Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Eleição direta para cargos da administração dos tribunais:

autogoverno da magistratura e autonomia dos tribunais estaduais

Exibindo página 1 de 2
Agenda 02/07/2015 às 10:38

Examina-se o direito de eleger membros da Administração dos Tribunais, à luz do princípio da democracia no Estado de Direito e do direito subjetivo ao sufrágio direto, universal e igualitário.

Sumário:1-Introdução. 2-Princípo da Democracia. 3-Sufrágio. 4-Democracia e Eleição Direta para Cargos da Administração dos Tribunais.5-Autogoverno da Magistratura e normas sobre eleição dos órgãos de direção. Autonomia do Poder Judiciário (CRFB/88, artigo 99) e autonomia federalista do Poder Judiciário Estadual (CRFB/88, artigos 96, I, a c/c 125, caput e artigos 1o e 60, parágrafo 4o, I).6-Sugestão de alteração do RITJRJ.7-Conclusão. 8-Referências Bibliográficas.


1-Introdução

O estudo consiste no exame sobre o direito de eleger membros da Administração dos Tribunais, à luz do princípio da democracia no Estado de Direito e do direito subjetivo ao sufrágio direto, universal e igualitário, como forma de valorização da magistratura de primeiro grau e aperfeiçoamento da gestão dos Tribunais. O autogoverno da magistratura e a autonomia dos Tribunais Estaduais na Constituição de 1988 será objeto de exame, com abordagem sobre a autonomia dos Tribunais dos Estados para edição de normas sobre eleições para os cargos de direção.


2-Princípio da Democracia

A Constituição de 1988 configurou no Brasil o Estado Democrático de Direito, ao adotar como fundamentos da República a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (artigo 1o, I a V) [1].

O princípio da democracia é incorporado no Texto Constitucional e inspira não apenas as demais normas constitucionais, mas também orienta o processo de elaboração das normas do ordenamento jurídico em todos os níveis e vincula o intérprete da Constituição, afirmando PETER HÄBERLE:

“[…]no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição.[…]Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade.”[2]

 Na mesma linha destaca KONRAD HESSE que “[…]no sólo  el poder público, sino también la Sociedad y cada uno de sus miembros singulares responden de la existencia social de cada uno de los demás membros de la sociedad.”[3]  NAGIB SLAIBI FILHO também assevera que “os direitos fundamentais têm eficácia em face não só do Estado e dos agentes públicos, mas também dos demais cidadãos, entes e pessoas jurídicas”[4], o que se denomina no direito alemão drittwirkung[5], ou eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

O Princípio da democracia integra o núcleo intangível da Constituição e 1988, razão pela qual o constituinte originário instituiu a vedação de proposta de emenda à Constituição tendente a abolir o voto direito, secreto, universal e periódico (Artigo 60, parágrafo 4o, II). Assim, a vedação reconhece a fonte do Poder (povo, cf. parágrafo único do artigo 1o), a condição material para o exercício livre de pressões do direito público subjetivo de sufrágio (voto secreto), a igualdade[6] entre os membros do grupo como corolário da dignidade humana (universalidade do voto) e a periodicidade para garantir a alternância do Poder e o exercício efetivo do direito de escolha (voto periódico), evitando-se a perpetuação de governos.

A democracia é conceito histórico[7], construído com base nos valores predominantes em determinada época nas sociedades e Estados, erigindo-se em valor a ser preservado e tornado cada vez mais efetivo. A democracia não se esgota nela mesma, tendo natureza instrumental, como necessária à concretização dos demais valores incorporados nos Textos Constitucionais contemporâneos. Assim, não se pode cogitar de proteção à dignidade humana, realização da igualdade material e construção de sociedade livre, justa e solidária (CRFB/88, artigo 3o), num Estado elitista e antidemocrático. Lembrando a declaração de LINCOLN no sentido de que a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo, JOSÉ AFONSO DA SILVA define democracia como um processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo[8].

Apesar da historicidade da democracia, são reconhecidos como princípios fundamentais a maioria, a igualdade e a liberdade[9]. O princípio da maioria integra e decorre da democracia e significa ampla participação dos membros do grupo, ou da sociedade, traduzindo-se no direito subjetivo à universalidade do voto. O princípio da igualdade revela que cada membro do grupo tem o mesmo valor no processo de manifestação de vontade coletiva através do voto (one man, one vote), ou dos mecanismos de participação indireta. O princípio da liberdade significa que cada integrante do grupo é livre para se manifestar do processo de tomada de decisões conforme a sua consciência, o que impede não apenas o controle do conteúdo das escolhas, mas impõe o caráter secreto dos votos para garantir ambiente propício ao exercício da liberdade. Portanto, medidas que não se coadunem com os princípios da maioria, da igualdade e da liberdade, são contrárias à democracia. Nesta linha, a visão elitista, com o governo de poucos e eleito por uma minoria, é contrária à democracia, assim, como também era contrária à democracia a doutrina da segurança nacional, que fundamentou o constitucionalismo do regime militar suplantado pela Constituição de 1988[10]. Nas palavras de JOSÉ AFONSO DA SILVA, “coerente com sua essência antidemocrática, o elitismo assenta-se em sua inerente desconfiança do povo, que reputa intrinsicamente incompetente.”[11]


3-Sufrágio

O direito de sufrágio é espécie de direito político positivo e consiste no direito da pessoa integrante do grupo escolher representantes através do voto (ativo) e se candidatar e ser votado no processo de escolha (passivo). O sufrágio decorre do princípio da soberania popular e do princípio democrático, tendo a natureza jurídica de direito público subjetivo de natureza política, classificando a doutrina[12] o sufrágio quanto à extensão (universal e restrito) e quanto à igualdade (igual e desigual)[13]. A compatibilização do sufrágio com o princípio democrático somente ocorrerá com o direito ao sufrágio universal e igual.

A universalidade do sufrágio é princípio básico da democracia, razão pela qual as restrições, ou até mesmo exclusões do direito de votar e ser votado violam o princípio da maioria e afastam a democracia. Assim, destaca JOSÉ AFONSO DA SILVA, citando DEMICHEL, que “só se podem reputar compatíveis com o sufrágio universal as condições puramente técnicas e não discriminatórias”, asseverando o mesmo Professor, com base na observação de FAYAT, que são incompatíveis com o sufrágio universal “as exigências de ordem econômica e intelectual ou determinadas pautas de valor pessoal.”[14]

Nesta linha de pensamento, o sufrágio restrito, censitário ou capacitário, é antidemocrático e impede que os membros do grupo participem ativamente dos processos de escolha e tomadas de decisão. Portanto, como destaca JÜRGEN HABERMAS, “o princípio da democracia não deve apenas estabelecer um processo legítimo de normatização, mas também orientar a produção do próprio medium do direito.”[15]

A igualdade do sufrágio também decorre da democracia. Apenas com a igualdade de participação aos membros do grupo será vivido com plenitude o princípio democrático. São incompatíveis com o princípio da igualdade do sufrágio medidas discriminatórias, que retiram do membro do grupo valor em comparação com os demais membros do mesmo grupo, atribuindo a alguns uma posição destacada e privilegiada. Assim, para a formação política racional da opinião e da vontade, o princípio da democracia orienta um sistema de direitos, que garante igual participação a cada membro do grupo no processo de normatização jurídica[16]. Neste contexto, JOSÉ AFONSO DA SILVA expõe a crítica inevitável: “como o sufrágio restrito, todas essas formas de sufrágio desigual constituem técnicas antidemocráticas, destinadas a propiciar regimes elitistas(...)[17].  

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

4- Democracia e Eleição Direta para Cargos da Administração dos Tribunais

Os Tribunais representam estruturas do Poder do Estado, que gozam de autogoverno, dispondo o artigo 96, inciso I da Constituição de 1988 sobre a competência privativa dos Tribunais para eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos.

Inicialmente, deve ser evitada a interpretação restritiva e puramente gramatical, que resultaria na restrição do direito de eleger apenas aos membros dos tribunais, excluindo a primeira instância. A Constituição, ao mencionar tribunais, refere-se a todos os membros do tribunal. Entendimento contrário, por questão de coerência hermenêutica e sistemática, levaria à absurda interpretação de que apenas os juízes (1o grau) gozam das garantias constitucionais previstas no artigo 95, haja vista que, naquele artigo, o constituinte originário mencionou apenas juízes, sem nenhuma menção aos demais membros do tribunal (desembargadores).

O princípio democrático é inerente ao Estado de Direito instaurado com a Constituição de 1988 (artigo 1o, caput) e informa não apenas os Poderes legislativo e Executivo, mas também o Poder Judiciário, não sendo permitido ao Poder Judiciário adotar práticas contrárias ao princípio democrático, não apenas no desempenho das suas atividades, mas também nas relações dos órgãos diretivos com os membros do Poder.

Assim, deve também o Poder Judiciário, na tarefa de concretização da Constituição, reconhecer e pautar suas condutas conforme os princípios democráticos da maioria, da igualdade e da liberdade. O comportamento contrário ao princípio democrático é incompatível com a finalidade de guarda da Constituição, cometida a todos os Tribunais como corolário do princípio da supremacia da Constituição. A observância da Constituição não se faz apenas no julgamento dos processos levados ao Judiciário (CRFB/88, artigo 5o, XXXV), mas através de todo ato de qualquer natureza praticado por qualquer dos seus integrantes, adotando-se também no plano das relações internas postura compatível com aquela finalidade do Judiciário. Por outra vertente, a posição de garantidor do exercício da democracia aos cidadãos do Estado impede que, no âmbito deste mesmo Estado Constitucional formatador do Poder Judiciário, as relações entre os seus membros sejam pautadas por valores antidemocráticos, como a minoria, a desigualdade e a restrição à liberdade de manifestação para escolha dos membros da Administração. DALMO DE ABREU DALLARI ao destacar a necessidade de democratização interna do Judiciário, afirmou que “não é dada qualquer oportunidade para que os integrantes dos níveis inferiores, muito mais números e igualmente integrantes do Judiciário, possam manifestar-se sobre a esc0lha dos dirigentes ou sobre outros assuntos que interessam a todos.” [18]

Inexistem razões que justifiquem, num Estado Democrático, a restrição a apenas alguns membros do Tribunal, integrantes da minoria, do direito de escolha dos ocupantes dos cargos de Direção. Ao revés, existem razões concretas para o reconhecimento do direito democrático de sufrágio universal e igual a todos integrantes do Poder Judiciário. É fato notório que a maior parte do movimento forense está na primeira instância, destacando DALMO DALLARI “que muitas das decisões das instâncias superiores são de interesse geral, mas com realismo é preciso reconhecer que para a maioria do povo o que importa é a decisão rápida e pouco onerosa de grande número de pequenos conflitos que afetam a vida diária.”[19] Esta afirmação em nada desmerece a atuação relevantíssima das instâncias superiores, mas apenas evidencia a elevada importância da primeira instância no desempenho das funções precípuas do poder Judiciário. Merece registro a atuação dos Juizados Especiais Cíveis, que respondem pela maior parte da demanda na primeira instância e cujas decisões são revistas em grau de recurso por turmas de juízes de primeiro grau (CRFB/88, artigo 98, I), desafiando recurso ao Egrégio Supremo Tribunal Federal, com base artigo 102, II, a da CRFB/88. DALLARI conclui:

“Assim sendo, a hierarquia, inerente à organização administrativa, não deve ser confundida com a existência de juízes de categoria superior e inferior, não sendo democrático tratar de modo autoritário os considerados inferiores e negar-lhes qualquer possibilidade de contribuir para o aperfeiçoamento e a melhor orientação da organização judiciária.” [20]

O direito de participação preconizado abrirá a porta para que todos os membros do Tribunal sejam reconhecidos como representativos do mesmo Poder, com desempenho da função jurisdicional em momentos distintos, atribuindo-se à primeira instância o mesmo peso e valor da segunda instância. Nesta linha, a democratização interna resultará na maior participação dos membros do tribunal na construção do Judiciário que se torna cada vez mais eficiente, apensar do longo caminho e dos enormes desafios a serem superados. Participação consciente e responsável no exercício da democracia[21].

A democratização interna do Poder Judiciário, com o sufrágio universal e igualitário, significará valorização da primeira instância, tema que tem preocupado o Conselho Nacional de Justiça e também a Presidência do Egrégio Supremo Tribunal Federal, tendo o Min. Presidente daquela Corte afirmado a necessidade de fortalecimento da primeira instância[22]. A AMAERJ também apoia a referida participação.[23] A valorização será inegável com a possibilidade de manifestação dos magistrados de primeiro grau no processo de escolha da Administração do Tribunal. Assim, apenas com o reconhecimento aos membros do Poder Judiciário do direito ao sufrágio universal e igualitário, em substituição ao sistema vigente de sufrágio restrito e censitário, será observado o princípio democrático e valorizada efetivamente a magistratura de primeira instância.


5-Autogoverno da Magistratura e normas sobre eleição dos órgãos de direção. Autonomia do Poder Judiciário (CRFB/88, artigo 99) e autonomia federalista do Poder Judiciário Estadual (CRFB/88, artigos 96, I, a c/c 125, caput e artigos 1o e 60, parágrafo 4o, I).

A Constituição de 1988 instituiu o autogoverno da magistratura, ao assegurar aos Tribunais autonomia organizacional (artigo 96), administrativa e financeira (artigo 99). Sobre a organização dos Tribunais dispõe o Texto Constitucional:

Art. 96. Compete privativamente:

I - aos tribunais

a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;

O artigo 125 da Constituição de 1988 também dispõe que “os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição”.

A Constituição não remete à legislação ordinária complementar a disciplina da escolha dos órgãos diretivos dos Tribunais, devendo a sua disciplina ser feita nos Regimentos Internos dos Tribunais Estaduais, como corolário do autogoverno da magistratura. O artigo 96, I, alínea a da Constituição de 1988 é norma autoaplicável, de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não tendo o constituinte originário atribuído ao legislador infraconstitucional elaboração de lei complementar para eficácia e aplicabilidade daquela norma, que trata de tema interna corporis. A mesma eficácia plena e aplicabilidade imediata tem a norma do artigo 125 da Constituição, que indica ser de observância obrigatória na organização da Justiça dos Estados os princípios da Constituição. JOSÉ AFONSO DA SILVA insere entre as normas constitucionais de eficácia plena as que “não exijam a elaboração de novas normas legislativas que lhes completem o alcance e o sentido, ou lhes fixem o conteúdo, porque já se apresentam suficientemente explícitas na definição dos interesses nela regulados.” [24]

O artigo 93 da CRFB/88, ao estabelecer que Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:(...)" não faz qualquer menção à eleição dos órgãos diretivos dos Tribunais. Entre os princípios que devem ser observados pelo Estatuto da Magistratura não há referência às eleições dos seus órgãos diretivos, não se podendo equiparar a disciplina da carreira da magistratura com a forma de composição dos órgãos de direção dos Tribunais Estaduais, objeto de norma específica autoaplicável, ou de aplicabilidade imediata no artigo 96, I, a.

Assim, a regra geral de organização dos Tribunais na Constituição do artigo 96, I, a c/c o artigo 125, caput, que organiza o Brasil como Estado federalista (cf. artigos 1o e 60, parágrafo 4o, I), prestigia a autonomia típica do federalismo do Poder Judiciário dos Estados, na edição de normas sobre a estrutura dos cargos de direção, impossibilitando que o Poder Legislativo da União, com competência constitucional para aprovar o Estatuto da Magistratura, intervenha no Poder Judiciário dos Estados com a criação normas sobre capacidade eleitoral ativa, passiva, duração do mandato e procedimento eleitoral.

Este entendimento é reforçado pela especialidade do artigo 121 da Constituição de 1988, que enuncia que lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais. Considerando o caráter híbrido da composição da Justiça Federal especializada (CRFB/88, artigos 119 e 120), a sua organização deve ser feita por Lei Complementar Federal. A norma do artigo 121 está inserida no Título IV, Capítulo III, Seção VI da Constituição de 1988, que trata dos Tribunais e Juízes Eleitorais, revelando que o artigo 121 é relativo apenas à possibilidade de organização da Justiça Eleitoral por lei complementar. A mesma regra específica sobre organização dos Tribunais é encontrada expressamente na Constituição de 1988 sobre a Justiça do Trabalho (artigo 113) e a Justiça Militar federal (artigo 124, parágrafo único). A natureza específica da norma e ausência de regra idêntica no artigo 96, I, alínea a evidenciam que o silêncio do Constituinte significa respeito à autonomia dos Estados decorrente do pacto federativo (CRFB/88, artigo 60, parágrafo 4o, I), que difere da autonomia administrativa prevista no artigo 99 da Constituição de 1988, inexistindo recepção da LOMAN no que tange ao artigo 102 sobre organização dos Tribunais Estaduais.

A ausência de delegação do constituinte originário ao Poder legislativo da União para disciplina da matéria sobre a organização da Justiça dos Estados (CRFB/88, artigo 96, I, a c/c artigo 125, caput) no Estatuto da Magistratura e a especialidade das normas da Constituição de 1988 relativas à Justiça Eleitoral (artigo 121), à Justiça do Trabalho (artigo 113) e à Justiça Militar federal (artigo 124, parágrafo único) decorrem do caráter democrático da Constituição de 1988 e do prestígio à autonomia dos entes da federação típica do federalismo, pela adoção da forma federativa de Estado (CRFB/88, artigo 60, parágrafo 4o, I), que não se confunde com a simples autonomia administrativa do Poder Judiciário (CRFB/88, artigo 99).

Neste contexto, a inclusão da matéria relativa à eleição dos cargos diretivos dos Tribunais Estaduais na LOMAN (LC 35/79, artigo 102) elaborada sob a vigência da ordem constitucional anterior (Emenda Constitucional 01/1969), ou a sua disciplina no futuro Estatuto da Magistratura, é incompatível com a Constituição de 1988, configurando ofensa à autonomia e autogoverno daqueles Tribunais e ao princípio da separação dos Poderes (cf. artigo 1o, caput, artigo 60, parágrafo 4o, I e III, artigo 96, I c/c artigo 125, caput).

A disciplina da matéria relativa à eleição dos cargos de direção dos Tribunais Estaduais por lei complementar Federal aprovada pelo Poder Legislativo da União, independentemente da sua iniciativa caber ao Supremo Tribunal Federal, como ato deflagrador do processo legislativo [25] que se exaure com o envio do Projeto de Lei ao Parlamento, significa imposição ao Tribunal Estadual de regras sobre o processo de escolha dos seus dirigentes, sem que o constituinte originário tivesse delegado esta atribuição ao legislador, mormente porque o artigo 96, I, a, tem eficácia plena. A inclusão da matéria em texto de Lei Complementar federal, sem autorização do constituinte originário nos moldes preconizados para a Justiça Eleitoral (CRFB/88, artigo 121), Justiça do Trabalho (artigo 113) e Justiça Militar federal (artigo 124, parágrafo único) significa a intromissão do Poder Legislativo da União no Poder Judiciário dos Estados, com ofensa à norma do artigo 60, parágrafo 4o, III da CRFB/88.

Portanto, não se pode impor ao Tribunal Estadual normas disciplinando a eleição dos cargos de direção existentes na Lei Complementar no 35/79, (cf. artigo 102).

A LOMAN em vigor desde 1979 foi editada sob a ordem constitucional superada, pois o artigo 112, parágrafo único da Emenda Constitucional no 01 de 1969 enunciava: “Lei complementar, denominada Lei Orgânica da Magistratura Nacional, estabelecerá normas relativas à organização, ao funcionamento, à disciplina, às vantagens, aos direitos e aos deveres da magistratura, respeitadas as garantias e proibições previstas nesta Constituição ou dela decorrentes”. A norma do artigo 144 da mesma Emenda Constitucional no01 de 1969 enunciou que “Os Estados organizarão a sua justiça, observados os artigos 113 a 117 desta Constituição, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional e os dispositivos seguintes (...).”

Infere-se pelo exame do Texto Constitucional suplantado que, na vigência da Constituição imposta pela EC no 01/69 os Estados tiveram a sua autonomia federalista reduzida no que tange à organização da sua Justiça, vinculada às normas da Lei Orgânica da Magistratura Nacional editada em 1979 (LC 35). Mas a Constituição cidadã de 1988, promulgada em ambiente democrático, não repetiu aquelas normas e conferiu maior autonomia aos Estados da federação, ao reconhecer o autogoverno dos Tribunais Estaduais, expressão do federalismo e com maior alcance do que a autonomia administrativa indicada no artigo 99 da CRFB/88. Na vigência da Constituição de 1988, a disciplina da matéria relativa ao processo de escolha dos dirigentes dos Tribunais Estaduais na LOMAN viola o pacto federativo e o princípio da separação dos Poderes, com ofensa as clausulas pétreas da CRFB/88 descritas no artigo 60, parágrafo 4o, I e III.

Importante destacar a advertência do Min. LUÍS ROBERTO BARROSO, do Egrégio SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, no sentido de que “uma Constituição não é só técnica. Tem de haver, por trás dela, a capacidade de simbolizar conquistas e de mobilizar o imaginário das pessoas para novos avanços” [26], alertando ainda que “deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional  brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo (grifei).”[27] O mesmo Professor transcreve a lição crítica de BARBOSA MOREIRA:

“Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se um véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina da matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou. É um tipo de interpretação... em que o olhar do intérprete dirige-se antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele capta é menos a representação da realidade que uma sombra fantasmagórica.” [28]

Não se pode desconsiderar ainda que, o artigo 57, parágrafo 4o da CRFB/88, que disciplina a eleição das Mesas Diretoras do Senado Federal e da Câmara dos Deputados e veda a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente, não é de observância obrigatória pelos Estados, em decorrência da sua autonomia constitucional no federalismo adotado pela Constituição de 1988, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, valendo mencionar as decisões na ADIn 792 e ADIn 793.

Processo: ADI 792/RJ

Relator (a): MOREIRA ALVES

Julgamento: 26/05/1997

Órgão Julgador: Tribunal Pleno

Publicação: DJ 20-041997 PP-00104 EMENT VOL–02027-02 PP-00248

Parte(s): PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA – PDT.

ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO RIO DE JANEIRO

Ementa

Ação direta de inconstitucionalidade. Ataque à expressão "permitida a reeleição" contida no inciso II do artigo 99 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, no tocante aos membros da Mesa Diretora da Assembléia Legislativa.

- A questão constitucional que se coloca na presente ação direta foi reexaminada recentemente, em face da atual Constituição, pelo Plenário desta Corte, ao julgar a ADIN 793, da qual foi relator o Sr. Ministro CARLOS VELLOSO. Nesse julgamento, decidiu-se, unânimemente, citando-se como precedente a Representação n 1.245, que "a norma do § 4º do art. 57 da C.F. que, cuidando da eleição das Mesas das Casas Legislativas federais, veda a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente, não é de reprodução obrigatória nas Constituições dos Estados-membros, porque não se constitui num princípio constitucional estabelecido". Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.

ADIn N. 793-9

RELATOR: MIN. CARLOS VELLOSO

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA ESTADUAL: MESA DIRETORA: RECONDUÇÃO PARA O MESMO CARGO. Constituição do Estado de Rondônia, art. 29, inc. I, alínea b, com a redação da Emenda Const. Estadual nº 3/92. C.F., art. 57, § 4º. TRIBUNAL DE CONTAS: CONSELHEIRO: NOMEAÇÃO: REQUISITO DE CONTAR MENOS DE SESSENTA E CINCO ANOS DE IDADE. Constituição do Estado de Rondônia, art. 48, § 1º, I, com a redação da Emenda Const. Estadual nº 3/92. C.F., art. 73, § 1º, I. I. - A norma do § 4º do art. 57 da C.F. que, cuidando da eleição das Mesas das Casas Legislativas federais, veda a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente, não é de reprodução obrigatória nas Constituições dos Estados-membros, porque não se constitui num princípio constitucional estabelecido. II. - Precedente do STF: Rep 1.245-RN, Oscar Corrêa, RTJ 119/964. III. - Os requisitos para nomeação dos membros do Tribunal de Contas da União, inscritos no art. 73, § 1º, da C.F., devem ser reproduzidos, obrigatoriamente, na Constituição dos Estados-membros, porque são requisitos que deverão ser observados na nomeação dos conselheiros dos Tribunais de Contas dos Estados e Conselhos de Contas dos Municípios. C.F., art. 75. IV. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente, em parte. * noticiado no Informativo 65

Portanto, no âmbito dos Legislativos Estaduais, é possível a edição de normas sobre reeleição da Mesa Diretora, tratando-se de matéria interna corporis. O legislador constituinte originário não interferiu na autonomia federalista dos Estados federados para organização da direção dos seus parlamentos e adotou a mesma postura com relação ao Poder Judiciário dos Estados, restringindo a delegação ao Legislativo para organização da Justiça Eleitoral (CRFB/88, artigo 121), da Justiça do Trabalho (artigo 113) e da Justiça Militar federal (artigo 124, parágrafo único), abstendo-se de repetir nos artigos 93 e 96, I, a da CRFB/88 as normas de delegação previstas nos artigos 114 e 144 da Emenda Constitucional 01/1969.

Merece registro ainda a norma do artigo 128, parágrafo 3o da Constituição da República, no sentido de que “os Ministérios Públicos dos Estados e o do Distrito Federal e Territórios formarão lista tríplice dentre integrantes da carreira, na forma da lei respectiva, para escolha de seu Procurador-Geral, que será nomeado pelo Chefe do Poder Executivo, para mandato de dois anos, permitida uma recondução." Portanto, sendo expressamente prevista a recondução ao cargo do Procurador Geral, não há razão constitucional alguma para evitar que os Tribunais Estaduais disciplinem a recondução ao cargo diretivo, pois seria incongruente com o sistema constitucional reconhecer a possibilidade de recondução ao Chefe do Ministério Público Estadual e negar a mesma recondução ao Chefe do poder Judiciário dos Estados, quando não existe vedação expressa no Texto Constitucional.

Em suma, a Constituição de 1988 não delegou ao legislador infraconstitucional a disciplina da matéria relativa à organização dos Tribunais Estaduais, cabendo a cada Tribunal a sua normatização no Regimento Interno, inclusive com a possibilidade de reeleição, nos moldes da recondução das Mesas Diretoras dos Parlamentos e da chefia do Ministério Público Estadual.

Sobre o autor
Fabio Costa Soares

Juiz de Direito – TJRJ. Mestre em Direito Processual – UERJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Fabio Costa. Eleição direta para cargos da administração dos tribunais:: autogoverno da magistratura e autonomia dos tribunais estaduais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4383, 2 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33154. Acesso em: 22 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!