4. Dano existencial na Relação Laboral
Voltado a “tutelar lesão a um direito fundamental da pessoa humana” que não se confunde com dano moral, tratando-se de uma nova espécie de dano extrapatrimonial, a qual se verifica a partir da infringência de um “não fazer, ” ou como também define Flaviana Rampozzo: se fundam na “renúncia involuntária às atividades cotidianas de qualquer gênero” em função da dedicação exigida pelo labor.
Ao discorrer sobre o tema, o Professor Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho introduz a ideia do também professor Alaim Supiot, ao destacar que:
A razão humana como não sendo um dado imediato da consciência, sendo antes um produto de instituições que permitem que cada homem assegure sentido a sua existência, encontre um lugar na sociedade e lá possam expressar seu próprio talento.
Partindo de tal premissa, observa-se que o homem se realiza como ser, quando se relaciona nas mais diversas instituições da sociedade, assim, a existência pressupõe a participação do homem em tantas quantas instituições que lhe garantam o bem estar, quando lhe é tolhido esse direito fundamental as consequências se irradiam em todo o seio da social.
Ocorre o dano existencial quando o ofendido se vê cerceado de direito fundamental, constitucionalmente assegurado, de, escolher o que fazer, ou não, de seu tempo livre. Em suma, ele se vê despido de seu direito à liberdade de escolha o que por consequência retira-lhe a condição humana de viver com dignidade.
Sob o viés constitucional, a carta magna de 1988 traz no seu bojo o chamado direito à desconexão, relacionado aos direitos fundamentais relativos as normas de saúde, higiene e segurança do trabalho dispostas no artigo 7º, incisos XIII, XV, XVII e XXIIcombinado com o artigo [196].
Na lição de Carmen Camino, tem-se a seguinte definição quanto ao direito à desconexão na justiça laboral:
"Esse direito tem uma contraface interessante, porquanto pressupõe, também, a obrigação do empregado de não trabalhar no período correspondente, espécie de obrigação de não-fazer (vide art. [138] da CLT). Tendo-se presente a bilateralidade do contrato de trabalho, o direito às férias do empregado corresponde a uma obrigação do empregador, também de dupla natureza: de não-fazer (abster-se de exigir trabalho) e de dar coisa certa (pagar o salário do período).”
Contudo, tal previsão legal não se esgota na seara constitucional, resguardando o legislador atenção na legislação extravagante, a exemplo o artigo 6º da Lei do SUS, que visa executar ações de proteção à saúde do trabalhador.
O Dano Existencial ou dano à existência emerge na relação de trabalho diante da sistemática conduta patronal que cotidianamente impõe jornadas de trabalho além dos limites legais, causando verdadeira anulação do indivíduo, que deixa de vivenciar atividades recreativas, culturais, esportivas, perdendo considerável parte do convívio familiar, sendo reduzido a mera ferramenta de trabalho, frustrando-o de se empenhar no seu projeto de vida, logo, perdendo a própria existência em decorrência desse vazio.
Sobre o tema, concluiu Amaro Alves de Almeida Neto:
(...) toda pessoa tem o direito de não ser molestada por quem quer que seja, sem qualquer aspecto da vida, seja físico, psíquico ou social. Submetido ao regramento social, o indivíduo tem o dever de respeitar e o direito de ser respeitado, porque ontologicamente livre, apenas sujeito às normas legais de conduta. O ser humano tem o direito de programar o transcorrer de sua vida da melhor forma que lhe pareça, sem a interferência nociva de ninguém. Tem a pessoa o direito às suas expectativas, aos seus anseios, aos seus projetos, aos seus ideais desde os mais singelos até os mais grandiosos: tem o direito a uma infância feliz, a construir uma família, estudar e adquirir capacitação técnica, obter o seu sustento e o seu lazer, ter saúde física e mental, ler, praticar esporte, divertir-se, conviver com os amigos, praticar sua crença, seu culto, descansar na velhice, enfim, gozar a vida com dignidade. Essa é a agenda do ser humano: caminhar com tranquilidade, no ambiente em que sua vida se manifesta rumo ao seu projeto de vida.
Outro aspecto importante refere-se que além da dedicação exclusiva exigida, o trabalhador é privado de furtar-se do trabalho quando eventualmente tenha que acompanhar um evento próprio de sua família, como uma apresentação de um filho na escola, acompanhar a sua primeira comunhão, quando em verdade a tarefa que tinha de cumprir poderia ser adiada sem maior consequência as atividades da empresa.
Destaca-se, nesse sentido, o seguinte fragmento da lição de Flaviana Rampozzo Soares:
A tutela à existência da pessoa resulta na valorização de todas as atividades que a pessoa realiza, ou pode realizar, tendo em vista que tais atividades são capazes de fazer com que o indivíduo atinja a felicidade, exercendo, plenamente, todas as faculdades físicas e psíquicas. Além disso, a felicidade é, em última análise, a razão de ser da existência humana.
O que se evidência na maioria das vezes é que tamanha é a subordinação do trabalhador que o mesmo acaba por perder a capacidade de insurgir a tal situação, tornando-se numa espécie de servo fiel aos desmandos do empregador, em face da hipossuficiência havida na relação laboral, por isso não se pode cogitar o perdão tácito ao se perpetuar no tempo tal condição.
Amaro Alves, define dano existencial da seguinte forma:
“Consiste na violação de qualquer um dos direitos fundamentais da pessoa, tutelados pela Constituição Federal, que causa uma alteração danosa no modo de ser do indivíduo ou nas atividades por ele executadas com vistas ao projeto de vida pessoal, prescindindo de qualquer repercussão financeira ou econômica que do fato da lesão possa decorrer. ”
Dessa forma, tem-se por existencial em razão do impacto gerado pelo dano, que provoca um vazio existencial na pessoa que perde a fonte de gratificação vital.
O ser humano, tende sempre a extrair o máximo das suas potencialidades, por esta razão, as pessoas permanentemente planejam o futuro a fim de realizar os planos e metas estabelecidos, no sentido de concretizar a sua existência à realização do projeto de vida.
Observa-se ainda que não diga respeito à esfera íntima própria do dano moral, mas decorre em função da frustração de uma projeção, que impede a realização pessoal, determina a reprogramação e obriga um relacionar-se de modo diferente no contexto social.
No ponto, para a caracterização do dano existencial, deve haver o preenchimento dos pressupostos da reparação civil genéricos, quais sejam: nexo de causalidade entre o ato ilícito e o dano, alinhados com o os pressupostos específicos.
Nessa esteira, o dano existencial é integrado por dois elementos nucleares discretamente distintos, contudo necessários para diferencia-lo das demais espécies quais sejam: a usurpação do projeto de vida ou da vida de relações.
Destaca, Júlio César Bebber que o dano ao projeto de vida associa-se a tudo aquilo que determinada pessoa decidiu fazer com a sua vida. Sendo assim, o ilícito perpetrado que impede a plena realização da pessoa, deve ser considerado um dano existencial.
Sobre o mesmo prisma, Hidemberg Alves da Frota, aponta que o direito ao projeto de vida somente é efetivamente exercido quando o indivíduo concentra parte de seu tempo à própria autorrealização, canalizando suas escolhas para a realização e alcance das metas traçadas como ideais.
De outra banda, o dano à vida de relação se caracterizara, através de ofensas físicas ou psíquicas obstaculizem o indivíduo de gozar ainda que parcialmente, de atividades meramente recreativas fora do âmbito laboral, como a prática de esportes, o turismo, estabelecer vínculos sociais com seus pares, participar de agremiações recreativas, entre outros.
Considerando que esse impedimento interfere diretamente no estado de ânimo do trabalhador, o que por via de consequência, acaba por afetar o seu relacionamento social e profissional, reduzindo suas chances de crescimento e desenvolvimento no trabalho, o que reflete negativamente no seu desenvolvimento patrimonial uma vez que tamanha é a carga estressora a que está submetido, que perde parcela considerável de motivação essencial para uma produção mais eficaz, trabalhando desmotivado, estando mais suscetível a doenças profissionais e acidentes de trabalho.
Como já sinalizado, quanto a ofensa à vida de relação, tem-se como um dano à vida em sociedade, ou limitação de viver em sociedade e usufruir de todas as trocas que esta oferece, as quais invariavelmente acrescem significativamente no próprio desenvolvimento humano e na produção do indivíduo, bem como na sua esfera de trabalho, como bem observa Amaro Alves de Almeida Neto:
" indica a ofensa física ou psíquica a uma pessoa que determina uma dificuldade ou mesmo a impossibilidade do seu relacionamento com terceiros, o que causa uma alteração indireta na sua capacidade de obter rendimentos ".
Na mesma linha, define Hidemberg Alves da Frota, como sendo um prejuízo as relações interpessoais do indivíduo, nos mais diversos ambientes e formas, que permite ao indivíduo se desenvolver ao dividir com seus pares a experiência humana, compartilhando ideologias através do diálogo e da construção de opiniões variadas promovidas pelo exercício da convivência.
Desta feita, o dano à vida de relação, sofrido pelo empregado em decorrência de condutas ilícitas, regulares, perpetradas pelo empregador, como a constante utilização de mão de obra em jornadas extremamente longas, é causa limitativa para que o empregado possa se desenvolver em outras atividades cotidianas, primeiro em razão do tempo reduzido que não lhe sobeja e, segundo, em razão do pleno esgotamento físico e mental tendo o escasso tempo livre apenas para recompor o desgaste cotidiano e preparar-se para a nova jornada de trabalho que se iniciará no próximo dia.
Importante salientar o entendimento de que o dano existencial, por afetação da vida de relação, não se caracteriza somente no transcurso do tempo, pode-se sim, verificar a sua incidência diante de um único ato, como explica Jorge Cavalcante:
“Não se pode, contudo, descuidar da hipótese de o dano à vida da relação poder ser causado por um único ato. Um bom exemplo seria o do empregador que compele determinado empregado a terminar determinada tarefa, que não era tão urgente ou que poderia ser concluída por outro colega, no dia, por exemplo, da solenidade de formatura ou de primeira eucaristia de um de seus filhos, impedindo-o de comparecer à cerimônia.”
Exemplos como o acima citado, mormente confundem-se com os danos morais puros, no entanto deve se observar com a máxima acuidade possível que a negativa da dispensa justificável, no caso, acarretará uma perda imensurável, uma vez que lhe é tolhido do trabalhador de ter acompanhado um rito de passagem único de um ente querido.
Nesse diapasão, ressalta-se que a Constituição de 1988 expressamente elevou a entidade familiar como base da sociedade merecedora de especial proteção pelo Estado, a qual é investida de direitos e deveres tais como pleno desenvolvimento dos filhos com acesso a saúde e educação, conforme se depreende de seus artigos [226] e[227].
Sobre esse enfoque, observa Maria Vittoria Ballestrero que cumpre ao empregador, além de guiar as diretrizes do seu empreendimento, orientando os trabalhadores de forma que tenham uma produtividade rentável, observar que tal exigência esbarra na limitação quanto ao esgotamento físico e psíquico desse trabalhador, que ao fim de sua jornada de trabalho ainda tenha uma reserva de energias suficientes para se dedicar a sua família.
No Direito do Trabalho, visando dar efetividade ao tema, o legislador criou normas que visam equilibrar o período de trabalho com os períodos livres de interesse íntimo do trabalhador, limitado o tempo de atividades laborais para que sobeje ao indivíduo tempo suficiente para fruí-lo como melhor entender.
Destarte, conforme será tratado no próximo ponto, será possível entender qual a dinâmica utilizada pela justiça do trabalho para reconhecer a jornada de trabalho excedente, ou a supressão de férias sucessivas, capaz de ensejar a reparação por configurar dano existencial, bem como a dispensa, em alguns casos, da prova de afetação, se concretizando in re ipsa.