1 INTRODUÇÃO
Intenta-se discorrer a respeito de alguns traços culminantes da Constituição Republicana de 1891, analisando-lhe trajetória, contexto, vicissitudes e aplicabilidade, no afã de delinear ligeiras ponderações entre o legal e o real no importante contexto posterior à proclamação da República e ao fim da escravatura no Brasil.
2 DESENVOLVIMENTO
A proclamação da República em 1889 e abolição da escravatura no ano antecedente representaram o surgimento de uma alternativa excepcional ao Brasil. Cuidava-se da possibilidade de criar um regime fundado na soberania popular e no exercício pleno da cidadania, esta ampliada aos setores da população costumeiramente marginalizados dentro da sociedade ou simplesmente excluídos do jogo político (DORIGO; VICENTINO, 1999).
No entanto, deflagrou-se um acontecimento de relevante expressão nacional sem que alterações contundentes se manifestassem na prática, o que já era refletido logo no início do movimento que, chefiado pelos militares, sob a chefia de Deodoro da Fonseca, sem participação popular, resultou na eclosão republicana.
Revela-se emblemática, no ponto, como narra José Murilo de Carvalho em obra específica acerca do tema (2006), a afirmação de Aristides Lobo de que “o povo assistiu a tudo aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam, sinceramente, estar vendo uma parada”.
É verdade que a construção liberal em que se alicerçou a Constituição de 1891, inspirada no modelo norte-americano, rompeu com a ordem política estabelecida no país. De um sistema unitário e centralizador passava-se a um regime pautado pela autonomia das províncias e pela comunhão indissolúvel dos Estados, consolidando-se uma Federação. Igualmente, o modelo presidencial de governo que surgia, em contraposição à monarquia de sucessões dinásticas, traduzia um poder que se renovava periodicamente, restando abolidos os privilégios de nascimento, foros de nobreza e ordens honoríficas, bem como constitucionalizada a separação entre Estado e Igreja.
Contudo, as instituições afiguravam-se impotentes para romper a tradição, os costumes e a imaturidade cívica. O liberalismo foi utilizado pelos vitoriosos como objeto de consolidação do poder, no entanto, desvinculado da preocupação de ampliar-lhe as bases. A ordem constitucional positivamente estabelecida não encontrava eco na sociedade, sabido que a realidade e a organização social da jovem nação republicana ainda mantinham a essência do legado herdado. Nesse sentido:
[...] uma coisa foi a ordem constitucional formalmente estabelecida pela vontade da Assembleia Constituinte, onde se patenteara o primado da ideologia de elite da classe burguesa – que já recuara para posições comodamente conservadoras de sustentação de seus interesses – e outra cousa muito diferente, a realidade e a organização social da nação republicana, proveniente da crise do cativeiro e da derrubada das instituições imperiais [...] Entre a Constituição jurídica e a Constituição sociológica havia enorme distância; nesse espaço se cavara também o fosso social das oligarquias e se descera ao precipício político do sufrágio manipulado, que fazia a inautenticidade da participação do cidadão no ato soberano de eleição dos corpos representativos (ANDRADE; BONAVIDES, 1991, p.259-260).
Todas as dependências, influências e interesses cercavam o presidente, anulando a legalidade republicana e federativa consignada no texto constitucional. Com o instituto da intervenção federal e do estado de sítio, consagrava-se o absolutismo do Executivo, sobretudo no governo extremamente autoritário de Floriano Peixoto, possibilitando-se a supressão da autonomia dos Estados por simples ato do Presidente da República.
A lição registrada era que se mostrava impossível alterar a conjuntura vigente apenas mediante a edição de leis meramente codificadas, dissociadas, no todo, dos fatores reais imperantes no meio circundante. O resultado foi o desrespeito lamentável e corriqueiro a uma Constituição que difundia ideias e princípios que seus destinatários não logravam êxito em vivenciar.
Torna-se tranquilo perceber a incapacidade de a Constituição de 1891 alterar as contingências fáticas subjacentes quando se analisa a atuação das oligarquias estaduais, típicas da política do “café com leite”, que perdurou durante a Primeira República. É que não se pode falar de democracia liberal, de alternância do poder e de sucessão legitima de governantes quando se sabe que, em quatro décadas, um único partido paulista elegeu 14 governadores de São Paulo. De igual modo, é questionável a existência de uma comunhão federativa se um mesmo partido, utilizando-se das alianças oligárquicas clientelistas, elegeu quatro presidentes, em um autêntico feudalismo (ANDRADE; BONAVIDES, 1991).
Constata-se que o modelo de organização política instituído pela República mantinha-se apenas no papel, sem efeitos concretos. A imensa capacidade de pressão dos Estados mais fortes, que provocava um desequilíbrio no pacto federativo, reduzia a atuação das unidades provinciais mais fracas e concentrava o poder, de modo semelhante ao que se verificava no Império.
Em paralelo, uma classe de políticos considerava a ignorância e a incompetência dos analfabetos como a grande causa da corrupção eleitoral verificada durante todo o período histórico anterior. A proposição da vedação do voto dos analfabetos encetou a conquistar, então, apoio dos proprietários interessados em reduzir o número de votantes e a competitividade das eleições como forma de barateá-las sem correr riscos, em virtude do custo crescente de angariar elevado número de eleitores e das conhecidas formas obscuras que caracterizavam o processo eleitoral, marcado pelo coronelismo e pela prática clientelista de compra de votos e troca de favores (ANDRADE; BONAVIDES, 1991).
Nesse plano, são perceptíveis as razões de a Constituição Republicana de 1891 ter optado por eliminar a participação dos analfabetos, constante do texto de 1824, restringindo significativamente a atuação da sociedade na formação dos governos representativos e, consequentemente, esmagando o direito político de quase 90% do eleitorado.
Se a tendência dos países cuja democracia amadurecia era no sentido de ampliar os direitos de voto, isto é, de participação política, o Brasil, por outro lado, retroagia. Estima-se que, à época, apenas 0,8% de nossa população era capacitada legalmente a votar (CARVALHO, 2001).
A institucionalização do voto não secreto, direto, universal, mas proibido, expressamente, a mendigos, analfabetos e religiosos de ordens monásticas e, implicitamente, por conta da discriminação de gênero enraizada, às mulheres, consubstanciava a proibição de participação política a mais da metade da população. Além disso, o fato de ser descoberto tornava-o inteiramente manipulável pelos grandes proprietários rurais. Sob esse prisma, Daniel José Eduardo (2008, p.487) aduz que:
O fato de a República excluir grande parte da população do processo eleitoral, ao proibir o voto dos analfabetos, somado a isto a retirada da Constituição da obrigação do Estado de oferecer educação primária, demonstra as manobras políticas realizadas pelas elites com intuito de controlar quem poderia participar do processo eleitoral, e que o exercício da cidadania foi aprendido na prática.
Lima Barreto (1998, p.87) descreve a “república imaginária” em seu clássico “Os bruzundangas”, em que, com efeito, o autor já advertia que “de há muito os políticos práticos tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador”, qual seja o voto.
Diga-se, outrossim, que algumas mudanças, como a extinção do Poder Moderador, do Conselho de Estado, do Senado vitalício e a introdução do Federalismo, embora tivessem escopo democratizante de descentralização do poder, não vieram acompanhadas de uma expansão da cidadania política e resvalaram na formação de oligarquias cujos interesses individuais convergentes consolidaram uma prática política de implicações muito negativas, as quais repercutem hodiernamente.
As práticas eleitorais fraudulentas multiplicavam-se, as eleições eram, cada vez mais, compradas, e o voto dos eleitores era meramente simbólico ou fictício, devido à possibilidade de sua alteração pelas classes oligárquicas que pareciam perpetuar-se no poder.
Durante toda a Primeira República, de modo semelhante ao que se via em relação ao sistema eleitoral, os direito de liberdade, de propriedade e de manifestação submetiam-se ao poder dos coronéis. Num país predominantemente agrícola até 1930, o domínio exercido pelos grandes latifundiários, claramente, impedia a participação política ao negar os direitos civis. A lei e o poder do coronelismo imperavam, e o controle sobre seus súditos operava-se nos mais diversos segmentos da sociedade.
A justiça, controlada pelos agentes privados, na verdade, inexistia, e a lei, que deveria ser instrumento de igualdade, era utilizada ao alvedrio de grupos particulares, tornando-se objeto de castigo e perseguição contra inimigos, mas, ao mesmo tempo, de agrado e benevolências para com os aliados. Desse modo, inviabilizavam-se as condições idôneas ao exercício dos direitos dos cidadãos. Neste particular, Daniel Sarmento (2012, p. 111 e 114) apregoa:
Em suma, tratava-se de uma Constituição perfeitamente liberal, bastante comprometida, no seu texto, com o Estado de Direito. Na prática, porém, a vida constitucional na República Velha esteve muito distante do liberalismo, marcada pelo coronelismo, pela fraude eleitoral e pelo arbítrio dos governos [...] Num balanço geral, pode-se dizer que a Constituição de 1891 teve pouquíssima efetividade. Entre o país constitucional – liberal e democrático – e o país real – autoritário e oligárquico –, manteve-se sempre um abismo intransponível.
O choque entre forma e conteúdo ocasionou, bem se vê, a inefetividade do texto de 1891, inidôneo, seja por vício, seja por desinteresse, para implantar, verdadeiramente, as instituições e os valores do liberalismo, cujos influxos a Constituição Republicana pôs-se a propugnar.
3 CONCLUSÃO
A promulgação da Constituição de 1891, após a proclamação da República e a abolição da escravatura, ensejou o surgimento de uma alternativa formidável a um Brasil, até então, avesso aos valores liberais e moderados advindos do estrangeiro, sobretudo dos Estados Unidos.
Sem embargo, a inidoneidade de as proclamações de direitos permitirem a realização de seus intentos sem que o poder político e a sociedade harmonizem-se com tais disposições gerou a inefetividade da própria Lei Maior, repleta de idealismos e utopias que o Brasil real ainda se mantinha longe de alcançar.
4 REFERENCIAL TEÓRICO
ANDRADE, Paes de; BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. 3ª ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1991.
BARRETO, Lima. Os bruzundangas. Rio Grande do Sul: L&PM Editores, 1998.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O Longo Caminho. São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 2001.
_________________________. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
DORIGO, Gianpaolo. VICENTINO, Cláudio. História Geral e do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Editora Scipione.
EDUARDO, Daniel José. Ernani Gomes de Oliveira e Silva: um falsário a “serviço” da cidadania. In: RIBEIRO, Gladys Sabina (Org.). Brasileiros e cidadãos: modernidade política 1822-1930. São Paulo: Alameda, 2008.
NETO, Cláudio Pereira de Souza; Sarmento, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012.