Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Direito judicial criativo:

para uma teoria prática do direito

Agenda 22/10/2014 às 14:45

Como a prática constitucional é toda desenvolvida mediante as decisões dos Tribunais Superiores, em especial o STF, surge como corolário a necessidade de se sistematizar um direito próprio desse fenômeno: o Direito Judicial.

A Suprema Corte dos EUA, deparada numa situação de ter que afastar a 4ª emenda americana para não anular toda uma prova obtida ilegalmente, o que geraria problemas de administração de justiça, recorreu à sabedoria do Justice Holmes para indeferir o pedido que fora feito com base na referida emenda (mutação constitucional?): “na vida da lei não existe lógica; o que há é a experiência” (United State Reports, 381:629).

Essa sabedoria também se aplica aqui no Brasil, onde se entende que tal experiência (por certa, histórica e empírica, não obstante com inspirações doutrinárias) já está em plena ebulição através, principalmente, das práticas constitucionais, em detrimento da lógica fria das leis. Como a prática constitucional é toda desenvolvida mediante as decisões dos Tribunais Superiores, em especial o STF – o chamado direito constitucional jurisprudencial –, surge como corolário a necessidade de se sistematizar um direito próprio desse fenômeno: o Direito Judicial.

Como todo fenômeno, faz-se mister uma nomenclatura que simbolize, ou melhor, que traga a carga valorativa que ele quer passar. Assim é com o Direito Judicial, deveras em formação, em melhoramento e, por isso, em fase Beta. Nesse diapasão é que se menciona um novo modo de ver o direito, voltado para a práxis dos Tribunais Superiores.

Historicamente, a partir da sopa orgânica do constitucionalismo, assim podemos vê-lo de forma bastante resumida. No absolutismo vigorava a máxima da concentração de poder, motivo que fez surgir com os séculos e revoluções posteriores uma submissão à Lei do detentor do poder. Era a fase onde o judiciário era tão só a boca da lei, com forte presença, portanto, do Legislativo. Após principalmente a 2ª Grande Guerra com a constitucionalização dos direitos humanos, o Judiciário começou a se fazer mais e mais presente na vida da população, gerando a conhecida explosão de litigiosidade. Ocorre, porém, que na falta de como efetivar direitos garantidos na Constituição, passou o Poder Judiciário a ter papel mais ativo, desembocando no alarmado ativismo judicial. Agora, como uma previdência do futuro, concebe-se uma sedimentação dessa função ativa do Judiciário, superando a transição do ativismo para um próprio conceito, mais elaborado, de Direito Judicial. É assim que se olha essa evolução vinda e ainda por vir.

Interessante sistematização do fenômeno foi lançada em artigo de conteúdo magnífico, da lavra de Emerson Garcia, membro do Ministério Público do Rio de Janeiro, intitulado Direito Judicial e Teoria da Constituição[1], para quem parcela da função normativa pulverizou-se entre os Poderes, mormente a intervenção final definitiva dos órgãos jurisdicionais (final enforcing power), o que permite se falar em atividade de produção normativa escalonada, em que a atuação normativa parte do direito posto pelo legislador e “sobe” ou se desenvolve através da interpretação ou integração jurídica. Tal fato não significa, nunca, uma supremacia do Judiciário em relação aos outros Poderes, mas apenas que aquele tem vocação própria de manter a paz institucional e garantir o sistema jurídico, deveras com finco na Constituição. Até mesmo porque, citando Robert Alexy, o parlamento representa o cidadão politicamente; o tribunal constitucional, argumentativamente.

Conceitualmente, o Direito Judicial reflete a atividade de definição do Direito (juris dictio) pelos tribunais, podendo assumir perspectivas concretas (na solução de litígios específicos, com postura retrospectiva) ou abstratas (no controle de constitucionalidade das leis realizado pelos Tribunais Constitucionais, com postura prospectiva).

Seguindo a sistematização proposta, depreende-se de logo que o sujeito desse Direito Judicial é o agente densificador do conteúdo normativo (os órgãos jurisdicionais, portanto) e o objeto é a norma geral maleável (seja princípio, seja regra), isto é, com predisposição à moldagem face à realidade ou mesmo expurgação mediante o mecanismo de controle de constitucionalidade, este em si um instrumento próprio do Direito Judicial. A sua fonte é o processo de sedimentação da jurisprudência e o seu método é pela utilização da concepção forte dos princípios, dando-se a estes a mesma imperatividade das regras, embora se distingam qualitativamente (dimensão de validade das regras / operação de subsunção Vs. dimensão de peso dos princípios / operação de concreção e ponderação). É isso tudo que dá a individualidade existencial do Direito Judicial.

Desmistificando o debate acerca da legitimidade democrática, o autor alega que o poder político também se projeta na função jurisdicional, embora na função legislativa tenha a sua natural expressão. Tal fato não significa, nunca, uma supremacia do Judiciário em relação aos outros Poderes, mas apenas que aquele tem vocação própria de manter a paz institucional e garantir o sistema jurídico, deveras com finco na Constituição. E arremata, citando Robert Alexy:

Segundo ele, “a chave para a resolução é a distinção entre a representação política e a argumentativa do cidadão”. Estando ambas submetidas ao princípio fundamental de que todo o poder emana do povo, é necessário compreender “não só o parlamento mas também o tribunal constitucional como representação do povo”. Essa representação, no entanto, se manifesta de modo distinto: “o parlamento representa o cidadão politicamente, o tribunal constitucional argumentativamente”, o que permite concluir que este, ao representar o povo, o faz de forma “mais idealística” que aquele. Ao final, realça que o cotidiano parlamentar oculta o perigo de que faltas graves sejam praticadas a partir da excessiva imposição das maiorias, da preeminência das emoções e das manobras do tráfico de influências, o que permite concluir que “um tribunal constitucional que se dirige contra tal não se dirige contra o povo, senão, em nome do povo, contra seus representantes políticos”.

Conferindo-se à Constituição a condição de elemento polarizador das relações entre os poderes, torna-se evidente que os mecanismos de equilíbrio por ela estabelecidos não podem ser intitulados de antidemocráticos. Além disso, a ausência de responsabilidade política dos membros do Poder Judiciário não tem o condão de criar um apartheid em relação à vontade popular. Na linha de Bachof, o juiz não é menos órgão do povo que os demais, pois, mais importante que a condição de mandatário do povo é a função desempenhada “em nome do povo”,18 aqui residindo a força legitimante da Constituição. Essa fórmula, aliás, mereceu consagração expressa no art. 202, no 1, da Constituição portuguesa: “os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”.[2]

A interferência do Direito Judicial perpassa também por algo que no Brasil não é aceito, mas o é em países como Alemanha, Espanha e França. Ao se declarar a inconstitucionalidade de uma lei em sede de fiscalização abstrata, os efeitos dessa declaração são extensivos a todos os particulares e – aqui mora a ideia – a todas as autoridades e Poderes Públicos, vedando ao legislador reproduzir a mesma norma sem prévia alteração da norma inconstitucional com ela incompatível. Prestigia-se, portanto, o efeito erga omnes e a força de lei da decisão, assumindo o Direito Judicial feições supressivas e obstativas.

Mas é no problema das omissões (in)constitucionais que o Direito Judicial ganha potencialidade. A solução aqui é mais uma vez convergente ao intento da máxima efetividade das normas constitucionais: sob esse prisma, pode-se alcançar um resultado normante “não com a prolação de decisão substitutiva da própria lei, mas com uma reengenharia interpretativa das normas já existentes, nelas reconhecendo o potencial de integração da Constituição ou mesmo a sua aplicação direta”[3]. É dizer: o Direito Judicial concorre com a normativa preexistente, pois faz a Constituição possuir sempre um conteúdo mínimo que não pode ser ignorado, dotando-a de eficácia plena a todo o momento e exigindo provimento jurisdicional que preserve, pelo menos enquanto não sobrevinda a legislação, seus valores essenciais, principalmente em se tratando de normas fundamentais.

É nesse ponto de preservação dos direitos fundamentais que o Direito Judicial autoriza aos órgãos jurisdicionais atuarem de forma a integrar a norma constitucional, numa ação substitutiva à lei, “o que redundará no redimensionamento da clássica divisão entre as funções estatais, tendo como desiderato final a preservação da própria razão de ser da organização estatal: o bem comum”[4].

Quanto à classificação, o Direito Judicial pode ser substitutivo, corretivo, concorrente ou ainda supressivo da lei. No direito judicial concorrente e supressivo, maiores problemas não há, pois se aceita pacificamente que possa haver a interpretação e aplicação da norma pelo legislador ou mesmo a interpretação mas não sua aplicação em vista da violação à Constituição. Já o direito judicial substitutivo da lei (não aplica a norma viciada, mas profere uma decisão que regula, sem violação ao princípio da igualdade, as situações por ela alcançadas) e o corretivo (aplica a norma viciada, ampliando o seu alcance às situações indevidamente excluídas) não têm essa aceitação unânime pela alegação de usurpação legislativa, o que não pode prevalecer, pois, dentre outros motivos mais abaixo explicitados, tais formas direcionam as normas constitucionais ao princípio da igualdade.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Vale uma importante observação: até este momento, todo o estudo de Emerson Garcia estava voltado os olhos para o caso concreto na aplicação do direito judicial, mas, como se disse no conceito inicial dado, o Direito Judicial também alcança ares abstrato. Com base nisso é que se pode dividir-se, quanto a sua perspectiva, em Direito Judicial em perspectiva concreta, preocupado com as decisões do caso a caso, e Direito Judicial em perspectiva abstrata, pelo que se fala em força normativa dos precedentes e generalização das individualidades.

A força normativa dos precedentes se identifica com o princípio do stare decisis americano, sistema esse baseado no case law em que a elaboração da norma individual ao caso concreto transcenderá à norma geral. E nesse tear os precedentes podem assumir tanto contornos declarativos quanto criativos, nestes consubstanciando manifestação mais do Direito Judicial substitutivo e corretivo, e naqueles, do Direito concorrente e supressivo. Paradoxalmente, contudo, parece que quanto mais o sistema jurídico é evoluído menos ele precisa de precedentes criativos, posto que os paradigmas já existentes são suficientes para a garantia dos direitos.

Emerson Garcia[5] aponta vantagens e desvantagens em relação aos precedentes. De positivo, tem-se a uniformização da atividade interpretativa do Direito, a preservação da segurança jurídica nas relações sociais e a consequente manutenção do princípio da igualdade. De outro lado, de negativo, tem-se o comprometimento do envolver social, pois sendo as decisões tomadas de “cima” descarta-se os escalões inferiores, que são os que justamente possuem maior contato com a coletividade. Porém, o mesmo autor logo depois retranca: “essa linha argumentativa, no entanto, é diluída na medida em que os pronunciamentos dos tribunais superiores costumam ser antecedidos por uma longa maturação da questão nas esferas inferiores, isto sem olvidar a possibilidade de serem revistos sempre que a evolução social o justifique”.

Neste momento, já se podem trazer demais destaques da realidade constitucional atual e que refletem no aqui denominado Direito Judicial Criativo, mormente em sua perspectiva abstrata. Defende-se como de necessária aplicação também em nosso país em virtude de os paradigmas já existentes não serem suficientes para a garantia dos direitos fundamentais. A repúdio dos que dizem que as teorias vêm do estrangeiro com realidades diversas às nossas, firme-se que os pressupostos filosóficos tendem à universalização naquilo que se propõe, baseados na história e no mundo empírico e humano-científico, pelo que até em contornos diferentes há possibilidade de se acharem pontos em comum. Muitos pontos em comum, aliás.

i.Como dito, é um direito judicial ainda em formação, em versão beta, para o futuro, com base na própria noção de constitucionalismo por vir, que internaliza toda evolução no Direito Constitucional ao logo do tempo, cortando seus descomedimentos e mais apropriado para uma nação nível alfa, para se referir a um país de estágio constitucional avançado;

ii.Jurisprudência como fonte imediata do direito, ao lado da Constituição Federal, leis e tratados internacionais de direitos humanos, o que leva à afirmação de que a jurisprudência também é a “lei” aplicada pelos juízes;

iii.Supera-se a noção desgastada, e dotada de certo preconceito conceitual, de ativismo judicial, dando uma nova vida aos estudos ao seu redor, principalmente naquilo que toca ao direito constitucional jurisprudencial – muito embora se deva registrar que a expressão “direito judicial” foi utilizada inicialmente por Prieto Sanchís de modo negativo também;

iv.Com a supressão da ideia de norma de eficácia limitada, devendo todas ser plenas, passa o Judiciário a ter relevante papel concretizador das normas fundamentais da Constituição, sendo importante nesse ponto a globalização e adaptação dos direitos fundamentais (cidadania) e da democracia – os superprincípios constitucionais – nela garantidos através de instrumentos como a mutação constitucional e a teoria transcendental dos motivos determinantes, ou mesmo pela aplicação da finalidade subjacente ao instituto com vista na expressão “a menos que”, derrotando-se um sentido nesse caso e fazendo nascer outro complementar;

v.Com isso, evita-se aquilo que Marcelo Neves[6] chamou de constitucionalização simbólica em seu aspecto negativo e positivo, quando o texto constitucional ou “não é suficientemente concretizado normativo-juridicamente de forma generalizada” ou “a atividade constituinte e a linguagem constitucional desempenham um relevante papel político-ideológico”, servindo apenas para, nos traços da legislação simbólica, confirmar valores sociais sem fornecer eficácia normativa, demonstrar a capacidade de ação do Estado mascarando a realidade com formas ideológicas (constitucionalização-álibe) e adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios. Indo contra, portanto, ao valor verdade do constitucionalismo do futuro, sendo certo que obstrui as transformações efetivas da sociedade devido “à discrepância entre a função hipertroficamente simbólica e a insuficiente concretização jurídica de diplomas constitucionais”.

vi.Tem-se como certo que a função normativa não é só do Legislativo. O aposentado Min. Eros Grau já dizia isso: “O Poder Legislativo não detém o monopólio da função normativa, mas apenas uma parcela dela, a função legislativa” (ADI 2.950-AgR, DJ 09/02/2007). Assim, ele possui parcela dela, a função legislativa, mas não o monopólio normativo, abrindo-se possibilidade de se dar efeitos normantes às decisões judiciais (produção normativa heterônoma), naquilo que falta para se garantir um direito constitucional fundamental, inclusive ampliando-o, nos casos de constitucionalidade ou inconstitucionalidade chapada;

vii.Poder-se-ia falar até em uma Teoria Geral do Direito Judicial (pragmático) com fim mesmo de guiar o Judiciário nessa tarefa concretizadora, donde se beberia dos fundamentos da Teoria Geral do Direito Constitucional;

viii.Entendimento a ser observado no sentido de a interpretação ser aberta à sociedade, pluralizando o debate e deixando-o mais democrático e justo, principalmente aos interessados e afetados pelas decisões judiciais. Os cidadãos são autores no seu direito, não mero destinatários. O art. 13, XVII, do RI/STF, traz algo nesse sentido, ao revelar a atribuição do Presidente do STF de convocar audiência pública para ouvir depoimento de pessoas com experiência e autoridade no assunto (argumentos de autoridade), não se resumindo ao âmbito abstrato do controle, seguramente, consoante se extrai da leitura do texto. Outro exemplo é a figura do amicus curiae;

ix.Visão contemporânea da separação funcional de Poder, com a coordenação entre eles para efetivação dos direitos constitucionais, interpenetrando-se uns aos outros e deixando de lado o complexo existencial de poder. A preeminência da função do Poder Judiciário está no fato de a Corte e os órgãos jurisdicionais julgarem a constitucionalidade de uma norma em acordo com os direitos fundamentais, o que faz da Lei Maior não ser apenas um anseio sem força obrigatória (Kelsen). Note-se: tal preeminência, contudo, não é pelo fato em si do ser da instituição “Poder Judiciário”, mas da função a ele encarregada de controle da constitucionalidade (noção de guardião da Constituição – Hans Kelsen, no sentido de manutenção do Estado de Direito, o Rechtsstaat), que poderia muito bem ter sido também oferecida, por opção política preponderante, ao Presidente (Executivo – Schimtt, a fortalecer a unidade política alemã da época do Reich, e.g., numa visão autoritária de uma duvidosa democracia) ou ao Parlamento (Legislativo – supremacia parlamentar no Canadá, e.g.). Por isso, defende-se neste estudo a função do controle de constitucionalidade, no Brasil inerente ao Poder Judiciário, caindo por terra críticas ao ativismo judicial (do Poder Judiciário), que não passa mais, na verdade, que ativismo constitucional (da Constituição), este fidedigno à legitimidade e força, por derradeiro;

x.Quanto especificamente ao controle de constitucionalidade, devemos focar no modelo de filosofia constitucional substancialista de Ronald Dworkin em contraposição ao procedimentalismo de Jürgen Habermas. Este modelo procedimentalista habermeriano, em breves palavras, defende a participação da sociedade para determinação do direito e estruturação da democracia, porém fazendo pouco caso do Judiciário nessa trajetória, ou seja, como mero revisor dos atos com um mínimo de interferência. Tal modelo, todavia – e isso já é um avanço de paradigma –, não vem grandemente influenciando os sistemas políticos atuais, à exceção da Comunidade Britânica em geral e do Canadá, onde, como citado, a última palavra acerca da constitucionalidade cabe ao Legislativo (num diálogo de jurisdição constitucional entre este e o Judiciário), em virtude mesmo de sua tradição parlamentar e da necessidade histórica de se ter uma conciliação política para, enfim, erigir sua Carta Canadense de Direitos e Liberdades, desvinculando-se da legislação inglesa. Até por isso foi assim. O substancialismo de Dworkin, à sua maneira, bem compatível com o modelo americano, nasce de uma “leitura moral da Constituição”, que nada mais é que o neopositivismo da união indissolúvel entre o direito e a moral, juntamente com toda carga valorativa e principiológica subjacente à Constituição. Vê-se, através dessa lente de caráter discursivo, o texto e contexto da Lei Máxima de uma nação;

xi.Distinção entre legitimidade popular formal e legitimidade popular substantiva (Democracia formal, fictícia, plebiscitária Vs. Democracia substantiva, substancialista): já se disse que os juízes, embora não tenham legitimidade de origem (própria do parlamentar pelo voto), o tem de exercício (adquirida, se preferir), pelo que controla a vontade do povo instada na lei pela própria vontade do povo instada na Constituição. De mais a mais, se disser que a legitimidade democrática popular vem somente do voto ter-se-á que repensar toda essa concepção, pois – e isso não é novidade – há enorme manipulação eleitoral, que inexoravelmente desvirtua a vontade popular. Ora, é uma falácia que mais está para o plano da teoria do que o da prática dizer que o povo é o titular do Poder e os seus representantes o exercem (democracia formal, fictícia, plebiscitária). Que democracia substantiva se poderia falar no caso brasileiro, onde apenas 11% da população confia em seus representantes?! Como haver democracia sem confiança, onde os ditos representantes ficam em última colocação [!] num ranking de credibilidade em que consta de sindicatos a bombeiros e o 2° grupo menos confiável (executivos de bancos) está 36 pontos à frente dos políticos?! Por causa desse divórcio consumado entre a vontade governada e a vontade governante (no plano mais da ficção de uma suposta paridade volitiva), como alternativa a evitar danos à cidadania preterida, Paulo Bonavides[7], citando Maria Arair Pinto Paiva, refere-se a espaços públicos, em contraposição ao estatal, como “auxiliar poderoso na construção dos sistemas participativos da democracia direta”, “[...] democracia que assume o status de direito da quarta geração, direito cuja universalidade e essencialidade compõem o novo ethos que o gênero humano, em sua irreprimível vocação para a liberdade, a igualdade e a justiça, toma por inspiração”. Assim sendo, “o teorema político da sociedade nacional contemporânea já não é tanto o da legalidade [...], senão o da constitucionalidade [...]”. Dar-se a marcha, a partir disso, para um grau superior de democracia e legitimidade cidadãs, passando-se de um direito estatal a um direito comunitário ou político-coletivo, em alternativa, como dito, à crise da representação política;

xii.Ultrapassa-se, outrossim, a democracia da maioria, pois focando-se no controle de controle de constitucionalidade tem-se um meio de proteção eficaz da minoria contra os atropelos da maioria (Kelsen) – a decisão pretensamente democrática não pode tolher liberdades alheias. O guardião da Constituição garante o respeito, portanto, a todas as parcelas da sociedade e ainda fortifica a federação, ao ver inconstitucionalidades por usurpação de Poder, alcançando legitimidade democrática seja por plausíveis argumentações plurais e participativas, seja por ter como norte a conformidade constitucional valorativa e histórica. Se quiserem, até se compensando a falta formal do consagro popular através do voto;

xiii.A democracia substantiva ou substancialista, a anos-luz de significar necessariamente voto ou princípio majoritário de representação, faz surgir o papel ativo do judiciário (rectius: papel ativo da Constituição, em última análise, na verdade);

xiv.Em vista do sobredito, falar em Ditadura do Judiciário é um contrassenso lógico-jurídico-político-social-filosófico-histórico-cultural..., pois o que se trabalha não é com o Poder, mas a função que ele exerce de proteção à Constituição, necessária até para a sobrevivência da sociedade e que, repita-se sem cansar, por ser necessário, poderia ter sido atribuída (essa função) a outrem, por opção político-cultural. A atividade judicial-constitucional supre falhas de todos os Poderes e, de certa forma, também pode ser compartilhada, na medida em que os outros também podem, dentro das proposições clássicas para os quais foram criados tipicamente ou atipicamente (legislar, administrar e julgar, em concorrência recíproca), trazer esse papel fundamental aos valores constitucionais, disseminando-os responsavelmente;

xv.Por isso, ganha sentido afirmar juntamente com Peter Häberle (in: Zeit und Verfassung) que “o direito processual constitucional torna-se parte do direito de participação democrática. A interpretação constitucional realizada pelos juízes pode-se tornar, correspondentemente, mais elástica e ampliativa sem que se deva ou possa chegar a uma identidade de posições com a interpretação do legislador”. A vontade objetiva da Constituição (Wille zur Verfassung) (que faz preponderar o poder judiciário) acaba por prevalecer sobre a vontade subjetiva do legislador (que faz preponderar o poder legislativo), esta mais próxima de uma vontade de poder (Wille zur Macht). Nesse contexto, a Justiça não é um mero Poder instituído (passivo, estático), senão instituinte (ativo, dinâmico), principalmente em relação aos direitos fundamentais – note-se, chamou-se de Justiça instituinte e não “Poder Judiciário instituinte”, sendo aquela a equação complexa entre este, a força normativo-vinculante da Constituição e a função encabeçada pelos superprincípios constitucionais (expressão de José Afonso da Silva[8]) – princípio da constitucionalidade (controle de constitucionalidade e de conformidade do sistema jurídico-normativo), princípio do Estado Constitucional de Direito (Verfassungsstaat) e princípio da proteção dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana;

xvi.O pensamento de Peter Häberle tem influenciado o desenvolvimento do Direito Constitucional, principalmente aqui no Brasil pelas decisões recentes encontradas na jurisprudência do STF, o que assaz sintoniza o país no âmbito do Direito Judicial: a) abertura do processo constitucional a uma maior pluralidade de sujeitos – os intérpretes em sentido amplo da Constituição numa “comunicação entre norma e fato” (Kommunikation zwischen Norm und Sachverhalt) –, através dos amici curiae (com possibilidade hoje de até fazerem sustentação oral) e das audiências públicas (art. 9º da Lei 9.868/99), propiciando maior legitimidade democrática às decisões proferidas, sendo relevante ainda destacar que tais audiências devem ser transmitidas pela TV Justiça e pela Rádio Justiça para conhecimento geral e imediato (art. 154 do RI/STF); b) o pensamento das possibilidades ou indagativo (fragendes Denken), pelo que se revela que a Constituição não é norma fechada, mas sim um projeto (Entwurf) em contínuo desenvolvimento, tornando-se visível, segundo Häberle, “uma teoria constitucional das alternativas” a converter-se também em uma “teoria constitucional da tolerância”. Isso permite as perspectivas de novas realidades, numa “adaptação às necessidades do tempo de uma visão normativa”. No âmbito do STF, vale citar a sua influência na ADI 1.289; c) dos seus estudos, retiram-se reflexões sobre a relação entre tempo e Constituição (Zeit und Verfassung) e, desse modo, sobre o fenômeno da mutação constitucional (Verfassungswandel). Afirma Häberle que não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada, colocando-a em seu devido tempo ou integrando-a na realidade pública. É o que ele passa a chamar conceitualmente de pós-compreensão (Nachverständnis), pelo que se compreende supervenientemente uma dada norma. Por outras palavras, é dizer que a norma, confrontada com novas experiências, transforma-se necessariamente em uma outra norma, por uma interpretação constitucional aberta situada num processo dialético, sendo mais defensável ainda que ocorra exatamente em matéria de defesa dos direitos fundamentais; d) em uma visão de Häberle de Estado Constitucional cooperativo, no contexto atual de abertura a ordens jurídicas supranacionais de proteção de direitos humanos e fundamentais, destaca-se sua influência no âmbito do Supremo a partir do julgamento dos Recursos Extraordinários 349.703 (relator para o acórdão ministro Gilmar Mendes) e 466.343 (relator ministro Cezar Peluso), defensável em conta do art. 4º, parágrafo único, e art. 5º, §§ 2º, 3º e 4º da CF/88, pelo que adotou-se a tese da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos com eficácia jurídica paralisante de disciplina normativa infraconstitucional conflitante[9];

xvii.De mais a mais, a Constituição não é só de um país, mas de uma nação globalizada, mundializada, podendo sofrer, até mesmo, intervenções de Tribunais Internacionais em caso de violação a direitos humanos, modelo hoje desenvolvido na figura do transconstitucionalismo, em que o direito constitucional entra em contato com outros sistemas, numa relação transcendental permanente, contribuindo para tanto a expansão da jurisdição constitucional e o fortalecimento dos direitos da pessoa humana. A proposta que vem se afirmando é que as ordens estatais, internacionais e supranacionais dialoguem e entrosem-se.

De tudo isso, observa-se que um novo modo de Direito mais cidadão e democrático surge: o Direito Judicial Criativo, focado que é na prática normativo-jurisprudencial criativa, por certo fortalecido no Brasil em sua perspectiva concreta e principalmente abstrata, nas novas tendências encampadas tanto pelo ordenamento jurídico positivado (v.g., súmula vinculante, repercussão geral, julgamento de recurso repetitivo), quanto pelo STF em sede de controle de constitucionalidade, com vistas na efetivação plena da Constituição.

Fiquemos, ao final, com o mesmo epílogo do texto de Emerson Garcia[10], por ser assaz pertinente:

Ainda que sejam tortuosos os percursos metodológicos conducentes à fundamentação do Direito Judicial, é inegável a influência projetada, no meio social, pelas decisões dos órgãos jurisdicionais, em especial dos tribunais superiores. Não é exagero afirmar que materializam o direito vivo, renovando sua essência a cada vaga de mutação social. O estudo do Direito Judicial estimula a identificação de suas virtualidades e permite a idealização de adequados mecanismos de controle, pois, na conhecida sentença de Lord Acton, “todo o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Um breve tracejar das potencialidades dessa temática, ainda que acompanhado de imperfeições e incontáveis omissões, foi o nosso objetivo.


[1] GARCIA, Emerson. Direito Judicial e Teoria da Constituição. Biblioteca TJ/RJ, Rio de Janeiro, 28 jul. 2008. Disponível em: <http://cgj.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=2da5f8f6-8764-4584-9c41-a4268b1595c8&groupId=10136>. Acesso em: 29 dez. 2011.

[2] GARCIA, Emerson. Op. cit.

[3] Idem.

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

[7] BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência; por uma Nova Hermenêutica; por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001.

[8] SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular (estudos sobre a Constituição). São Paulo: Malheiros, 2000.

[9] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. O pensamento de Peter Häberle na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal do Brasil. Revista Iberoamericana de Derecho Procesal Constitucional, Argentina, n. 12, julio-diciembre 2009, pp. 121-146. Disponível em: <http://www.iidpc.org/revistas/12/pdf/137_162.pdf>. Acesso em: 02 jan. 2012.

[10] Op. cit.

Sobre o autor
Ricardo Diego Nunes Pereira

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Pós-graduado em Direito do Estado (Constitucional, Administrativo e Tributário). Foi secretário-geral da Comissão de Combate ao Aviltamento de Honorários Advocatícios da OAB/SE. Autor de artigos e livros de interesse jurídico. Autor do livro “Direito Judicial Criativo: ativismo constitucional e justiça instituinte”, com menção no Library of Congress, nos EUA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Ricardo Diego Nunes. Direito judicial criativo:: para uma teoria prática do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4130, 22 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30593. Acesso em: 22 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!