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Garantia contratual e revisão de veículos automotores:

um meio eficaz de lesar os consumidores

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Agenda 21/01/2015 às 15:50

4. Garantia contratual e revisão de veículos automotores

4.1. A suposta relação de condicionalidade

O mercado transformou em senso comum algo que não corresponde à realidade jurídica. Trata-se da convicção generalizada de que a realização das revisões periódicas de veículos automotores, nos prazos e moldes fixados unilateralmente pelo fornecedor, se afigura como conditio sine qua non para a subsistência da garantia contratual. Por outros termos, poder-se-ia dizer que, no imaginário popular, o consumidor perderá a garantia consensual, se deixar de proceder às revisões sob comento nos termos estabelecidos pelo vendedor.

Fossem as revisões gratuitas, como já ficou defendido alhures, não se vislumbrariam maiores problemas. Todavia, como visto, a prática corrente no mercado é a cobrança pelos serviços revisionais. Aliás, os preços são inclusive tabelados pelas diversas empresas do setor automobilístico, não havendo qualquer margem de discricionariedade deixada ao consumidor, que apenas se submete domesticadamente à prestação de tais serviços, sob a ameaça de perda da garantia contratual.

Tem-se, assim, que o mercado criou uma espécie própria de sistema punitivo. Neste, como em qualquer outro, há um dever e sua respectiva punição, para a hipótese de descumprimento. Aquele consiste na obrigação de revisar; esta, na perda da garantia consensual. Constata-se, pois, certa coatividade exercida pelo mercado sobre a coletividade e que tão bem caracteriza a relação deletéria existente entre a revisão de veículos e a garantia contratual em sede contratual.

É como se, paralelamente às normas jurídicas, a ambiência econômica forjasse os seus próprios “imperativos autorizantes”, para usar expressão da lavra do saudoso professor Goffredo Telles Júnior[31]. Com isso, o mercado fica por si mesmo autorizado não apenas a exercer coerção psíquica sobre o consumidor, como também a fazer uso da respectiva coação, na hipótese de descumprimento das suas regras impositivas de conduta. Dizendo de outro modo, os fornecedores têm o poder de intimidar e punir os consumidores, sob o falso pretexto do exercício genuíno da autonomia da vontade.

Sob o prisma jurídico, contudo, tal relação de condicionalidade entre a revisão veicular e a garantia contratual é absolutamente inexistente. Primeiro porque a garantia em referência é de todo despicienda no átrio das relações consumeristas, conforme já restou assentado. Segundo porque a revisão de veículos automotores, sendo também do interesse do fornecedor – para fins de evitar eventual responsabilidade pelos vícios ocultos descobertos no período da garantia legal baseada no critério da vida útil do bem –, deve ser gratuita, não se prestando ao auferimento de lucro fácil pelo fornecedor. Não há, portanto, dever de revisar imputável ao consumidor, cabendo este ao fornecedor, de modo que se torna desarrazoada qualquer manobra intimidatória ou punitiva em face de alguém a quem não compete a obrigação revisional. 

4.2. O enquadramento jurídico: venda casada ou cláusula contratual abusiva

O condicionamento da garantia contratual à realização de revisões veiculares periódicas exclusivamente na rede autorizada pelo fornecedor configura autêntica venda casada, vedada pelo art. 39, I, do CDC.

Com efeito, enuncia o referido preceptivo legal:

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: I – condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos”.

Segundo a lição de Antônio Herman Benjamin[32], na venda casada, “o fornecedor nega-se a fornecer o produto ou serviço, a não ser que o consumidor concorde em adquirir também um outro produto ou serviço”.

Na mesma linha, veja-se o entendimento do STJ:

A denominada ‘venda casada’ tem como ratio essendi da vedação a proibição imposta ao fornecedor de, utilizando de sua superioridade econômica ou técnica, opor-se à liberdade de escolha do consumidor entre os produtos e serviços de qualidade satisfatória e preços competitivos[33].

No atinente à relação entre garantia contratual e revisão de veículos automotores, tem-se que a subsistência daquela depende da aquisição desta pelo consumidor, o que denota a nítida ocorrência do condicionamento proibido pelo CDC.  Assim, entre outras medidas, a prática abusiva atrai a incidência da norma do art. 84 do mesmo diploma consumerista, com possibilidade de emanação de ordem judicial para fins de abstenção da conduta, sob a batuta de preceito cominatório. Isso tudo sem prejuízo do dever de reparação de eventual dano, moral ou material, a teor do art. 6º, VII, do CDC.

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Além da configuração da prática abusiva consubstanciada na venda casada, deve-se anotar que eventual cláusula contratual que estabeleça o sobredito condicionamento está inexoravelmente fadada à nulidade de pleno direito, por força do art. 51, IV, do CDC.

Atente-se para o dispositivo:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”.

É que fere o dever de boa-fé objetiva e de equidade a cláusula contratual que condiciona a garantia consensual à revisão veicular. Isso porque não se trata de simples negociação proveniente da autonomia da vontade das partes. Ao contrário, está-se diante de uma astuta manobra ou subterfúgio usados pelo fornecedor para fisgar o consumidor, praticamente o obrigando a adquirir o seu serviço assistencial (revisão), sem qualquer poder de escolha por parte do sujeito mais frágil da relação de consumo. Aliás, o consumidor não detém sequer a prerrogativa de regatear o preço do serviço revisional, uma vez que este é tabelado potestativamente pelo alienante do veículo.

Nesse cenário, vem a calhar o ensinamento do professor Nelson Nery Júnior[34]:

sempre que se verificar a existência de desequilíbrio na posição das partes no contrato de consumo, o juiz poderá reconhecer e declarar abusiva determinada cláusula, atendidos os princípios da boa-fé e da compatibilidade com o sistema de proteção ao consumidor”.

Na verdade, o magistrado deverá declarar a nulidade, ainda que não suscitada pelas partes, porquanto as normas de proteção ao consumidor são de ordem pública e interesse social, como estabelece o CDC já no seu artigo inaugural.

Sobre o tema, pontifica Sérgio Cavalieri Filho[35]:

As normas do CDC, como reiteradamente enfatizado, são de ordem pública e interesse social, o que autoriza a declaração de ofício da abusividade de qualquer cláusula que se aplique submetida à apreciação judicial”.

No STJ, todavia, a despeito da grande divergência, tem prevalecido a corrente que defende a necessidade de provocação do interessado (consumidor) para fins de declaração de nulidade. Observe-se o excerto de sintomática ementa:

Em março de 2006, a 2ª Seção da Corte, considerando a existência de divergência interna no STJ, posicionou-se, por maioria, no sentido de que “não é lícito ao STJ rever de ofício o contrato, para anular cláusulas consideradas abusivas com base no art. 51, IV, do CDC[36].

Sufragando em parte tal posicionamento, foi editado em 2009 o enunciado sumular nº 381, segundo o qual “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”.

Em todo caso, afora a discussão acerca do modo de declaração da nulidade, dúvida não existe de que a condicionalidade fixada pelo mercado entre garantia consensual e revisão periódica veicular é exemplo eloquente de prática mercadológica ou cláusula contratual abusivas, exigindo-se do Poder Judiciário que afaste a venda dos olhos de Themis, de modo a poder enxergar essa dura e triste realidade.


5. Considerações finais

De tudo quanto exposto, extraem-se estas conclusões:

  1. A garantia legal é o prazo especial ou decadencial mínimo estabelecido pela própria lei durante o qual o lesado por vício redibitório (oculto) poderá fazer uso do seu direito à redibição do contrato ou ao abatimento de preço;
  2. A garantia contratual consiste no prazo adicional, anterior e complementar à garantia legal que, uma vez convencionado pelas partes, objetiva aumentar a proteção do adquirente de um bem quanto ao aparecimento de vícios redibitórios (ocultos);
  3. No âmbito do direito consumerista, a garantia legal baseada no critério da via útil do bem, em franca ascensão na doutrina e na jurisprudência, é suficiente para proteger o consumidor contra os vícios e defeitos ocultos dos produtos e serviços, não havendo necessidade de utilização da garantia contratual;
  4. A aplicação da garantia contratual no direito consumerista conspira contra aquilo que foi inicialmente almejado pelo legislador (a proteção do consumidor), seja porque seu prazo de vigência é fixado unilateralmente pelo fornecedor; seja porque o consumidor, à míngua da correta informação do fornecedor, ver nela a única garantia possível, desprezando, por consequência, a garantia legal explícita ou implícita; seja ainda porque a garantia contratual se transformou em poderoso instrumento de coerção da parte vulnerável das relações de consumo, nesse caso atrelada umbilicalmente à assistência técnica periódica, notadamente no setor automobilístico da economia. Em tudo isso consiste o paradoxo da “importação” precipitada da garantia contratual do seio do direito civil – que regula relações entre iguais – para o campo do direito do consumidor – aplicável que é a partes inquestionavelmente desiguais. O instituto, em vez de proteger, desprotege, vulnerando ainda mais o já combalido consumidor;
  5. Além da já desnecessária garantia contratual, criou-se ainda a famigerada garantia estendida, que configura serviço autônomo de seguro, afastando-se do caráter geralmente incidental da garantia contratual com relação ao negócio jurídico principal subjacente;
  6. Aliás, foi visto que ambos os instrumentos – a garantia contratual e a garantia estendida – são ontologicamente antagônicos, uma vez que o aumento do prazo de uma acarretará, em tese, a diminuição do prazo da outra. Significa dizer que, se a garantia contratual tiver prazo dilatado, não haverá razão para a contratação da garantia estendida; por outro lado, se a garantia contratual contiver átimo menor, então será interessante para o consumidor, nessa hipótese, aderir à garantia adicional. Não precisa ir longe, todavia, para perceber que, sendo essa última garantia de natureza lucrativa – porque há contraprestação do consumidor, ou seja, o pagamento de preço –, a tendência do mercado será cada vez mais no sentido de diminuir o prazo da garantia contratual, sempre unilateral, para forçar a aquisição, como serviço de seguro, da garantia estendida;
  7. A revisão de veículos automotores representa, para o mercado (concepção mercadológica), um lucrativo serviço posto à disposição dos consumidores, pelo qual estes desembolsam certa quantia em dinheiro, que varia conforme determinados referenciais (marca, modelo, ano de fabricação, quilometragem etc.), associando-se, no mais das vezes, com a venda de variados produtos, notadamente as chamadas peças de reposição; para a sociedade (concepção ético-social), denota um dever moral e até – falsamente – jurídico de pagar pela manutenção do produto, cuja pena, em caso de descumprimento, é a perda da garantia contratual fixada unilateralmente pelo fornecedor; sob a perspectiva do direito (concepção jurídica), tem-se que o mercado, que a quase tudo engendra e condiciona, encontra eco às suas pretensões lucrativas na interpretação que atribui à revisão de veículos automotores a natureza jurídica de serviço (art. 3º, § 2º, CDC); ii) se for adotada, porém, a teoria da garantia legal baseada no critério da vida útil do bem, a revisão deixa de ser serviço e passa a ser mero procedimento de prevenção dos interesses do fornecedor, a fim de poupá-lo de eventual responsabilidade posterior pelo aparecimento de vício ou defeito oculto no curso do “durée raisonnable”; iii) o consumidor não se exime, todavia, da reposição das peças ou componentes por força do uso regular do bem, sob pena de enriquecimento ilícito à custa do fornecedor; iv) é possível, ainda, que o desgaste do produto não decorra exclusivamente do uso feito pelo consumidor, sendo atribuível ao fenômeno da obsolescência planejada ou programada, hipótese em que a responsabilidade será do fornecedor; v) para assegurar maior proteção ao consumidor, seria adequado criar, com base na intervenção estatal por direção (art. 170, V, CF), uma autarquia federal destinada a catalogar e agrupar todos os bens e serviços disponíveis no mercado, inclusive com fixação do respectivo prazo de vida útil.
  8. No atinente à associação da revisão veicular com a garantia contratual, viu-se que inexiste relação de condicionalidade entre os dois institutos. A uma, porque a garantia em referência é de todo despicienda no átrio das relações consumeristas, conforme já restou assentado. A duas, porque a revisão de veículos automotores, sendo também do interesse do fornecedor – para fins de evitar eventual responsabilidade pelos vícios ocultos descobertos no período da garantia legal baseada no critério da vida útil do bem –, deve ser gratuita, não se prestando ao auferimento de lucro fácil pelo fornecedor; não há, portanto, dever de revisar imputável ao consumidor, cabendo este ao fornecedor, de modo que se torna desarrazoada qualquer manobra intimidatória ou punitiva em face de alguém a quem não compete a obrigação revisional;
  9. O condicionamento da garantia contratual à realização de revisão de veículos automotores dá ensejo à configuração da venda casada do art. 39 do CDC, com possibilidade de emanação de ordem judicial para fins de abstenção da conduta, sob a batuta de preceito cominatório, sem prejuízo do dever de reparação de eventual dano, moral ou material, a teor do art. 6º, VII, do CDC; eventual cláusula contratual da mesma natureza está sujeita, ainda, à nulidade de pleno direito, podendo esta ser reconhecida inclusive de ofício pelo juiz, com base no art. 51, IV, do CDC, em razão da sua abusividade, embora se ressalve entendimento divergente do STJ, conforme enunciado sumular nº 381.
Sobre o autor
Edvanilson de Araújo Lima

Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia, com início do curso na Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Público. Foi Professor de Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Eleitoral da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina-PE (Facape). Foi professor de Direito Penal e Filosofia Jurídica e Geral da Faculdade Maurício de Nassau em Petrolina-PE. Ex-servidor do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás e do Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Edvanilson Araújo. Garantia contratual e revisão de veículos automotores:: um meio eficaz de lesar os consumidores . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4221, 21 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30526. Acesso em: 4 nov. 2024.

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