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Quando se trata de concessionários de serviços públicos, é lícito ao fornecedor interromper o serviço se usuário deixa de pagar?

Agenda 29/11/2014 às 09:36

Apresenta-se uma distinção entre interrupção e restrição no fornecimento de serviço público essencial, porquanto a segunda não inviabiliza o acesso ao serviço, diferentemente da primeira.

1. INTRODUÇÃO

O estudo versa saber se é lícito ao fornecedor (quando se trata de concessionários de serviços públicos) interromper o serviço (de água ou energia, por exemplo) quando o usuário deixa de pagar o preço que é devido por esse fornecimento, à luz das diretrizes no cenário jurídico brasileiro.

A questão já ensejou diversos debates doutrinários, tendo o STJ se posicionado sobre o tema, conforme se verificará no corpo do presente trabalho.


 2. DESENVOLVIMENTO

O regime da concessão de serviços públicos está previsto no art. 175, da Constituição Federal, que incumbe ao Poder Público a prestação dos serviços públicos, seja de forma direta ou por meio de concessão ou permissão (nesses casos sempre por licitação), tudo na forma da lei.

A própria Constituição Federal dá os contornos da lei, sendo a Lei Federal nº. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 que regulamenta a matéria.

O serviço público quando prestado por particulares é sempre sujeito à fiscalização do Poder Público e deve ser adequado, satisfazendo as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na prestação e modicidade tarifária.

O próprio art. 6º, da Lei nº. 8.987/95, ao versar sobre a continuidade dos serviços traz seguinte exceção à regra geral:

Art. 6º.  [...];

[...];

§ 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,

II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.

Os serviços públicos de energia elétrica vieram disciplinados na Lei nº. 9.427, de 26 de dezembro de 1996, sendo a suspensão rapidamente mencionada no art. 17 da referida Lei.

Pela dicção legal do art. 6º, da Lei nº. 8.987/95 é possível verificar que o serviço público pode ser interrompido por inadimplência do usuário.

Contudo, três correntes doutrinárias advieram da questão da possibilidade ou não de interrupção dos serviços por inadimplemento do usuário.

A primeira delas defende que é possível a interrupção porque a própria lei assim admite. Sustenta-se no princípio da isonomia, visto que quem não paga não pode se beneficiar do serviço prestado, mesmo porque a gratuidade não se presume.

A segunda corrente entende não ser possível a interrupção dos serviços porque fere a dignidade da pessoa humana, além de ferir os arts. 22 e 42 do Código de Defesa do Consumidor, já que o prestador dos serviços pode cobrar dos usuários de outra forma, sem a sua interrupção.

Diante desse panorama surgiu uma terceira corrente defendendo que os serviços compulsórios (os remunerados com tributos) não podem ser interrompidos ainda que haja inadimplemento pelo usuário, vez que já existem instrumentos processuais próprios para a cobrança de tributos. Os serviços facultativos (que são remunerados por tarifas) podem.

A questão é interessante, visto que ao mesmo tempo em que o Estado tem a obrigação de prestar os serviços públicos (art. 175, CF/88) de forma contínua, esse mesmo Estado deve observar o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF/88), eis que fundamento da República, bem como à defesa do consumidor (art. 5º, inciso XXXII, da CF/88).

Nesta senda, a pretensão dos consumidores se lastreava, em regra, na tese de que a interrupção do serviço configurava exercício da autotutela vedada pelo ordenamento jurídico, expondo-o em situação constrangedora, além de vulnerar o princípio da continuidade do serviço público.

Durante algum tempo a jurisprudência predominante foi favorável aos consumidores, sobretudo porque o art. 22, do CDC determinava que a prestação dos serviços públicos essenciais fosse contínua e o art. 42, do mesmo Código, ao tratar da cobrança de dívidas, impede a exposição do consumidor inadimplente ao ridículo, bem como a ameaça ou qualquer constrangimento para compeli-lo a quitar o débito. Nesse sentido cabe citar o RESP 201.112/SC (sobre fornecimento de água) e o AGRG no RESP 298.017/MG (sobre fornecimento de energia elétrica).

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A bem da verdade, a Lei nº. 8.987/95 é posterior ao Código de Defesa do Consumidor (Lei nº. 8.078/90) e previu a possibilidade de interrupção do serviço, sendo legítima essa interrupção no caso de inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade, exigindo apenas que houvesse comunicação prévia.

Assim, a jurisprudência passou a trilhar esse caminho, obtemperando as disposições do CDC com a Lei das Concessões, cabendo citar o julgamento da primeira seção do STJ no RESP 363.943/MG. Cita-se ainda o RESP 525.500/AL, AGRG no AG 497.589/SP e RESP 888.288/RS.

O STJ também entendeu que é legal a suspensão do serviço de fornecimento de energia elétrica em decorrência do inadimplemento do consumidor quando este for pessoa jurídica de direito público, com a preservação, apenas, das unidades e serviços públicos cuja paralisação é inadmissível (ERESP 721.119/RS, RESP 734.440/RN e AGRG na SS 1.764/PB). São, pois, legais e legítimos o corte de energia elétrica para as praças, ruas, ginásios de esportes, repartições públicas etc. Não seria possível o corte de energia elétrica para os serviços essenciais e os que coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, em analogia aos arts. 10 e 11, parágrafo único, da Lei nº. 7.783, de 28 de junho de 1989 (vulgarmente conhecida como a “Lei de Greve”).

Em determinado momento o Ministro Luiz Fux, quando ainda atuava no STJ, observou que a aplicação indiscriminada da Lei nº. 8.987/95, sem as devidas cautelas e diante das particularidades de cada caso concreto poderia ferir o princípio da dignidade da pessoa humana, conforme crítica proferida no RESP 604.363/CE, de sua relatoria, bem como o AGRG no RESP 963.990/SC.

Concomitante a isso, cabe dizer que a inovação trazida pela Lei nº. 11.445, de 5 de janeiro de 2007 é benvinda.

A Lei n° 11.445/2007, concebida para regular a prestação de serviços no setor saneamento básico, dispõe no art. 40 acerca das hipóteses de interrupção do serviço, contemplando, no inciso V, o inadimplemento do usuário do serviço de abastecimento de água quanto ao pagamento das tarifas, após ter sido formalmente notificado, na linha do que já disciplinado pela Lei de Concessões.

No § 3º, do art. 40, porém, estabelece o seguinte:

Art. 40. [...];

[...]

§ 3º A interrupção ou a restrição do fornecimento de água por inadimplência a estabelecimentos de saúde, a instituições educacionais e de internação coletiva de pessoas e a usuário residencial de baixa renda beneficiário de tarifa social deverá obedecer a prazos e critérios que preservem condições mínimas de manutenção da saúde das pessoas atingidas.

Diferentemente da Lei de Concessões e do CDC, a Lei n° 11.445/2007 contempla a interrupção e a restrição do fornecimento do serviço de abastecimento de água, do que se depreende serem essencialmente distintos. A interrupção, com efeito, é a privação do serviço durante certo período de tempo, durante o qual o usuário deixa de usufruir da prestação a cargo da concessionária. Segundo a Lei nº 11.445/2007, poderá haver a interrupção do serviço de abastecimento de água a) nas situações de emergência que atinjam a segurança de pessoas e bens; b) quando houver necessidade de efetuar reparos, modificações ou melhorias de qualquer natureza nos sistemas; c) existindo negativa do usuário em permitir a instalação de dispositivo de leitura de água consumida, após ter sido previamente notificado a respeito; d) no caso de manipulação indevida de qualquer tubulação, medidor ou outra instalação do prestador, por parte do usuário; e e) na hipótese de inadimplemento do usuário do serviço de abastecimento de água, do pagamento das tarifas, após ter sido formalmente notificado.

Embora o último caso seja o de inadimplemento do usuário, nem sempre haverá a interrupção do serviço, pois se o consumidor em débito com o pagamento da tarifa for estabelecimento de saúde, instituição educacional e de internação coletiva de pessoas ou usuário residencial de baixa renda beneficiário de tarifa social, não poderá haver a cessação do serviço, mas apenas restringida a sua prestação, em ordem a obedecer a prazos e critérios que preservem condições mínimas de manutenção da saúde das pessoas atingidas. Eis, no ponto, a distinção entre interrupção e restrição, porquanto a segunda não inviabiliza o acesso ao serviço público, diferentemente da primeira.

Nesse contexto, tendo-se como certo que uma existência digna abrange mais do que a mera sobrevivência física, situando-se além do limite da pobreza absoluta, pois a dignidade humana apenas estará assegurada quando for possível uma existência que permita a plena fruição dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade, conforme cita Ingo Wolfgang Sarlet[1], a possibilidade, em tese, de interrupção do fornecimento de serviço público essencial, sem, portanto, assegurar minimamente a preservação das condições de saúde e bem-estar, revela-se contrária à ordem constitucional.

Poder-se-ia falar até em um direito fundamental a todos os serviços públicos essenciais, na lição de Ingo Sarlet:

“Com efeito, considerando-se que a prestação de serviços públicos, especialmente os enquadráveis como essenciais (sendo, de qualquer sorte, discutível a existência de serviço não essencial no contexto do Estado social e democrático de Direito na sua feição atual) diz diretamente com a efetiva fruição dos direitos fundamentais na sua dupla dimensão negativa e positiva (basta recordar os exemplos da segurança pública, do acesso à justiça, do saneamento básico, do fornecimento de energia, bem como das prestações em matéria de educação e de saúde, entre outros) no mínimo haveria de se reconhecer um direito fundamental a todos os serviços públicos essenciais”[2].

Verifica-se que a Lei nº. 11.445/2007 é mais consentânea com a necessidade de se preservar, minimamente, a dignidade dos usuários em débito com a concessionária do serviço. Embora também autorize a interrupção dos serviços de saneamento básico nas hipóteses mencionadas no art. 40, elege situações nas quais, tendo por parâmetro o interesse público ou a condição social do devedor, não autoriza a interrupção do serviço, permitindo somente a restrição no fornecimento.

A Lei do Saneamento Básico alberga condições mínimas de manutenção da saúde das pessoas atingidas quando o consumidor inadimplente for estabelecimento de saúde (hospitais, clínicas médicas, odontológicas, fisioterápicas, farmácias, públicas ou não, dentre outras), instituição educacional (escolas, universidades, centros acadêmicos, cursos, públicos ou não, dentre outros), instituição de internação coletiva de pessoas (estabelecimentos penais, tais como penitenciárias, colônias agrícolas, industriais ou similares, casas de albergado, centros de observação, hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico e cadeias públicas, na forma dos artigos 82 a 104 da Lei de Execuções Penais, além das unidades previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente) e usuário residencial de baixa renda beneficiário de tarifa social.

A inovação tem por escopo preservar o núcleo essencial do direito à saúde (inequivocamente, uma das mais importantes vertentes do princípio da dignidade humana), pois, como afirmado, não se concebe a supressão do abastecimento de água pela falta de pagamento da tarifa à luz do ordenamento constitucional.

Nessa linha, pode-se afirmar que a jurisprudência do STJ seguiu o mesmo caminho, admitindo, regra geral, a interrupção dos serviços públicos por inadimplemento dos usuários, mormente após a Lei nº. 8.987/95. Contudo, a interrupção não será admitida nas seguintes hipóteses excepcionais: a) se afetar unidades públicas essenciais ou interesses inadiáveis da coletividade (RESP 845.982); b) dívidas pretéritas (RESP 59.058 e AGRG no AG 1.227.262/RJ); c) fraude no medidora apurada unilateralmente pela concessionária (RESP 101.624) e d) situações excepcionais que violariam o princípio da dignidade da pessoa humana (AG no RESP 46.612).


3. CONCLUSÃO

Pelo exposto, tem-se que a interrupção do fornecimento de serviços públicos essenciais ao usuário/consumidor nos casos de inadimplemento da obrigação consubstanciada no pagamento da tarifa (como é o caso da água, esgoto e energia elétrica) devida ao concessionário, regra geral, é permitida pela lei e pela jurisprudência. Contudo, há exceções que devem ser observadas, dentre elas o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, mesmo que se entenda legítima a restrição, por lei ordinária, ao fornecimento desses serviços, em cotejo com a preservação da higidez do sistema das concessões de serviços públicos e a isonomia no tratamento dispensado aos usuários que pagam regularmente as tarifas, sempre haverá de se assegurar as condições mínimas para sobrevivência digna, dentre outros requisitos construídos pela jurisprudência do STJ.


4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 16 dez. 2013.

BRASIL. Lei n. 7.783, de 28 de junho de 1989. Dispõe sobre o exercício do direito de greve, define as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L7783.htm>. Acesso em: 16 dez. 2013.

BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L8078.htm>. Acesso em: 16 dez. 2013.

BRASIL. Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L8987.htm>. Acesso em: 16 dez. 2013.

BRASIL. Lei n. 9.427, de 26 de dezembro de 1996. Institui a Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, disciplina o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9427.htm>. Acesso em: 16 dez. 2013.

BRASIL. Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico; altera as Leis nos 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.036, de 11 de maio de 1990, 8.666, de 21 de junho de 1993, 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; revoga a Lei no 6.528, de 11 de maio de 1978; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L11445.htm>. Acesso em: 16 dez. 2013.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

STJ. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 16 dez. 2013.


Notas

[1] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p. 342.

[2] Idem, p. 380-381.

Sobre o autor
Rafael Schreiber

Procurador do Município de Joinville (SC), MBA em Direito da Economia e da Empresa, formado em Direito pela FURB.<br><br><br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHREIBER, Rafael. Quando se trata de concessionários de serviços públicos, é lícito ao fornecedor interromper o serviço se usuário deixa de pagar?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4168, 29 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30750. Acesso em: 22 dez. 2024.

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