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A questão da autorização prévia para processar governador

Agenda 17/10/2014 às 11:11

É inconstitucional dispositivo de Constituição Estadual que condiciona andamento de ação penal promovida pelo Ministério Público Federal contra Governador de Estado à prévia autorização da Assembleia Legislativa.

Dispõe o artigo 105, I, alínea a, da Constituição que compete ao Superior Tribunal de Justiça processar e julgar, originariamente, nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais.

É sabido que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil vem questionando no Supremo Tribunal Federal a necessidade de autorização prévia das Assembleias Legislativas estaduais para processar e julgar governadores de estado por crimes comuns e de responsabilidade.

Nessas ações, a OAB sustenta que os dispositivos das constituições estaduais violam o artigo 22, inciso I, da Constituição Federal que atribui à União Federal competência privativa para legislar sobre direito processual. Ademais, segundo ainda a OAB, as Assembleias Legislativas não teriam isenção política para decidir sobre a autorização necessária para a abertura de processo por crime comum contra governador no Superior Tribunal de Justiça e também para julgá-lo na própria Assembleia nos crimes de responsabilidade.

Assim o entendimento apresentado é que, pela letra da Constituição Federal, a competência para processar e julgar governador é exclusivamente do Superior Tribunal de Justiça, não podendo ficar sujeita às manobras e humores das Assembleias Legislativas.

No caso específico da Constituição Estadual do Rio Grande do Norte, há a ADI 4799, em que é Relator o Ministro Teori Zavascki.

Em razão da relevância da matéria e do seu especial significativo para a ordem social e a segurança jurídica, do que se vê do julgamento da ADIn 4777, resolveu o Supremo Tribunal Federal aplicar o procedimento abreviado previsto no artigo 12 da Lei nº 9.868/99.

Tem razão a OAB quando levanta que há evidente usurpação de competência legislativa privativa da  União Federal e afronta à legislação federal aplicável à espécie, bem como que tais dispositivos contrariam princípios constitucionais inerentes à República e ao regime de responsabilidade a que estão submetidos os agentes políticos.

Estabelece o artigo 22, inciso I,  da Constituição Federal competência privativa da União Federal para legislar sobre tema de processo.

Ora, no artigo 22 da Constituição Federal se deu competência privativa(não exclusiva) à União para legislar sobre questões específicas relacionadas nesse artigo. Há uma diferença entre competência exclusiva e competência privativa, como revela José Afonso da Silva(Curso de direito constitucional positivo, 5ª edição, pág. 413). A competência exclusiva é indelegável e a competência privativa é delegável. Quando se quer atribuir competência própria a uma entidade ou a um órgão com possibilidade de delegação de tudo, ou de parte declara-se que compete privativamente a ele a matéria indicada. Assim no artigo 22 se deu competência privativa(não exclusiva) à União para legislar sobre assuntos de processo, dentre outros,  porque o parágrafo único faculta à lei complementar autorizar aos Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.

Sendo assim não poderia a Constituição Estadual incluir no processo, sem autorização constitucional,  uma verdadeira condição de procedibilidade exigindo que para se dar seguimento à ação penal proposta contra Governador de Estado seria exigida autorização prévia da Assembleia Legislativa.

Afronta, se não bastasse, tal dispositivo da Constituição Estadual ao devido processo legal em sentido processual(procedural due process) na medida em que no direito processual tal cláusula significa o dever de propiciar ao litigante um juiz imparcial de forma que não se fique ao sabor se o órgão legislativo, em função de seus interesses partidários e ideológicos, decidirá dessa ou daquela maneira, usurpando o papel que é dado ao Poder Judiciário.

Ademais a Constituição Federal fixa zona de determinações e o conjunto de limitações à capacidade organizatória dos Estados quando manda que suas Constituições e leis observem a seus princípios segundo se lê do artigo 125 da Constituição da República, que podem ser classificados em dois: a) sensíveis; b) estabelecidos.

 Os princípios constitucionais sensíveis são aqueles que dizem respeito basicamente à organização dos poderes governamentais dos Estados que envolve outros princípios particulares, de forma que estão conjugados no artigo 34, VII, da Constituição, dentre os quais a formação republicana e o regime democrático que exige a necessária separação de poderes, que devem ser autônomos. Sabido é que, no Estado Democrático de Direito e no Regime Republicano a interpretação há de ser feita com base nos valores sociais e republicanos que a guarnecem de sorte a permitir que os maus governantes sejam responsabilizados política e juridicamente pelas condutas praticas com abuso ou desvio de finalidade, que sejam em prejuízo do bem comum. Condicionar o andamento de ação penal promovida contra Governador de Estado seria, data vênia, conceder um passaporte para a impunidade do agente político, criando uma dificuldade absolutamente incontornável para a instauração da ação penal, de sorte a ser uma verdadeira cláusula desproporcional, pois excessiva.

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Os princípios constitucionais estabelecidos são os que limitam a autonomia organizatória dos Estados, são aquelas regras que revelam, previamente, a matéria de sua organização e as normas constitucionais de caráter vedatório, bem como os princípios de organização política, social e econômica, que determinam o retraimento da autonomia estadual. No particular, tem-se a organização da Justiça(artigo 125) e a inconstitucionalidade das leis e atos normativos estaduais e municipais.

Ademais quando a Constituição dá competência privativa  à União, em matéria relacionada ao artigo 22, apresenta limitação implícita vedatória ao Estado de legislar sobre a matéria.

Se não bastasse  a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário a lesão ou ameaça a direito. Pois ao criar condicionamento ao exercício da ação penal não previsto na Constituição Federal ou por ela não autorizado, a Constituição Estadual está a afrontar o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.

O artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição firma duas ideias: uma de que toda controvérsia, portanto, poderia ser levada ao Poder Judiciário e este teria de conhecê-la, respeitada a forma adequada de acesso a ele disposta pela leis processuais; a duas que toda decisão definitiva sobre controvérsia jurídica, só poderia ser exercida pelo Poder Judiciário. Não haveria jurisdição fora deste, nem no Poder Legislativo e nem no Poder Executivo.

Assim a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Há inconstitucionalidade no artigo 35, XIV, da Constituição do Rio Grande do Norte quando prescreve que é competência privativa da Assembleia Legislativa: "Autorizar por dois terços de seus membros a instauração de processo contra Governador do Estado, Vice-Governador e Secretário do Estado". Afronta-se o artigo 2º da Constituição que determina que são poderes , independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A independência a que se refere esse artigo 2º delineia-se pela investidura e permanência das pessoas num dos órgãos de governo, às quais se exercem as atribuições que lhes foram conferidas, atuando num raio de competência próprio, sem a ingerência de outros órgãos com total liberdade, organizando serviços e tomando decisões livremente, sem qualquer interferência alheia, mas permitindo a colaboração quando a necessidade o exigir, como lembrou Uadi Lammêgo Bulos(Constituição federal anotada, 6ª edição, pág. 90) . Afronta-se o artigo 5º, inciso XXXV da Constituição uma vez que se condiciona o exercício da atividade de julgar, inerente ao Judiciário, à decisão prévia do Legislativo estadual. Não cabe à norma estadual, mesmo de hierarquia constitucional, negar vigência a dispositivo constitucional que determina que, em matéria de processo, a competência privativa para editar normas é da União Federal. Se tudo isso não bastasse não  pode o Legislativo Estadual invadir função inerente ao Superior Tribunal de Justiça que é de julgar Governador de Estado, função de fazer valer o ordenamento jurídico, de forma coativa, isto porque a função jurisdicional é aquela realizada pelo Poder Judiciário, tendo em vista aplicar a lei uma hipótese controvertida mediante processo regular, produzindo, afinal, a coisa julgada.

Daí a inconstitucionalidade do artigo 65, § 1º da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte na parte em que diz que  admitida a acusação contra o Governador do Estado por dois terços(2/3) da Assembleia Legislativa, é ele submetido a julgamento perante o Superior Tribunal de Justiça nos crimes comuns.

Como bem disse Celso Ribeiro Bastos(Comentários à Constituição do Brasil, pág. 171) isto significa que lei alguma poderá autoexcluir-se da apreciação do Poder Judiciário quanto à sua constitucionalidade, nem poderá dizer que ela seja ininvocável pelos interessados perante o Poder Judiciário para resolução das controvérsias que surjam de sua aplicação.

Admitir ou não acusação contra o Governador do Estado é missão constitucional do Superior Tribunal de Justiça, uma vez que não se pode falar em jurisdição condicionada. Uma vez que não há de se admitir uma instância legislativa no processo penal de curso forçado.

A providência escolhida pelo constituinte potiguar e alvo de inconstitucionalidade é flagrantemente desarrazoada e desproporcional.

Há de se considerar uma razoabilidade interna, que se referencia com a existência de uma relação racional e proporcional entre motivos, meios e fins da medida e ainda uma razoabilidade externa, que trata da adequação de meios e fins.

Tais ilações foram essencialmente de cogitação do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, como bem ensinou o Ministro  Luís Roberto Barroso, ao externar um outro qualificador da razoabilidade-proporcionalidade, que é o da exigibilidade ou da necessidade da medida. Conhecido ainda como princípio da menor ingerência possível, consiste no imperativo de que os meios utilizados para consecução dos fins visados sejam os menos onerosos para o cidadão. É o que conhecemos como proibição do excesso.

Há ainda o que se chama de proporcionalidade em sentido estrito, onde se cuida de uma verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Pesam-se as desvantagens dos meios em relação ás vantagens do fim.

Em resumo, do que se tem da doutrina no Brasil, em Portugal, dos ensinamentos oriundos da doutrina e jurisprudência na Alemanha, extraímos do principio da proporcionalidade, que tanto nos será de valia para adoção dessas medidas, os seguintes requisitos: a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento de  fins visados; c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos.

Por todos esses argumentos, tem-se que é inconstitucional dispositivo de Constituição Estadual que condiciona andamento de ação penal promovida pelo Ministério Público Federal contra Governador de Estado à prévia autorização da Assembleia Legislativa.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A questão da autorização prévia para processar governador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4125, 17 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32856. Acesso em: 24 nov. 2024.

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