SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O princípio da anualidade eleitoral. 3. Precedentes do Supremo Tribunal Federal envolvendo o princípio da anualidade eleitoral. 3.1. Ações Diretas de Inconstitucionalidade no 733 e no 718. 3.2. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 354. 3.3. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 3.345. 3.4. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 3.685. 3.5. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 3.741. 3.6. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4.307. 3.7. Outras decisões do Supremo Tribunal Federal. Conclusão. 5. Referências
RESUMO: O presente trabalho aborda de forma simples e objetiva o princípio da anualidade eleitoral, previsto no art. 16 da Constituição Federal de 1988, segundo o qual, “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”, fazendo uma abordagem doutrinária sobre o princípio bem como o tratamento dado pelo Supremo Tribunal Federal ao tema, com a sistematização das mais importantes decisões da Corte no que toca ao princípio da anualidade eleitoral.
PALAVRAS-CHAVES: Direito Constitucional; Direito Eleitoral; Processo Eleitoral; Princípio da anualidade eleitoral; Supremo Tribunal Federal.
1.Introdução
O princípio da anualidade eleitoral ou, como alguns preferem, princípio da anterioridade eleitoral, que está expresso no art. 16 da Constituição Federal de 1988, segundo o qual, “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.”
O assunto aqui tratado versa sobre um tema de grande importância sobretudo para a manutenção e o fortalecimento do regime democrático, uma vez que constitui uma garantia dos cidadãos, tanto eleitores quanto candidatos e dos partidos políticos, pois visa impedir mudanças casuísticas no processo eleitoral, exigindo-se uma predeterminação das regras para a disputa eleitoral com um ano de antecedência.
O presente artigo busca fazer uma análise sobre o conceito e aspectos doutrinários do princípio da anualidade eleitoral bem como uma sistematização das principais decisões do Supremo Tribunal Federal que trataram sobre o tema.
2.O princípio da anualidade eleitoral
O princípio da anualidade eleitoral atualmente está previsto no art. 16 da Constituição Federal de 1988, segundo o qual, com a alteração promovida pela Emenda Constitucional no 4/1993, “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.”
Dessa forma, toda lei que alterar o processo eleitoral para que possa ter eficácia, deverá ter sido publicada com antecedência de 1 (um) ano da eleição.
Marcos Ramayana[1] discorre acerca do princípio da anualidade eleitoral afirmando que “toda lei que alterar o processo eleitoral (alistamento, votação, apuração e diplomação) será publicada um ano antes da data da eleição”.
Vale ressaltar que o Tribunal Superior Eleitoral, conforme os arts. 1o, parágrafo único, e 23, inciso IX, do Código Eleitoral e 105 da Lei no 9.504/1997, possui o poder de regulamentar as eleições por meio de resoluções que devem ser expedidas até o dia 5 de março do ano da eleição.
Assim, sendo o Tribunal Superior Eleitoral o detentor do poder normativo para regulamentar as eleições, não se submete ao princípio, uma vez que não inova o ordenamento, mas tão somente exerce o poder de regulamentar as eleições através de suas resoluções e com fundamento nas leis vigentes que, para terem eficácia, devem ter sido publicadas com mais de 1 (um) ano de antecedência do pleito.
Em sua redação original, o art. 16 da Constituição Federal dispunha que “a lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua promulgação”. A fim de sanar dúvidas quanto a vigência da lei a ser considerada, o Constituinte Reformador promoveu alteração do dispositivo.
Com a alteração promovida pela Emenda Constitucional no 04/1993, passou-se a explicitar que a lei entrará em vigor na data da sua publicação mas não terá eficácia nas eleições que ocorram até um ano da data de sua vigência.
O objetivo do princípio é impedir alterações casuísticas e inoportunas no processo eleitoral, capazes de ferir a igualdade de condições dos participantes do pleito eleitoral, consagrando a segurança jurídica para realização das eleições.
A segurança jurídica é ressaltada pelo jurista Djalma Pinto[2] em sua obra de Direito Eleitoral nos seguintes termos:
A segurança das normas que disciplinam a disputa pelo poder é fator fundamental para a preservação da democracia. Não devem essas normas ficar ao sabor das maiorias, eventualmente constituídas, sempre ávidas pela produção de texto legal que atenda a suas conveniências em determinado pleito.
No Brasil existe uma excessiva elaboração de leis que alteram ou afetam de alguma forma o processo eleitoral, gerando incertezas quanto as normas aplicáveis a cada eleição. Como bem pontua Djalma Pinto[3], “a compulsão legislativa, que se expressa na incessante elaboração de leis destinadas à permanente modificação do processo eleitoral, provoca intranquilidade e eleva perigosamente as tensões inerentes às disputas pelo poder”.
O art. 16 da Constituição Federal de 1988 mostra a preocupação com a estabilidade e a lealdade do devido processo eleitoral, impedindo que se mudem as regras do jogo que já está em andamento, prática comum em regimes autoritários.
Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco[4] em sua obra Curso de Direito Constitucional ressaltam a importância do princípio da anualidade eleitoral nos seguintes termos:
Assim, afigura-se imperativo que o processo eleitoral seja posto a salvo de alterações por parte do legislador ou mesmo da Justiça Eleitoral, devendo qualquer alteração, para afetar as eleições vindouras, ser introduzida em período anterior a um ano do prélio eleitoral.
A constante alteração do processo eleitoral, de acordo com as conveniências das maiorias, traduz até mesmo um risco à democracia, daí a necessidade e a importância do princípio da anualidade eleitoral, devendo os operadores do direito serem diligentes e o Poder Judiciário aplicá-lo de forma exemplar sempre que provocado.
Questão da maior importância diz respeito ao conceito de processo eleitoral, surgindo grandes divergências doutrinárias e jurisprudenciais no que toca a melhor interpretação a ser dada ao termo.
Segundo Marcos Ramayana[5] em sua obra de Direito Eleitoral, quando discorre acerca da expressão “processo eleitoral”, diz que “no fundo, trata-se de conceito vago, que a doutrina e jurisprudência apontam como sedimentado em fases, a saber: alistamento, votação, apuração e diplomação”.
O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o tema em algumas oportunidades, possuindo uma vasta jurisprudência sobre o art. 16 da Constituição Federal de 1988.
Um exemplo foi o julgamento da ADIN 354 que questionava o art. 2o da Lei no 8.037/90, publicada no dia 25 de maio de 1990 e que alterava os arts. 176 e 177 do Código Eleitoral (procedimento de apuração de votos), ocasionando a dúvida quanto a aplicação das mudanças nas eleições de 1990. Nesse caso, por seis votos a cinco, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que as inovações poderiam ser aplicadas nas eleições de 1990, visto que não se estava alterando o processo eleitoral, por seu uma norma que não quebrava a igualdade de participação de partidos e candidatos no processo eleitoral.
Marcos Ramayana[6] sintetiza processo eleitoral da seguinte forma:
Em resumo: inicia-se o processo eleitoral com a escolha pelos partidos políticos dos seus pré-candidatos. Deve-se entender por processo eleitoral os atos que se refletem, ou de alguma forma se projetam no pleito eleitoral, abrangendo as coligações, convenções, registro de candidatos, propaganda política eleitoral, votação, apuração e diplomação.
O processo eleitoral é um conjunto de atos que objetivam colher e transmitir a vontade do povo, sendo o princípio da anualidade eleitoral uma importante ferramenta para impedir mudanças no processo por alterações inseridas de forma casuística e comprometedoras da igualdade de participação tanto de candidatos quanto de partidos políticos.
Portanto, normas que possam afetar a igualdade de condições entre candidatos e partidos, desde a escolha de candidatos pelos partidos políticos até a diplomação de eleitos pode constituir em norma que afete o processo eleitoral, estando sujeita ao princípio da anualidade eleitoral.
3.Precedentes do Supremo Tribunal Federal envolvendo o princípio da anualidade eleitoral
Como dito, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou várias vezes sobre o princípio da anualidade eleitoral previsto no art. 16 da Constituição Federal de 1988, possuindo uma sólida jurisprudência sobre o tema.
Na década de 1990 o Supremo Tribunal Federal se manifestou através do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade no 733, 718 e 354, firmando o entendimento, de modo geral, de que o termo “processo eleitoral” previsto no art. 16 da Constituição Federal de 1988 diz respeito as normas de direito eleitoral de competência privativa da União, não fazendo distinção entre normas instrumentais e materiais, além de firmar o posicionamento de que seria o complexo de atos que visam a receber e transmitir a vontade do povo, sendo o princípio da anualidade eleitoral de extrema importância para evitar “a utilização abusiva ou casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação e de deformação do processo eleitoral”[7].
Já no ano 2005 o Supremo Tribunal Federal voltou a tratar sobre o princípio da anualidade eleitoral ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade no 3.345 que questionava a aplicação de normas que definiram os critérios de proporcionalidade para fixação do número de vereadores nos Municípios.
Para tornar o presente artigo mais didático, tratarei de forma individualizada os posicionamentos do Supremo Tribunal Federal nas principais oportunidades que teve para se manifestar sobreo o princípio da anualidade eleitoral.
3.1. Ações Diretas de Inconstitucionalidade no 733 e no 718
As Ações Diretas de Inconstitucionalidade no 733 e no 718 se voltaram contra a criação de municípios, mais precisamente em ano eleitoral. Na ADI 733 firmou-se o entendimento de que lei estadual que cria Município não altera o processo eleitoral, não sendo necessário a submissão ao princípio da anualidade eleitoral.
Na ADI 718 o Supremo Tribunal Federal mais uma vez determinou que a criação de Município não diz respeito a norma de processo eleitoral, não se submetendo ao princípio da anualidade.
O julgamento da ADI 718 foi sintetizado na obra A Constituição e o Supremo[8] da seguinte forma:
Município: criação em ano de eleições municipais: não incidência do art. 16 da CF. No contexto normativo do art. 16, CF – que impõe a vacatio de um ano às leis que o alterem – processo eleitoral é parte de um sistema de normas mais extenso, o Direito Eleitoral, matéria reservada privativamente à competência legislativa da União; logo, no sistema da Constituição de 1988, onde as normas gerais de alçada complementar, e a lei específica de criação de municípios foi confiada aos Estados, o exercício dessa competência estadual explícita manifestamente não altera o processo eleitoral, que é coisa diversa e integralmente da competência legislativa federal. (ADI 718, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 5-11-1998, Plenário, DJ de 18-12-1998). No mesmo sentido: ADI 733, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 17-6-1992, Plenário, DJ de 16-6-1995.
Entenderam os Ministros que as normas de Direito Eleitoral, assim como as normas de processo eleitoral, seriam da Competência privativa da União para legislar, nos termos do art. 22, inciso I da Constituição Federal, sendo que legislação estadual que cria Município não altera o processo eleitoral, não se submetendo, portanto, ao princípio da anualidade eleitoral.
Esses precedentes deixaram claros que a lei tratada no art. 16 da Constituição Federal é a lei emanada do Congresso Nacional no exercício da competência privativa da União.
3.2. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 354
O objeto da ADI 354 dizia respeito a normas que alteravam os sistemas de votação e apuração de resultados nas eleições de 1990, restando consignado o entendimento da maioria dos Ministros de que não havia ofensa ao princípio da anualidade eleitoral esculpido no art. 16 da Constituição Federal de 1988.
Tratando sobre o assunto, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco[9] em sua obra Curso de Direito Constitucional esquematizam o que foi decidido na ADI 354 da seguinte forma:
Foi a primeira vez que a Corte analisou com maior profundidade o significado do princípio da anterioridade eleitoral na Constituição de 1988. Os votos vencedores (Ministros Octavio Gallotti — Relator, Paulo Brossard, Célio Borja, Sydney Sanches, Moreira Alves e Néri da Silveira) basearam-se em fundamentos diversos, os quais podem ser agrupados em três vertentes:
1) a norma eleitoral que trata de um determinado modo de apuração de votos e, dessa forma, diz respeito apenas à interpretação da vontade do eleitor, pode ter eficácia imediata sem desrespeitar o princípio da anterioridade eleitoral (Octavio Gallotti e Célio Borja);
2) a expressão “processo eleitoral” contida no art. 16 da Constituição abrange apenas as normas eleitorais de caráter instrumental ou processual e não aquelas que dizem respeito ao direito eleitoral material ou substantivo (Paulo Brossard, Moreira Alves, Néri da Silveira);
3) o art. 16 visa impedir apenas alterações casuísticas e condenáveis do ponto de vista ético, e sua interpretação deve levar em conta as peculiaridades nacionais, o “Brasil real e não o Brasil teórico” (Sydney Sanches).”
Já os votos vencidos reclamavam uma interpretação mais ampla do art. 16 da Constituição Federal 1988 para levar em conta além do significado do termo processo eleitoral, a própria teleologia da norma constitucional que visa impedir alterações casuísticas que interfira na igualdade de participação no pleito eleitoral.
Portanto, por considerarem que os sistemas de votação e apuração consistiam em meios de se averiguar a vontade do eleitor, não interferindo na igualdade de participação dos partidos políticos e candidatos, o Supremo Tribunal Federal entendeu por julgar improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade no 354 por não haver ofensa ao princípio da anualidade eleitoral previsto no art. 16 da Constituição Federal.
3.3. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 3.345
No ano de 2005 o Supremo Tribunal Federal voltou a tratar do princípio da anualidade eleitoral, havendo uma pequena mudança no entendimento antes esposado nos julgados citados anteriormente, tendo em vista a nova composição do Tribunal, passando a prevalecer alguns elementos dos votos anteriormente vencidos.
A ADI 3.345 questionava os critérios de proporcionalidade para determinação da quantidade do número de vereadores nos Municípios, a partir da Resolução no 21.702/2004 do Tribunal Superior Eleitoral que normatizava as razões do julgamento do Recurso Extraordinário no 197.917.
Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que não houve ofensa ao art. 16 da Constituição Federal, tendo os Ministros fixado a necessidade de interpretação de tal dispositivo constitucional levando-se em conta o significado da expressão “processo eleitoral” e a teleologia da norma constitucional.
O julgamento da ADI 3.345 foi sintetizado na obra A Constituição e o Supremo[10] da seguinte forma:
A norma consubstanciada no art. 16 da CR, que consagra o postulado da anterioridade eleitoral (cujo precípuo destinatário é o Poder Legislativo), vincula-se, em seu sentido teleológico, à finalidade ético-jurídica de obstar a deformação do processo eleitoral mediante modificações que, casuisticamente introduzidas pelo Parlamento, culminem por romper a necessária igualdade de participação dos que nele atuam como protagonistas relevantes (partidos políticos e candidatos), vulnerando-lhes, com inovações abruptamente estabelecidas, a garantia básica de igual competitividade que deve sempre prevalecer nas disputas eleitorais. Precedentes. O processo eleitoral, que constitui sucessão ordenada de atos e estágios causalmente vinculados entre si, supõe, em função dos objetivos que lhe são inerentes, a sua integral submissão a uma disciplina jurídica que, ao discriminar os momentos que o compõem, indica as fases em que ele se desenvolve: (a) fase pré-eleitoral, que, iniciando-se com a realização das convenções partidárias e a escolha de candidaturas, estende-se até a propaganda eleitoral respectiva; (b) fase eleitoral propriamente dita, que compreende o início, a realização e o encerramento da votação e (c) fase pós-eleitoral, que principia com a apuração e contagem de votos e termina com a diplomação dos candidatos eleitos, bem assim dos seus respectivos suplentes. Magistério da doutrina (José Afonso da Silva e Antonio Tito Costa). A Resolução TSE 21.702/2004, que meramente explicitou interpretação constitucional anteriormente dada pelo STF, não ofendeu a cláusula constitucional da anterioridade eleitoral, seja porque não rompeu a essencial igualdade de participação, no processo eleitoral, das agremiações partidárias e respectivos candidatos, seja porque não transgrediu a igual competitividade que deve prevalecer entre esses protagonistas da disputa eleitoral, seja porque não produziu qualquer deformação descaracterizadora da normalidade das eleições municipais, seja porque não introduziu qualquer fator de perturbação nesse pleito eleitoral, seja, ainda, porque não foi editada nem motivada por qualquer propósito casuístico ou discriminatório." (ADI 3.345, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 25-8-2005, Plenário, DJE de 20-8-2010.)
Portanto, o Supremo Tribunal Federal entendeu que não houve violação ao princípio da anualidade eleitoral pela Resolução no 21.702/2004 do Tribunal Superior Eleitoral, tendo os Ministros feito uma análise teleológica da norma constitucional, concluindo não haver qualquer rompimento à igualdade de condições de participação de todos os envolvidos no pleito eleitoral nem que foi editada por qualquer casuísmo ou fator discriminatório.
3.4. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 3.685
A ADI 3.685 tinha como objeto o fato de que as inovações trazidas pela Emenda Constitucional no 52/2006 não poderiam ser aplicadas às eleições de 2006 sob pena de ofensa ao principio da anualidade eleitoral.
Ao que parece, foi a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal aplicou a norma constitucional do art. 16 da Constituição Federal para negar a vigência imediata das inovações propostas pela Emenda Constitucional, em obediência ao princípio da anualidade eleitoral.
Primeiramente restou consignado o entendimento de que o termo “lei” previsto no art. 16 da Carta Magna deve ser entendido de forma ampla para incluir lei ordinária, lei complementar, emenda constitucional ou qualquer espécie normativa de caráter autônomo, geral e abstrato.
Ademais, os Ministros confirmaram o que já havia sido decidido anteriormente no que toca a necessidade de que o dispositivo normativo trate de matéria da competência privativa da União para que seja considerado “processo eleitoral”.
A Emenda Constitucional no 52/2006 deu nova redação ao § 1º do art. 17 da Constituição Federal para disciplinar as coligações eleitorais, conferindo autonomia aos partidos políticos “para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária”.
Gerou-se uma celeuma porque antes da publicação da Emenda Constitucional no 52/2006 estava vigendo uma legislação infraconstitucional que tolhia a plena autonomia das coligações partidárias no plano federal, estadual e municipal, comumente chamada de verticalização das coligações, e com a Emenda Constitucional, tal verticalização veio a se tornar inconstitucional. Contudo, por ter sido a Emenda Constitucional publicada em 2006, gerou-se a dúvida quanto a sua vigência, se já seria aplicável às eleições de 2006 ou não, sob pena de afronta ao princípio da anualidade eleitoral.
O decido pelo Supremo Tribunal Federal foi resumido na obra A Constituição e o Supremo[11] da seguinte forma:
"A inovação trazida pela EC 52/2006 conferiu status constitucional à matéria até então integralmente regulamentada por legislação ordinária federal, provocando, assim, a perda da validade de qualquer restrição à plena autonomia das coligações partidárias no plano federal, estadual, distrital e municipal. Todavia, a utilização da nova regra às eleições gerais que se realizarão a menos de sete meses colide com o princípio da anterioridade eleitoral, disposto no art. 16 da CF, que busca evitar a utilização abusiva ou casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação e de deformação do processo eleitoral (ADI 354, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ de 12-2-1993). Enquanto o art. 150, III, b, da CF encerra garantia individual do contribuinte (ADI 939, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 18-3-1994), o art. 16 representa garantia individual do cidadão-eleitor, detentor originário do poder exercido pelos representantes eleitos e ‘a quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral’ (ADI 3.345, Rel. Min. Celso de Mello). Além de o referido princípio conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. 16 ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). A modificação no texto do art. 16 pela EC 4/1993 em nada alterou seu conteúdo principiológico fundamental. Tratou-se de mero aperfeiçoamento técnico levado a efeito para facilitar a regulamentação do processo eleitoral. Pedido que se julga procedente para dar interpretação conforme no sentido de que a inovação trazida no art. 1º da EC 52/2006 somente seja aplicada após decorrido um ano da data de sua vigência." (ADI 3.685, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 22-3-2006, Plenário, DJ de 10-8-2006.)
Restou decidido que, por analogia ao art. 150, inciso III, alínea “b” da Constituição Federal, que se constitui uma garantia fundamental do contribuinte, o principio da anualidade eleitoral previsto no art. 16 da Constituição Federal consubstancia uma garantia fundamental do cidadão-eleitor, do cidadão-candidato e dos partidos políticos, consistindo em cláusula pétrea oponível inclusive contra o poder constituinte reformador, não se aplicando as alterações promovidas pela Emenda Constitucional no 52/2006 às eleições de 2006.
3.5. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 3.741
A lei no 11.300 de 10 de maio de 2006 dispõe sobre propaganda, financiamento, e prestação de contas das despesas com campanhas eleitorais, tendo alterado alguns dispositivos da Lei no 9.504/1997.
Tratou-se de uma minirreforma eleitoral em 2006, surgindo na época os questionamentos se haveria ou não violação ao princípio da anualidade eleitoral. Instado a se manifestar, o Supremo Tribunal Federal, julgando a ADI 3.741, considerou não haver violação ao art. 16 da Constituição Federal.
Mais uma vez busco a compilação feita na obra A Constituição e o Supremo[12], que resumiu o julgado na ADI 3.741 da seguinte forma:
Lei 11.300/2006 (minirreforma eleitoral). Alegada ofensa ao princípio da anterioridade da lei eleitoral (CF, art. 16). Inocorrência. Mero aperfeiçoamento dos procedimentos eleitorais. Inexistência de alteração do processo eleitoral. Proibição de divulgação de pesquisas eleitorais quinze dias antes do pleito. Inconstitucionalidade. Garantia da liberdade de expressão e do direito à informação livre e plural no Estado Democrático de Direito. (ADI 3.741, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 6-9-2006, Plenário, DJ de 23-2-2007.)
Os ministros novamente consideraram a não ocorrência de rompimento da igualdade de participação de candidatos e partidos políticos pelos dispositivos trazidos na Lei no 11.300/2006.
Não vislumbrou-se qualquer deformação capaz de alterar a normalidade das eleições nem tampouco foi uma alteração que se deu por propósito casuístico, não havendo ofensa ao princípio da anualidade eleitoral, sendo a lei no 11.300/2006 aplicável às eleições de 2006.
3.6. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4.307
Ainda em 2009, por meio de medida cautelar, o Supremo Tribunal Federal, calcado nas razões expendidas em outros julgamentos, como na ADI 3.685, “suspendeu a aplicação da Emenda Constitucional no 58/2009 na parte que determinava a retroação, para atingir pleito eleitoral já realizado em 2008, dos efeitos das novas regras constitucionais sobre limites máximos de vereadores nas Câmaras Municipais”[13].
Posteriormente, em 2013, o Plenário do Supremo Tribunal Federal considerou a impossibilidade de se alterar o resultado do processo eleitoral encerrado por ofensa ao art. 16 da Constituição Federal, uma vez que a alteração na composição dos limites máximos de vereadores nas câmaras municipais acarretaria a posse de novos vereadores, alterando o processo eleitoral em sua fase pós-eleitoral.
A obra A Constituição e o Supremo[14] traz o seguinte resumo do julgado na ADI 4.307:
“EC 58/2009. Alteração na composição dos limites máximos das câmaras municipais. Inciso IV do art. 29 da CR. (...) Posse de novos vereadores: impossibilidade. Alteração do resultado de processo eleitoral encerrado: inconstitucionalidade. Contrariedade ao art. 16 da CR. (...) Norma que determina a retroação dos efeitos de regras constitucionais de composição das câmaras municipais em pleito ocorrido e encerrado: afronta à garantia do exercício da cidadania popular (arts. 1º, parágrafo único, e 14 da Constituição) e a segurança jurídica. Os eleitos foram diplomados pela Justiça Eleitoral até 18-12-2009 e tomaram posse em 2009. Posse de suplentes para legislatura em curso, em relação a eleição finda e acabada, descumpre o princípio democrático da soberania popular. Impossibilidade de compatibilizar a posse do suplente: não eleito pelo sufrágio secreto e universal. Voto: instrumento da democracia construída pelo cidadão; impossibilidade de afronta a essa liberdade de manifestação. A aplicação da regra questionada significaria vereadores com mandatos diferentes: afronta ao processo político juridicamente perfeito. Na CR não há referência a suplente de vereador. Suplente de deputado ou de senador: convocação apenas para substituição definitiva; inviável criação de mandato por aumento da representação.” (ADI 4.307, rel. min. Cármen Lúcia, julgamento em 11-4-2013, Plenário, DJE de 1º-10-2013.)
3.7. Outras decisões do Supremo Tribunal Federal
No ano de 2010 houveram dois Recursos Extraordinários que aportaram no Supremo Tribunal Federal (RExt 630.147 e RExt 631.102) que tratavam de casos que foram muito explorados pela imprensa, visto que diziam respeito à candidaturas de Joaquim Roriz e Jader Barbalho que, em síntese, questionavam a aplicação da Lei Complementar no 135/2010 (Lei da Ficha Limpa) nas eleições de 2010.
A Lei Complementar no 135/2010 alterou a Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, estabelecendo, de acordo com o § 9o do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determinou outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato, ficando conhecida no país como a Lei da Ficha Limpa, dado as novas exigências e vedações para postulantes à cargos políticos.
O Recurso Extraordinário 630.147 não chegou a ter o mérito julgado, visto que houve perda do objeto porque o então interessado, Roriz, renunciou à candidatura. Já no Recurso Extraordinário 631.102, como lembrado por Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco[15] em sua obra Curso de Direito Constitucional, “foi julgado em desfavor do recorrente Jader Barbalho, após aplicação de regra de desempate retirada, mediante interpretação analógica, do Regimento Interno do STF.”
Posteriormente, em sessão plenária de 23 de março de 2011, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário no 633.703, decidiu que a Lei Complementar no 135/2010 não se aplicaria às eleições de 2010 por ofensa ao princípio da anualidade eleitoral insculpido no art. 16 da Constituição Federal de 1988.
A Lei Complementar no 135/2010 tratava de casos de inelegibilidade interferindo diretamente na fase pré-eleitoral com repercussão no processo eleitoral, motivo pelo qual, deve ser aplicado o art. 16 da Constituição Federal, que importa em garantia fundamental para o pleno exercício de direitos políticos.
Pela importância e pelo caráter pedagógico que se extrai da leitura do que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal ao determinar que a Lei Complementar no 135/2010 não se aplicaria às eleições de 2010 em face do princípio da anualidade, transcrevo o resumo do julgado extraído da obra A Constituição e o Supremo[16]:
“LC 135/2010, denominada Lei da Ficha Limpa. Inaplicabilidade às eleições gerais de 2010. (...) O pleno exercício de direitos políticos por seus titulares (eleitores, candidatos e partidos) é assegurado pela Constituição por meio de um sistema de normas que conformam o que se poderia denominar de devido processo legal eleitoral. Na medida em que estabelecem as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políticos, essas regras também compõem o rol das normas denominadas cláusulas pétreas e, por isso, estão imunes a qualquer reforma que vise a aboli-las. O art. 16 da Constituição, ao submeter a alteração legal do processo eleitoral à regra da anualidade, constitui uma garantia fundamental para o pleno exercício de direitos políticos. Precedente: ADI 3.685, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 22-3-2006. A LC 135/2010 interferiu numa fase específica do processo eleitoral, qualificada na jurisprudência como a fase pré-eleitoral, que se inicia com a escolha e a apresentação das candidaturas pelos partidos políticos e vai até o registro das candidaturas na Justiça Eleitoral. Essa fase não pode ser delimitada temporalmente entre os dias 10 e 30 de junho, no qual ocorrem as convenções partidárias, pois o processo político de escolha de candidaturas é muito mais complexo e tem início com a própria filiação partidária do candidato, em outubro do ano anterior. A fase pré-eleitoral de que trata a jurisprudência desta Corte não coincide com as datas de realização das convenções partidárias. Ela começa muito antes, com a própria filiação partidária e a fixação de domicílio eleitoral dos candidatos, assim como o registro dos partidos no TSE. A competição eleitoral se inicia exatamente um ano antes da data das eleições e, nesse interregno, o art. 16 da Constituição exige que qualquer modificação nas regras do jogo não terá eficácia imediata para o pleito em curso. (...) Toda limitação legal ao direito de sufrágio passivo, isto é, qualquer restrição legal à elegibilidade do cidadão constitui uma limitação da igualdade de oportunidades na competição eleitoral. Não há como conceber causa de inelegibilidade que não restrinja a liberdade de acesso aos cargos públicos, por parte dos candidatos, assim como a liberdade para escolher e apresentar candidaturas por parte dos partidos políticos. E um dos fundamentos teleológicos do art. 16 da Constituição é impedir alterações no sistema eleitoral que venham a atingir a igualdade de participação no prélio eleitoral. (...) O princípio da anterioridade eleitoral constitui uma garantia fundamental também destinada a assegurar o próprio exercício do direito de minoria parlamentar em situações nas quais, por razões de conveniência da maioria, o Poder Legislativo pretenda modificar, a qualquer tempo, as regras e critérios que regerão o processo eleitoral. A aplicação do princípio da anterioridade não depende de considerações sobre a moralidade da legislação. O art. 16 é uma barreira objetiva contra abusos e desvios da maioria, e dessa forma deve ser aplicado por esta Corte. A proteção das minorias parlamentares exige reflexão acerca do papel da Jurisdição Constitucional nessa tarefa. A jurisdição constitucional cumpre a sua função quando aplica rigorosamente, sem subterfúgios calcados em considerações subjetivas de moralidade, o princípio da anterioridade eleitoral previsto no art. 16 da Constituição, pois essa norma constitui uma garantia da minoria, portanto, uma barreira contra a atuação sempre ameaçadora da maioria.” (RE 633.703, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 23-3-2011, Plenário, DJE de 18-11-2011, com repercussão geral.) No mesmo sentido: RE 636.359-AgR-segundo, Rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 3-11-2011, Plenário, DJE de 25-11-2011.
Deve-se considerar que o princípio da anualidade eleitoral previsto no art. 16 da Constituição Federal de 1988 é uma garantia fundamental e de observância obrigatória, devendo ser aplicado, deixando de lado o pragmatismo e os clamores populares dado o efeito moralizador das regras trazidas pela Lei Complementar no 135/2010, assegurando a eficácia do texto constitucional.