tão-somente, os crimes de imprensa (TUCCI, 1999, p. 31). Nesta data, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro solicitou ao Príncipe Regente D. Pedro, “a criação do Juízo dos Jurados.” (MARQUES, 1997, p. 38, grifo do autor).

Esse júri era composto por 24 jurados, dos quais “16 poderiam ser recusados, formando-se um conselho de oito jurados.” (VIVEIROS, 2003, p. 12). Os 24 jurados eram “‘juízes de fato’, cidadãos selecionados ‘dentre os homens bons, honrados, inteligentes e patriotas’, e do seu pronunciamento cabia apelação para o Príncipe.” (TUCCI, 1999, p. 31).

Essa instituição não demorou a alcançar status constitucional, o que ocorreu na Constituição Política do Império de 25 de março de 1824. Essa carta estabeleceu a independência do Poder Judiciário, que seria composto de juízes que aplicariam as leis e de jurados que se pronunciariam sobre os fatos. Além disso, juízes e jurados teriam lugar tanto no cível, como no criminal (VIVEIROS, 2003, p. 13).

Já em 1830, a Lei de 20 de setembro conferiu ao Júri uma organização mais específica, com a instituição do Júri de Acusação e do Júri de Julgação. Dois anos depois, o Código de Processo Criminal de 29 de novembro de 1832, que seguiu a “mesma linha orientativa das leis inglesas, norte-americanas e francesas”, ampliou demasiadamente as atribuições do Júri, trazendo ao instituto duras críticas por parte da doutrina contrária à ampliação (TUCCI, 1999, p. 31).

Este código estabeleceu dois conselhos de jurados: “o primeiro conselho, ou Júri de acusação, composto de vinte e três jurados e o segundo, ou júri de sentença, de doze.” (MARQUES, 1997, p. 39).

Essa fase, chamada de “regência”, acarretou em diversas reformas importantes, que tentaram “suprimir ou diminuir as atribuições de órgãos da Monarquia e estabelecer uma nova estrutura legal para o País”. Aqui, só os cidadãos que fossem eleitores e que tivessem reconhecido bom-senso e probidade podiam ser jurados, o que acabava viciando a formação do conselho de sentença (RANGEL, 2012b, p. 61-63).

Após essa fase, em 1841, a Lei nº 261, de 3 de dezembro, e o Regulamento nº 120, de 31 de janeiro, trouxeram acentuadas modificações no Júri e na organização judiciária, como, por exemplo, a extinção do Júri de acusação; a atribuição da fase de formação da culpa e da sentença de pronúncia às autoridades policiais e aos juízes municipais; ampliação e criação de novas atribuições aos juízes de direito, entre outras. Todavia, essas reformas não alteraram as características intrínsecas do Júri (MARQUES, 1997, p. 41-44).

No dizer de Paulo Rangel (2012b, p. 67-69), a Lei nº 261/1841, regulamentada pelo Decreto nº 120/1842, surgiu como consequência das revoltas regenciais: “o júri, como estrutura acusatória”, sofreu “um duro golpe”. Além disso, ela conferia um “conteúdo autoritário e centralista ao Código de Processo Criminal do Império”.

Registre-se que a Lei nº 562, de 2 de julho de 1850 e o Regulamento nº 707, de 9 de outubro do mesmo ano, também implementaram alterações importantes no Júri: subtraíram da sua competência “o julgamento dos crimes de moeda falsa, roubo, homicídio nos municípios da fronteira do Império, resistência e tirada de presos, e bancarrotas.” (MARQUES, 1997, p. 44).

Não obstante, em 20 de setembro de 1871, por força da lei nº 2.033 e do Decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871, a competência do Júri voltou a ser ampliada, cessando, por exemplo, “a possibilidade das autoridades policiais participarem da formação da culpa.” (VIVEIROS, 2003, p. 13). Também foi restabelecida a competência da instituição “para os crimes que a Lei nº 562/1850 havia atribuído aos juízes.” (MARQUES, 1997, p. 44).

Com a proclamação da República foi promulgado o Decreto nº 848 de 11 de outubro de 1890, que organizou a Justiça Federal e, preservando o júri, criou o Júri Federal (TUCCI, 1999, p. 32). No ano seguinte, porém, a Constituição Federal, de 24 de fevereiro de 1891 discutiu e debateu em plenário a supressão do Júri, mas a decisão, por maioria, foi pela sua permanência (MARQUES, 1997, p. 47).

Assim, o Júri foi “colocado dentro do título referente aos cidadãos brasileiros [...]”, e o seu art. 72, §31 exarou: “mantida a instituição do jury’” (BRASIL, 1891). Essa afirmativa acabou sustentando a ideia de que, tendo sido mantida a instituição, as leis posteriores que pretendessem alterar a sua essência, seriam inconstitucionais, pois “o júri deveria ser mantido do jeito que estava.” (RANGEL, 2012b, p. 74).

Nesse sentido, Ruy Barbosa (1950, p. 49-50, grifo do autor) deixa claro o seu posicionamento:

[...] No sistema que ora nos rege, os limites na fixação do poder são intraspassáveis. Nem o presidente, nem a justiça, nem o Congresso têm o arbítrio de transcender uma linha de uma só faculdade, que a constituição não lhe outorgasse, e tudo o que ela reservou, entre no acervo inalienável da soberania, onde só as reformas constitucionais podem tocar. Ora bem. Se esta é a verdade, nenhum poder constituído, nesta República, tem o direito de por a mão no júri, para o diminuir. E, se o fizerem, todas essas reformas serão nulas [...]. Outro sentido não pode caber, realmente, à fórmula. “‘É mantida a instituição do júri’”. Manter é conservar o que existe [...]. Garantir o júri não pode ser garantir-lhe o nome. Há de ser garantir-lhe a substância, a realidade, o poder.

Conquanto, a Lei nº 515, de 3 de novembro de 1898 e o Decreto nº 4.780, de 27 de dezembro de 1923 acabaram restringindo a competência do Júri federal, subtraindo-lhe crimes como contrabando, peculato, moeda falsa, desacato, desobediência, prevaricação, testemunho falso, entre outros (VIVEIROS, 2003, p. 14).

A Constituição de 16 de julho de 1934, por sua vez, fez alterações mais significativas no Júri, visto que o colocou “fora das declarações de direitos e garantias individuais” e voltou a inseri-lo no capítulo referente ao Poder Judiciário, de modo que a redação do seu art. 72 ficou assim disposta: “é mantida a instituição do Júri, com a organização e as atribuições que lhe der a lei” (BRASIL, 1934). Na Carta de 1937, entretanto, nada se disse a respeito do Júri, o que gerou dúvidas acerca da subsistência da instituição (MARQUES, 1997, p. 50-51).

Ocorre que, com a promulgação do Decreto-Lei nº 167, de 5 de janeiro de 1938, que regulou o Júri, a dúvida outrora existente, acerca da sua permanência, foi dissipada. Esse decreto foi “considerado a primeira lei processual penal da República” e com a influência do Estado Novo, e consequentemente da nova classe que assumia o poder, a independência e a soberania do Júri foram suprimidas (RANGEL, 2012b, p. 77).

Mauro Viveiros (2003, p. 14) esclarece:

[...] O art. 96 daquele Decreto-Lei dispôs expressamente sobre a possibilidade de revisão total dos julgamentos pelo Tribunal de Apelação que poderia, apreciando o recurso, julgar que a decisão do júri nenhum apoio tinha nos autos. Tanto podia aplicar a pena justa, quando absolver o réu, conforme o caso.

Essa inovação, segundo o referido autor, trouxe “excitação nos meios jurídicos”, pois colocou de um lado os que eram contrários à instituição e que, portanto, celebraram a reforma; e de outro, os partidários do Júri, para quem a transformação, praticamente, aboliu a instituição (VIVEIROS, 2003, p. 14).

Já a Carta de 1946 pretendeu manter o Júri, restaurando a sua soberania. Ao legislador ordinário coube estruturar a instituição juridicamente, de modo que o Júri só existiria se obedecesse às imposições do art. 141, §28 da Constituição, que estabelecia que (MARQUES, 1997, p. 57):

É mantida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, contanto que seja sempre ímpar o número dos seus membros e garantido o sigilo das votações, a plenitude da defesa do réu e a soberania dos veredictos. Será obrigatoriamente da sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Esse dispositivo, então, possui duas partes: uma, em que se declaram as características essenciais do Júri e outra, em que se declara a sua competência em razão da matéria, a qual pode ser objetivamente ampliada. Ou seja, o legislador pode atribuir ao Júri outros crimes além dos dolosos contra a vida (MARQUES, 1997, p. 58).

A soberania do Júri também foi reconhecida na Carta de 1967, a qual preservou o instituto como direito e garantia individual e limitou a competência para os crimes dolosos contra a vida. Contudo, através da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, o júri sofreu um severo golpe: sua soberania foi novamente suprimida (VIVEIROS, 2003, p. 15).

Por fim, após o período militar que durou até 1985, a redemocratização do Brasil pela Constituição Federal de 1988 preservou o caráter de direito e garantia fundamental do júri e restaurou a sua soberania, nos termos do art. 5º, inciso XXXVIII, da CF/88: “‘é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. ’” (BRASIL, 1988) (VIVEIROS, 2003, p. 15).

Note-se, portanto, que a instituição do Júri passou por diversas fases e conseguiu, a despeito do que os seus opositores esperavam, resistir a todos os ataques, se consagrando como verdadeiro direito e garantia fundamental e não apenas como um órgão do judiciário.

3.3 REVOGAÇÃO DO PROTESTO POR NOVO JÚRI

O protesto por novo júri foi instituído no Brasil com o Código de Processo Criminal do Império de 1832 e era admitido “aos condenados à morte, degredo, desterro, por cinco ou mais anos, galé ou prisão, por mais de três anos.” (ARANHA, 1988, p. 152).

Quando do decreto-lei nº 3.689/41, o protesto passou a abarcar, além da sucumbência e do interesse, outros pressupostos que lhe diferenciavam dos recursos comuns e sua previsão se encontrava no Capítulo IV do Título II do Livro III do Código (TUBENCHLAK, 1994, p. 153).

O protesto consistia em um recurso exclusivo da defesa, interposto para o Tribunal do Júri quando a pena de reclusão atribuída ao réu fosse igual ou superior a 20 anos, não podendo ser utilizado mais de uma vez. Esse recurso dispensava qualquer tipo de razão e, no caso de ser provido, invalidava o julgamento anterior, “não obstante não ter ocorrido error in procedendo.” (RANGEL, 2012b, p. 256, grifo do autor).

Nas lições de Firmino Whitaker (1926, p. 229, grifo do autor), “protesto é o recurso que o réu dirige a novo jury para a reforma do veredictum que o condemnou (sic), em casos determinados na lei”.

De dizer-se que, deferido o protesto por novo júri proibia-se a aplicação, no segundo julgamento, de pena mais grave, isto é, não se permitia reforma que piorasse a situação do réu, já que a reformatio in pejus é “‘uma regra integrada em nosso sistema processual.’” (PORTO, 1996, p. 288).

Segundo Tubenchlak (1994, p. 154-155), não seria saudável que o réu se sentisse ameaçado, com medo de recorrer, pela possibilidade de uma nova decisão que lhe acarretasse prejuízos maiores.

Na mesma linha segue Aranha (1988, p. 154, grifo do autor):

[...] A pena não pode ser maior que a anterior [...] primeiro porque, sendo exclusivo recurso do réu, atuando como verdadeiro favor rei, em benefício de uma só das partes, seria um contra-senso, feriria a lógica, contrariaria o espírito do conjunto, se viesse a atuar em seu desfavor. Depois porque o princípio da proibição da reformatio in pejus é amplo, sendo um princípio geral previsto em nosso direito e aplicável a todos os recursos [...].

Mas, e se, no novo julgamento, os novos jurados mudassem sua posição, reconhecendo, por exemplo, a presença de alguma qualificadora, a reformatio in pejus poderia ser aplicada para agravar a situação do réu? (CONSTANTINO, 2004, p. 145).

Por tudo o que já foi exposto, o presente trabalho entende que não, embora doutrinadores como Mirabete (2006, p. 688) julguem o contrário, acolhendo a reformatio in pejus indireta:

[...] Tratando-se de julgamento do Júri, há que se respeitar o princípio da soberania dos vereditos, elevado novamente a nível constitucional, nada impedindo que no novo julgamento, em decorrência da decisão dos jurados, deva o juiz aplicar pena mais grave que a anterior.

Acontece, porém, que a Lei 11.689/2008 suprimiu do ordenamento jurídico brasileiro esse recurso, fazendo com que surgissem, também, muitas indagações e posições diversas acerca da sua revogação. Assim sendo, alguns doutrinadores se posicionaram contra e outros a favor da retirada do recurso do ordenamento.

Para Tucci (1999, p. 93), por exemplo, “[...] tem-se como certa a supressão do combatido recurso intitulado protesto por novo júri [...] que, na prática hodierna, tem gerado soluções injustas [...]”.

Compartilhando do mesmo sentimento, Mauro Viveiros (2003, p. 236) afirma:

[...] De fato, essa figura jurídica já não faz sentido no sistema processual, por dois motivos básicos: primeiro, porque há outros crimes considerados de maior gravidade, como o de extorsão mediante sequestro com resultado morte (art. 159, §3º, do CP), por exemplo, apenado com reclusão de 24 a 30 anos e que não admitem esse tipo de recurso; segundo, porque, na prática, o recurso não surte o efeito desejado, ou porque, na maioria das vezes o juiz não fixa uma pena igual ou superior a vinte anos – como um expediente destinado precisamente a frustrar o recurso – ou porque, quando [...] defere-se o protesto, o segundo julgamento em regra é realizado imediatamente e, assim, o resultado acaba se confirmando porque, mesmo sendo outros os jurados, há uma influência direta do primeiro julgamento no segundo.

Data venia, tais argumentos não parecem convencer.

O réu não pode ficar a mercê de uma estratégia processual dos juízes que possuem aversão ao protesto e que, por isso, aplicam pena de 19 anos e meio, para frustrar o cabimento do recurso. Em concordância com o ensinamento de Tubenchlak (1994, p. 155) seria plenamente cabível, nesses casos, a apelação do réu “para ver sua pena elevada a vinte anos, fazendo emergir, então, seu direito de pleitear novo julgamento”.

Nessa via, Adalberto Aranha (1988, p. 155) também se posiciona contra a supressão do protesto afirmando que, “[...] a nossa legislação processual tem como um dos princípios o favorecimento do acusado e este só estará atendido quando ao incriminado dermos todas as oportunidades recursais”. Logo, a revogação do protesto é hipótese menos benéfica ao acusado e fere o espírito da lei processual de “favorecer, ou ao menos minorar, a sorte de todos os processados [...]”.

Paulo Rangel (2012b, p. 256), nesse contexto, também se coloca contra a supressão do protesto por novo júri e questiona: com a revogação do recurso pelo art. 4º da Lei 11.689/2008[28], haveria irretroatividade da lei, isto é, a lei seria aplicada aos fatos anteriores ou apenas para os que fossem cometidos na sua vigência?

Esse questionamento, para ser mais bem respondido, deve ser analisado sob a ótica dos princípios do direito intertemporal, definindo-se, primeiramente, a natureza jurídica da norma que foi revogada (MOREIRA, 2008).

O direito intertemporal possui dois princípios fundamentais: o primeiro, que pode ser encontrado no art. 2º, § único do CP e art. 5º, XL da CF, dispõe que “a lei penal não retroage salvo para beneficiar o réu” (BRASIL, 1988); o segundo, por sua vez, trata da “aplicação imediata da lei processual penal” e está disposto no art. 2º do CPP (MOREIRA, 2008).

Para Rômulo Moreira (2008), considerando-se que a norma revogada teria natureza jurídica puramente processual, a lei anterior, ainda que fosse mais favorável, não prevaleceria por causa do princípio da imediatidade. Entretanto, ao se admitir a natureza híbrida da norma revogada – posição defendida pelo autor – quer dizer, natureza penal e processual, já se poderia falar em ultratividade e retroatividade, a fim de que os dispositivos revogados tivessem “incidência em relação àqueles agentes que praticaram a infração penal anteriormente à entrada em vigor da nova lei [...]”.

Correspondendo a esse entendimento, Paulo Rangel (2012b, p. 258), então, se posiciona sobre a questão:

Trata-se de aplicação do princípio constitucional da irretroatividade da lei processual penal mais severa (art. 5º XL), sob pena de criarmos uma instabilidade jurídica. A lei nova, se benéfica, retroage. Do contrário, irá regular os fatos futuros. O princípio da aplicabilidade imediata da lei processual penal (art. 2º do CPP) tem que passar no filtro axiológico da Constituição, ou seja, se for benéfica a lei processual penal nova aplica-se, desde logo, aos fatos sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior. Do contrário, não. No caso em tela, a revogação do protesto por novo júri é prejudicial ao réu [...]. As regras dos arts. 607 e 608 revogadas são de direito processual penal material. Envolvem pena e o direito amplo de defesa.

Portanto, sendo manifestamente contra a revogação do protesto por novo júri, o referido autor sugere que seria melhor alterar a fundamentação do recurso a retirá-lo do ordenamento, visto que não se pode lutar, numa democracia, para perder direitos, mas sim para “conquistá-los e preservá-los.” (RANGEL, 2012b, p. 258).

Exemplo recente que envolveu a questão do protesto por novo júri e a retroatividade ou irretroatividade da lei revogada foi o caso dos réus Alexandre Nardoni e Anna Carolina Trotta Peixoto Jatobá, mais conhecidos como “casal Nardoni”.

Os réus foram submetidos a julgamento acusados de terem praticado, em concurso, crime de homicídio doloso contra Isabella Oliveira Nardoni, menor incapaz, utilizando recurso que dificultava a defesa da vítima (MENDONÇA, 2010).

Pelo suposto crime, o Júri, então, condenou o réu Alexandre Nardoni à pena de 31 anos, 1 mês e 10 dias de reclusão e condenou a ré Ana Carolina Jatobá à pena de 26 anos e 08 meses de reclusão. Ambos também foram condenados a 8 meses de detenção e 24 dias-multa, por fraude processual (MENDONÇA, 2010).

O crime ocorreu em março de 2008, antes, portanto, da extinção do protesto por novo júri. Todavia, a sentença condenatória só foi proferida em março de 2010, ou seja, quando a Lei 11.689/2008, em vigor desde agosto de 2008, já tinha revogado o recurso. Apesar disso, a defesa de Alexandre Nardoni apresentou pedido de novo júri, contudo, a ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça, negou seguimento ao recurso da defesa, afirmando que:

A norma exclusivamente processual, como é o caso do dispositivo em questão, se submete ao princípio tempus regit actum, ou seja, a lei processual penal deve ser aplicada a partir de sua vigência, conforme preconizado no art. 2.º do Código de Processo Penal, in verbis: "A lei processual aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior." Assim, a norma que exclui recurso tem vigência de imediato, sem prejuízo dos atos já praticados. Vale observar que, para a aferição da possibilidade de utilização de recurso suprimido, a lei que deve ser aplicada é aquela vigente quando surge para a parte o direito subjetivo ao recurso, ou seja, a partir da publicação da decisão a ser impugnada. (BRASIL, 2013a).

Como se vê, o “casal Nardoni” não teve direito ao recurso do protesto por novo Júri, sobretudo porque a decisão da Ministra Laurita Vaz considerou que a natureza das normas que tratam de recursos seria puramente processual, o que levaria a uma aplicação imediata da lei processual penal, com base no art. 2º do CPP (tempus regit actum).

Outrossim, nas palavras de Andrey Mendonça (2010):

[...] A norma que extingue ou cria um recurso é tipicamente processual. Realmente, a existência ou não de um recurso não irá alterar a situação material do acusado, não permitirá que o Estado aplique ou deixe de aplicar o seu direito de punir ou, ainda, não sujeitará o acusado a qualquer sanção. Apenas será uma alteração do direito de ação – do qual o recurso retira a sua natureza, por ser seu prolongamento – sem qualquer reflexo no direito de punir. Assim sendo, não temos dúvidas em asseverar que as normas que tratam de recursos são tipicamente processuais. Justamente por isto, sua disciplina intertemporal é a prevista no art. 2.º do CPP.

Oportunamente, o presente trabalho discorda de tal posicionamento entendendo que, a norma revogada tem natureza híbrida, sendo possível, portanto, a concessão do protesto por novo júri aos que, na vigência da lei, praticaram crimes dolosos contra a vida, ainda que a condenação tenha sido posterior à data da revogação. Por isso, no caso concreto, o “casal Nardoni” teria direito ao protesto por novo júri, levando-se em consideração a data do fato e não a data da publicação da sentença.

Ressalte-se, ainda, que merecem ser combatidos outros pontos trazidos por Andrey Mendonça (2010), para justificar a revogação do protesto por novo júri e a natureza puramente processual das normas que tratam de recursos.

Segundo o autor, o fato do protesto ser dirigido ao juiz presidente do júri e não a um Tribunal, ou seja, ser “interposto de juízo a quo para juízo a quo”, afastaria a garantia ao duplo grau de jurisdição, pelo próprio conceito do princípio. O trabalho, todavia, discorda desse entendimento. O duplo grau, nesse caso, deve ser interpretado de forma ampla, como a oportunidade dada ao réu de ter seu julgamento revisto, ainda que fosse pelo Tribunal e não pelo Júri.

Depois, confrontando o protesto com o princípio da ampla defesa, o autor afirma que esse princípio não asseguraria “uma infinitude de produção defensiva a qualquer tempo”. De fato, tal princípio não assegura uma defesa ad eternum, mas também não é essa a finalidade do protesto.

O fundamento do princípio da ampla defesa é possibilitar à parte "o direito de produzir provas em seu favor, o direito de demonstrar sua inocência (total ou parcial), tudo isso, evidentemente, no sentido de garantir o devido processo legal" (COSTA JÚNIOR, 2007, p. 60), e a revogação do protesto atinge diretamente o direito do réu de se defender amplamente. Além do que, o protesto não é aplicado a qualquer tempo. Existem, como foi visto, requisitos para o seu cabimento.

Por último, o autor alega, aviltando o recurso, que, “no protesto por novo júri não há uma absolvição imediata do acusado [...] Não há garantia de que será absolvido ou um afastamento automático do ius puniendi”. Ocorre que, mesmo não havendo garantia de absolvição, enquanto for permitido ao réu protestar, haverá possibilidade de um resultado distinto e isso deve ser levado em consideração num ordenamento jurídico partidário do garantismo penal.

Dessa forma, reputa-se frustrada a inovação trazida pela reforma, que, nas palavras de Paulo Rangel (2012b, p. 258), “[...] em nada de importante, quanto ao compromisso com um processo penal democrático [...]”, alterou a situação que já existia.

A revogação do protesto por novo júri, sobretudo quando se trata da questão dentro do direito intertemporal, foi de grande prejuízo ao réu, fazendo com que perdesse direitos ao invés de preservá-los, porque o protesto dá a certeza de um novo júri, diferentemente dos demais recursos, que podem restar improvidos sem dar ao réu qualquer chance de um novo julgamento.

Portanto, registra-se a crítica do presente trabalho quanto à supressão do protesto por novo júri, por entender que a sua existência, longe de ir contra a soberania dos veredictos dos jurados e mesmo fundamentado apenas em razão da penalidade, é de grande valor para a concretização de um processo penal mais democrático.

Sobre a autora
Susan Kellen dos Reis Cruz

Bacharel em Direito pela Universidade de Salvador (2014.1)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Susan Kellen Reis. A revisão criminal e a soberania dos veredictos no tribunal do júri. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4021, 5 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30022. Acesso em: 2 nov. 2024.

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