4. ABSTRATIVIZAÇÃO DO SISTEMA DIFUSO
Partindo do pressuposto de diferentes concepções filosóficas e de experiências históricas diversificadas, o controle judicial de constitucionalidade continua a ser classificado, para finalidades didáticas, em modelo difuso e concentrado, ou, às vezes, entre sistema de controle de constitucionalidade americano e austríaco ou europeu.
Essas concepções quase que excludentes ensejaram o surgimento dos modelos mistos, combinando elementos dos dois sistemas básicos, citando-se como exemplos o sistema brasileiro e o sistema português.
O desenvolvimento desses dois modelos básicos aponta em diretriz de convergência a partir de certos referenciais.
O modelo concentrado (austríaco ou europeu) adota as ações individuais para a defesa de posições subjetivas e cria mecanismos específicos para a defesa dessas posições, como a atribuição de eficácia ex tunc da decisão para o caso concreto.
O sistema americano, por sua vez, perdeu em parte a característica de um modelo direcionado para a defesa de posições unicamente subjetivas e encampa uma modelagem processual que valora o interesse público em sentido amplo.
4.1. O sistema concentrado de controle de constitucionalidade
O sistema concentrado de constitucionalidade teve origem no modelo austríaco, que se irradiou pela Europa por intermédio de Kelsen, e consiste na atribuição de “guardião” da Constituição a um único órgão. Desenvolve-se a partir de um processo objetivo, em que o interesse concreto das partes é irrelevante.
No Brasil, o controle concentrado é representado pela ação direita de inconstitucionalidade (Adin), visa atacar o vício da lei, em tese, estadual ou federal. O órgão competente para julgá-la é o STF, cuja decisão judicial faz coisa julgada erga omnes, podendo ter efeitos ex tunc e ex nunc, dependendo do caso em concreto, com inaplicabilidade imediata da lei e sem necessidade de suspensão pelo Senado Federal.
Em sua obra mais famosa “Teoria Pura do Direito”, Hans Kelsen fala sobre a situação da lei inconstitucional e seus efeitos. Para ele, não se pode dizer que uma lei inconstitucional seja uma lei inválida ou nula, pois na realidade ela não é sequer uma lei, pois “a afirmação de que uma lei válida é contrária à Constituição (anticonstitucional) é uma contradição, pois uma lei somente pode ser válida com fundamento na Constituição” (KELSEN, 1996 p. 300).
Kelsen utiliza-se, portanto, de um raciocínio lógico: a lei inconstitucional é como se não existisse, mas enquanto não for assim declarada, por procedimento constitucional, é válida.
No Brasil, foi adotado o sistema misto do controle de constitucionalidade, ocorrendo ao mesmo tempo o modelo americano de caso concreto (difuso); e paralelamente a ele o sistema europeu, denominado de abstrato.
As principais diferenças entre os dois sistemas de controle de constitucionalidade, estão no fato de que:
[...] enquanto no controle difuso, aberto a qualquer juiz, a constitucionalidade de uma lei é aferida com base no caso concreto submetido ao Judiciário, como causa de pedir, o sistema concentrado é chamado de abstrato justamente por abstrair, na análise da matéria, de qualquer caso concreto ou, de modo geral, de toda a realidade dos acontecimentos pertinentes direta ou indiretamente à norma em discussão. (PRADO, 2007 p. 58)
4.2. O sistema difuso de controle de constitucionalidade
Como visto em capítulo anterior da presente monografia, com o advento da República, consagrou-se o sistema difuso do controle de constitucionalidade, tendo se procedido em 1934 à introdução da ação direta, como procedimento preliminar do processo interventivo (CF 1934, art. 12), consolidando-se em 1946 o desenvolvimento da representação interventiva contra lei ou ato normativo estadual (CF 1946, art. 8º § único); somente em 1965, com a representação de inconstitucionalidade, passa a integrar o nosso sistema a modalidade de controle abstrato de normas (Emenda nº 16/65 à Constituição de 1946).
A Constituição de 1967/1969, além de propor a representação interventiva em face do direito estadual (CF art. 11, § 1º, “c”) estabeleceu a representação de lei municipal, pelo chefe do Ministério Público local, para a intervenção estadual (art. 15, § 3º, d).
Com a Emenda nº 7, de 1977, foi deferida ao Supremo Tribunal Federal a competência para conhecer e julgar representação do Procurador-Geral da República para interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual.
Ao final da década de 80, conviviam no sistema de controle de constitucionalidade elementos do sistema difuso e do sistema concentrado de constitucionalidade, possibilitando, assim, o surgimento de um modelo híbrido ou misto de controle.
Se a intensa discussão sobre o monopólio da ação por parte do Procurador-Geral da República não levou a uma mudança na jurisprudência consolidada sobre o assunto, é fácil constatar que ela foi decisiva para a alteração introduzida pelo constituinte de 1988, com a significativa ampliação do direito de propositura da ação direta (CF, art. 103).
A Constituição de 1988 conferiu ênfase, portanto, não mais ao sistema difuso ou incidente, mas ao modelo concentrado, uma vez que, quase todas as controvérsias constitucionais relevantes passaram a ser submetidas ao Supremo Tribunal Federal, por intermédio do processo de controle abstrato de normas.
Desta forma, juntamente com o sistema difuso, que autoriza os juízes e tribunais afastar a aplicação da lei in concreto (CF 1988, art. 97, art. 102, III, a a c, art. 105, II, a e b) e dos novos institutos do mandado de segurança coletivo, do mandado de injunção, do habeas data e da ação civil pública, consagrou-se, no sistema constitucional brasileiro:
a) a ação direta de inconstitucionalidade do direito federal e do direito estadual em face da Constituição, mediante provocação dos entes e órgãos referidos no art. 103 da Constituição;
b) a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal em face da Constituição Federal, mediante provocação dos entes e órgãos referidos no art. 103 da Constituição;
c) a representação interventiva, formulada pelo Procurador-Geral da República, contra ato estadual considerado afrontoso aos chamados princípios sensíveis ou, ainda, para assegurar a execução de lei federal;
d) a ação direta por omissão, mediante provocação dos entes e órgãos referidos no art. 103 da Constituição.
Nesse novo contexto, deve-se estudar o controle incidental ou concreto de normas.
Como é sabido em direito, foi adotado, entre nós, de início, o modelo difuso de declaração de inconstitucionalidade[24].
A matéria não sofreu alterações profundas nos textos subseqüentes.
A instituição das garantias constitucionais do habeas corpus e do mandado de segurança individual e coletivo ampliou, significativamente, a chamada via de defesa ou de exceção contra o ato ou omissão eivados de inconstitucionalidade, admitindo-se, inclusive, a utilização desses remédios em caráter preventivo[25], inclusive, com o reconhecimento da legitimidade da ação declaratória como instrumento processual para obter a inconstitucionalidade de lei ou ato desconforme com a ordem constitucional[26]. A ação popular passa a constituir, também, forma judicial válida para provocar o controle jurisdicional da constitucionalidade[27].
Nos modelos concentrados, a diferenciação entre controle concreto e abstrato assenta-se, basicamente, nos pressupostos de admissibilidade. O controle concreto de normas tem origem em uma relação processual concreta, constituindo a relevância da decisão, pressuposto de admissibilidade.
O controle abstrato, por sua vez, não está vinculado a uma situação subjetiva.
Assim, a característica fundamental do controle concreto ou incidental de normas parece ser o seu desenvolvimento inicial no curso de um processo, no qual a questão constitucional configura antecedente lógico.
4.3. Abstrativização ou objetivização do sistema difuso de controle de constitucionalidade
A matéria inerente ao controle incidental de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal sofreu significativas mudanças.
Neste sentido, o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, já em 1940, consagrava, no art. 85, parágrafo único, que:
“se por ocasião do julgamento de qualquer feito se verificar que é imprescindível decidir-se sobre a constitucionalidade ou não de alguma lei, ou de certa e determinada disposição nela contida, ou de ato do Presidente da República, o Tribunal, por proposta do Relator, ou de qualquer de seus membros, ou a requerimento do Procurador-Geral, depois de findo o relatório, suspenderá o julgamento para deliberar na sessão seguinte, preliminarmente, sobre a argüida inconstitucionalidade, como prejudicial.”
O art. 86 do Regimento previa que, se a argüição de inconstitucionalidade ocorresse perante qualquer das Turmas, competia ao Tribunal Pleno julgar a prejudicial de inconstitucionalidade da lei ou ato impugnado.
O vigente Regimento do Supremo Tribunal Federal prevê, no art. 176:
“Argüida a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, em qualquer outro processo submetido ao Plenário, será ela julgada em conformidade com o disposto nos arts. 172 a 174, depois de ouvido o Procurador-Geral.”
Nos processos de competência das Turmas, dar-se-á a remessa do feito ao julgamento do Plenário, em caso de relevante argüição de inconstitucionalidade (RISTF, art. 176, § 1º, c/c o art. 6º, II, a).
O julgamento da matéria exige quorum de oito ministros (RISTF, art. 143, parágrafo único), somente podendo ser proclamada a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade do preceito ou ato impugnado se, num ou noutro sentido, se tiverem manifestado seis ministros (RISTF, art. 173, caput, c/c o art. 143). No caso de ausência de ministros em número que possa influir no julgamento, proceder-se-á à sua suspensão, aguardando-se o comparecimento dos ausentes (RISTF, art. 173, parágrafo único), ou convocando-se ministros do Tribunal Federal de Recursos (RISTF, art. 40).
Não será declarada a inconstitucionalidade se não for alcançada a maioria de seis votos (RISTF, art. 173 c/c o art. 174). Declarada, porém, a inconstitucionalidade, no todo ou em parte, serão comunicados os órgãos interessados, remetendo-se cópia autêntica da decisão ao Presidente do Senado Federal, para os fins do disposto no art. 42, VII, da Constituição Federal de 1967/1969.
A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, firmada nos termos do art. 178 do Regimento Interno, aplica-se a todos os casos submetidos às Turmas ou ao Plenário (RISTF, art. 103 c/c o art. 11, I e II), assegurando-se, porém, a qualquer ministro o direito de propor, em novos feitos, a revisão do entendimento assentado, não devendo ocorrer após a comunicação da decisão ao Senado Federal.
Nessa mesma linha, no julgamento do RE n° 102.553-DF[28], o Tribunal assumiu a condição de titular da guarda da Constituição para examinar a constitucionalidade de outras normas, ainda que não interessasse ao recorrente. Tratava-se da apreciação de uma Resolução do Senado Federal que versava matéria de alíquota de ICMS. No caso, na terminologia adotada à época, não se conheceu do recurso extraordinário do contribuinte porque não lhe interessava, na espécie, a declaração de inconstitucionalidade. Não obstante, o Tribunal declarou a inconstitucionalidade do ato normativo.
Tem-se aqui também um quid de objetivação do processo de controle incidental no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
A Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, estabeleceu as seguintes regras aplicáveis ao recurso extraordinário interposto contra decisão das turmas recursais dos juizados especiais:
“Art. 14. Caberá pedido de uniformização de interpretação de lei federal quando houver divergência entre decisões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais na interpretação da lei.
§ 1º O pedido fundado em divergência entre Turmas da mesma Região será julgado em reunião conjunta das Turmas em conflito, sob a presidência do Juiz Coordenador.
§ 2º O pedido fundado em divergência entre decisões de Turmas de diferentes Regiões ou da proferida em contrariedade a súmula ou jurisprudência dominante do STJ será julgado por Turma de Uniformização, integrada por Juízes de Turmas Recursais, sob a presidência do Coordenador da Justiça Federal.
§ 3º A reunião de juízes domiciliados em cidades diversas será feita pela via eletrônica.
§ 4º Quando a orientação acolhida pela Turma de Uniformização, em questões de direito material, contrariar súmula ou jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça – STJ, a parte interessada poderá provocar a manifestação deste, que dirimirá a divergência.
§ 5º No caso do § 4º, presente a plausibilidade do direito invocado e havendo fundado receio de dano de difícil reparação, poderá o relator conceder, de ofício ou a requerimento do interessado, medida liminar determinando a suspensão dos processos nos quais a controvérsia esteja estabelecida.
§ 6º Eventuais pedidos de uniformização idênticos, recebidos subseqüentemente em quaisquer Turmas Recursais, ficarão retidos nos autos, aguardando-se pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça.
§ 7º Se necessário, o relator pedirá informações ao Presidente da Turma Recursal ou Coordenador da Turma de Uniformização e ouvirá o Ministério Público, no prazo de cinco dias. Eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo, poderão se manifestar, no prazo de trinta dias.
§ 8º Decorridos os prazos referidos no § 7º, o relator incluirá o pedido em pauta na Seção, com preferência sobre todos os demais feitos, ressalvados os processos com réus presos, os ‘habeas corpus’ e os mandados de segurança.
§ 9º Publicado o acórdão respectivo, os pedidos retidos referidos no § 6º serão apreciados pelas Turmas Recursais, que poderão exercer juízo de retratação ou declará-los prejudicados, se veicularem tese não acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça.
§ 10 Os Tribunais Regionais, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, no âmbito de suas competências, expedirão normas regulamentando a composição dos órgãos e os procedimentos a serem adotados para o processamento e o julgamento do pedido de uniformização e do recurso extraordinário.
Art. 15. O recurso extraordinário, para os efeitos desta lei, será processado e julgado segundo o estabelecido nos §§ 4º a 9º do art. 14, além da observância das normas do Regimento.”
Embora referentes ao incidente de uniformização a ser desenvolvido perante o STJ, essas regras (art. 14, §§ 4º a 9º) aplicam-se também ao recurso extraordinário, por força do art. 15 da aludida Lei.
A Emenda Regimental nº 12 do Supremo Tribunal Federal, de 12 de dezembro de 2003, regulamentou a matéria no âmbito do Tribunal, fixando os novos parâmetros para o recurso extraordinário contra as decisões dos juizados especiais, nos termos seguintes:
[...] Art. 2º Fica acrescido ao artigo 321 do Regimento Interno o § 5º, incisos I a VIII, com o seguinte teor:
§ 5º Ao recurso extraordinário interposto no âmbito dos Juizados Especiais Federais, instituídos pela Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, aplicam-se as seguintes regras:
I - verificada a plausibilidade do direito invocado e havendo fundado receio da ocorrência de dano de difícil reparação, em especial quando a decisão recorrida contrariar súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, poderá o relator conceder, de ofício ou a requerimento do interessado, ad referendum do Plenário, medida liminar para determinar o sobrestamento, na origem, dos processos nos quais a controvérsia esteja estabelecida, até o pronunciamento desta Corte sobre a matéria;
II - o relator, se entender necessário, solicitará informações ao Presidente da Turma Recursal ou ao Coordenador da Turma de Uniformização, que serão prestadas no prazo de 05 (cinco) dias;
III - eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo, poderão manifestar-se no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da publicação da decisão concessiva da medida cautelar prevista no inciso I deste § 5º;
IV - o relator abrirá vista dos autos ao Ministério Público Federal, que deverá pronunciar-se no prazo de 05 (cinco) dias;
V - recebido o parecer do Ministério Público Federal, o relator lançará relatório, colocando-o à disposição dos demais Ministros, e incluirá o processo em pauta para julgamento, com preferência sobre todos os demais feitos, à exceção dos processos com réus presos, habeas-corpus e mandado de segurança;
VI - eventuais recursos extraordinários que versem idêntica controvérsia constitucional, recebidos subseqüentemente em quaisquer Turmas Recursais ou de Uniformização, ficarão sobrestados, aguardando-se o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal;
VII- publicado o acórdão respectivo, em lugar especificamente destacado no Diário da Justiça da União, os recursos referidos no inciso anterior serão apreciados pelas Turmas Recursais ou de Uniformização, que poderão exercer o juízo de retratação ou declará-los prejudicados, se cuidarem de tese não acolhida pelo Supremo Tribunal Federal;
VIII - o acórdão que julgar o recurso extraordinário conterá, se for o caso, súmula sobre a questão constitucional controvertida, e dele será enviada cópia ao Superior Tribunal de Justiça e aos Tribunais Regionais Federais, para comunicação a todos os Juizados Especiais Federais e às Turmas Recursais e de Uniformização.
Depreende-se desse normativo que o recurso extraordinário das decisões dos juizados especiais federais teve um tratamento diferenciado por parte do legislador, admitindo, expressamente, o encaminhamento de alguns recursos ao Supremo Tribunal e a retenção dos recursos idênticos nas Turmas recursais (art. 14, § 6º).
Tendo em vista a possibilidade de reprodução de demandas idênticas, autoriza-se o relator a conceder liminar para suspender, de ofício ou a requerimento do interessado, a tramitação dos processos que versem sobre idêntica controvérsia constitucional. (art. 14, § 5º)[29]. Trata-se de disposição que se assemelha ao estabelecido no art. 21 da Lei n. 9.868/ 99, que prevê a cautelar na ação declaratória de constitucionalidade, e no art. 5º, da Lei n. 9.882/99, que autoriza a cautelar em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental.
Afastando-se da perspectiva subjetiva do recurso extraordinário, a Lei n. 10.259/2001, no art. 14, § 7º, autorizou o relator a pedir informações adicionais, se assim entender necessário, ao Presidente da Turma recursal ou ao Coordenador da Turma de Uniformização, podendo também ouvir o Ministério Público no prazo de 5 dias.
Na mesma linha, a aludida disposição permitiu que eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo, se manifestem no prazo de 30 dias (art. 14 § 7º, 2ª. parte) . Trata-se de um amplo reconhecimento da figura do amicus curiae, que, como se sabe, já foi prevista na Lei n. 9868/ 99 (arts. 7º e 18, referentes à ADIn e à ADC; art. 482, do CPC, relativo ao incidente de inconstitucionalidade) e na Lei n. 9.882/99 (art. 6º, § 1º, a propósito da ADPF).
Esse novo modelo legal traduz, sem dúvida, um avanço na concepção que caracteriza o recurso extraordinário, deixando de ter caráter subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, a função de defesa da ordem constitucional objetiva.
Nesse sentido, destaca-se a observação de Häberle segundo a qual “a função da Constituição na proteção dos direitos individuais (subjectivos) é apenas uma faceta do recurso de amparo”, dotado de uma “dupla função”, subjetiva e objetiva, “consistindo esta última em assegurar o Direito Constitucional objetivo”.[30]
Muito provavelmente, a fórmula adotada para o recurso extraordinário no âmbito dos juizados especiais federais, será estendida para os recursos extraordinários regulares, nos quais se discutam matérias repetitivas.
Neste sentido, de lege ferenda, o PL nº 12/2006 (nº 6.648/2006 na Câmara dos Deputados), que regulamenta o art. 102, § 3º da CF/88, aprovado no Senado e submetido à Câmara dos Deputados, recomenda-se a adoção de sistemática idêntica para os recursos extraordinários regulares:
“ Congresso Nacional decreta: Art. 1° A Lei n° 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 543-A e 543-B:
Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo.
§ 1° Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte.
§ 2° Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos. Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se. Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.
§ 3° O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá sobre as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos, na análise da repercussão geral."
O recurso extraordinário regular - especialmente aquele inserido no contexto das questões de massa - poderá merecer disciplina idêntica à adotada para o recurso especial dos juizados especiais federais e, portanto, dos processos objetivos.
Mas que efeitos hão de se reconhecer ao ato do Senado que suspende a execução da lei inconstitucional?
Lúcio Bittencourt afirma que “o objetivo do art. 45, nº IV – a referência diz respeito à Constituição de 1967 – é apenas tornar pública a decisão do tribunal, levando-a ao conhecimento de todos os cidadãos”[31]. Outros reconhecem que o Senado Federal pratica ato político que “confere efeito geral ao que era particular (...), generaliza os efeitos da decisão”[32].
“Revogada uma lei, ela continua sendo aplicada, no entanto, às situações constituídas antes da revogação (art. 153, § 3º, da Constituição). Os juízes e a administração aplicam-na aos atos que se realizaram sob o império de sua vigência, porque então ela era a norma jurídica eficaz. Ainda continua a viver a lei revogada para essa aplicação, continua a ter existência para ser utilizada nas relações jurídicas pretéritas (...)
A suspensão por declaração de inconstitucionalidade, ao contrário, vale por fulminar, desde o instante do nascimento, a lei ou decreto inconstitucional, importa manifestar que essa lei ou decreto não existiu, não produziu efeitos válidos.
A revogação, ao contrário disso, importa proclamar que, a partir dela, o revogado não tem mais eficácia.
A suspensão por declaração de inconstitucionalidade diz que a lei ou decreto suspenso nunca existiu, nem antes nem depois da suspensão.
Há, pois, distância a separar o conceito de revogação daquele da suspensão de execução de lei ou decreto declarado inconstitucional. O ato de revogação, pois, não supre o de suspensão, não o impede, porque não produz os mesmos efeitos.”[33]
O sistema de controle de constitucionalidade encontra-se em um período transição.
Embora a Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, tenha autorizado o Supremo Tribunal Federal a declarar a inconstitucionalidade com efeitos limitados, é importante questionar sobre a admissibilidade do uso dessa técnica de decisão no âmbito do controle difuso.
Segundo a doutrina, a jurisprudência americana evoluiu para admitir, ao lado da decisão de inconstitucionalidade com efeitos retroativos amplos ou limitados (limited retrospectivity), a superação prospectiva (prospective overruling), que tanto pode ser limitada (limited prospectivity), aplicável aos processos iniciados após a decisão, inclusive ao processo originário, como ilimitada (pure prospectivity), que sequer se aplica ao processo que lhe deu origem.[34]
Cavalcanti O sistema difuso ou incidental americano, marcadamente tradicional, passou a admitir a diminuição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e, em casos determinados, até mesmo a pura declaração de inconstitucionalidade com efeito exclusivamente pro futuro.
Assim, ressalte-se que modelo difuso não se mostra incompatível com a doutrina da limitação dos efeitos.
Rui Medeiros doutrina:
“-- É sabido, desde logo, que existem domínios em que a restrição do alcance do julgamento de inconstitucionalidade não é, por definição, susceptível de pôr em causa esse direito fundamental (v.g., invocação do nº 4 do art. 282 para justificar a aplicação da norma penal inconstitucional mais favorável ao argüído do que a norma repristinada);
-- Além disso, mostra-se claramente claudicante a representação do direito de acção judicial como um direito a uma sentença de mérito favorável, tudo apontando antes no sentido de que o artigo 20 da Constituição não vincula os tribunais a ‘uma obrigação-resultado (procedência do pedido) mas a uma mera obrigação-meio, isto é, a encontrar uma solução justa e legal para o conflito de interesse entre as partes’;
-- Acresce que, mesmo que a limitação de efeitos contrariasse o direito de acesso aos tribunais, ela seria imposta por razões jurídico-constitucionais e, por isso, a solução não poderia passar pela absoluta prevalência do interesse tutelado pelo art. 20 da Constituição, postulando ao invés uma tarefa de harmonização entre os diferentes interesse em conflito;
-- Finalmente, a admissibilidade de uma limitação de efeitos na fiscalização concreta não significa que um tribunal possa desatender, com base numa decisão puramente discricionária, a expectativa daquele que iniciou um processo jurisdicional com a consciência da inconstitucionalidade da lei que se opunha ao reconhecimento da sua pretensão. A delimitação da eficácia da decisão de inconstitucionalidade não é fruto de ‘mero decisionismo’ do órgão de controlo. O que se verifica é tão-somente que, à luz do ordenamento constitucional no seu todo, a pretensão do autor à não-aplicação da lei desconforme com a Constituição não tem, no caso concreto, fundamento.”[35]
Assim, o STF pode declarar a inconstitucionalidade restrita, sem qualquer ressalva, essa decisão afeta os demais processos com pedidos idênticos pendentes de decisão nas diversas instâncias. Os próprios fundamentos constitucionais legitimadores da restrição embasam a declaração de inconstitucionalidade com eficácia ex nunc nos casos concretos. A inconstitucionalidade da lei há de ser reconhecida a partir do trânsito em julgado. Os casos concretos ainda não transitados em julgado hão de ter o mesmo tratamento (decisões com eficácia ex nunc) se e quando submetidos ao STF.
O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de discutir a aplicação do art. 27 da Lei n. 9868/99 em alguns casos.
No primeiro, controvertia-se sobre a constitucionalidade do parágrafo único do art. 6º da Lei Orgânica 222, de 31 de março de 1990, do Município de Mira-Estrela- SP, que teria fixado seu número de vereadores em afronta ao disposto no art. 29, IV, da Constituição. É que tal disposição prevê que o número de vereadores seja fixado proporcionalmente à população local, observando-se, nos Municípios de até um milhão de habitantes, a relação de um mínimo de 9 e um máximo de 21. Acolhendo proposta formulada em voto-vista por mim proferido, o Tribunal houve por bem consagrar que a decisão de inconstitucionalidade seria dotada de efeito “pro futuro”[36].
O segundo caso diz respeito à mudança de orientação jurisprudencial a propósito da exigência de recolhimento à prisão para que o acusado pudesse apelar, discutido na Reclamação nº 2.391. Embora a matéria ainda esteja pendente, em razão de pedido de vista, a discussão demonstra que tais casos de revisão de jurisprudência amplamente consolidada no âmbito do Tribunal tornam relevante a discussão em torno dos efeitos da decisão, pois tal mudança certamente repercutirá sobre casos já julgados. Parece que, no presente caso, o Tribunal encaminha-se para reconhecer que a inconstitucionalidade do art. 9º da Lei nº 9.034/95 há de ser declarada com efeitos “ex nunc”[37].
O terceiro caso refere-se à decisão proferida na ADI nº 3.022, de 18.08.2004, na qual declarou o Tribunal a inconstitucionalidade de lei do Rio Grande do Sul, reconhecendo-se, pela primeira vez, que a decisão teria eficácia pro futuro[38].
Por fim, mencione-se o julgamento do HC nº 82.959, de 23.02.2006, quando o Tribunal, por maioria, deferiu o pedido de habeas corpus e declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, que veda a possibilidade de progressão do regime de cumprimento da pena nos crimes hediondos definidos no art. 1º do mesmo diploma legal. Entendeu-se, no caso, que a vedação de progressão de regime, prevista na norma impugnada, afronta o direito à individualização da pena (CF, art. 5º, LXVI), já que, ao não permitir que se considerem as particularidades de cada pessoa, a sua capacidade de reintegração social e os esforços aplicados com vistas à ressocialização, acaba tornando inócua a garantia constitucional. Ressaltou-se, também, que o dispositivo impugnado apresenta incoerência, porquanto impede a progressividade, mas admite o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena (Lei 8.072/90, art. 5º). No entanto, explicitou o Tribunal que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará conseqüências jurídicas com relação às penas já extintas na data do julgamento, esclarecendo que a decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão. Mais uma vez, portanto, conferiu o Tribunal efeitos restritivos às suas declarações de inconstitucionalidade[39].
Eis a ementa de importante e famoso precedente jurisprudencial envolvendo a matéria:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. CRIME HEDIONDO. DIREITO À PROGRESSÃO DE REGIME. DECISÃO NÃO DECIDIDA NAS INSTÂNCIAS COMPETENTES. SÚMULA 691/STF. EFEITOS DA DECISÃO NO HC 82.959. INCIDÊNCIA DA LEI Nº 11.464/2007. IRRETROATIVIDADE DE LEI PENAL MATERIAL MAIS GRAVOSA. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. É firme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido da inadmissibilidade de impetração sucessiva de habeas corpus sem o julgamento definitivo do writ anteriormente impetrado. Súmula 691/STF. 2. Os fundamentos da impetração ensejam a concessão da ordem de ofício. A Lei nº 11.464/2007 é de se aplicar apenas a fatos praticados após a sua vigência. Quanto aos crimes hediondos cometidos antes da entrada em vigor da mencionada Lei nº 11.464/2007, a progressão de regime está condicionada ao preenchimento dos requisitos do art. 112 da LEP. Precedentes. 3. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para determinar ao Juízo da Execução Criminal que proceda a novo exame dos requisitos para a progressão, embasado no art. 112 da LEP.
Decisão: A Turma não conheceu do pedido de habeas corpus. Concedeu, porém, de ofício, a ordem para afastar a incidência da Lei 11.464/2007, nos termos do voto do Relator. Unânime. 1ª Turma, 03.06.2008.” (HC 94212 DJe-177 DIVULG 18-09-2008 PUBLIC 19-09-2008).
A partir do julgamento desta matéria – progressão de regime em crimes hediondos – tornou-se muito difundida a questão da abstrativização do recurso extraordinário, já existente em nosso sistema.