5. Reconhecimento e da aplicação
A doutrina e parte da jurisprudência entendem ser passível de constatação objeta a caracterização dos danos existenciais, através da análise dos pressupostos de caracterização, quais sejam: nexo causal entre o dano e ação ou omissão ilícita, caracterizada pela infringência das normas trabalhistas quanto as questões relativas ao descanso do trabalhador, como limitação de jornada, repouso remunerado, supressão de férias e negativas de ausências justificadas por imperativa necessidade intima ou pessoal; correlacionados aos elementos próprios da espécie, tidos como a interpelação à consecução do projeto de vida e a situação futura com a qual deverá resignar-se a pessoa ou o prejuízo à vida de relação.
A fim de clarear a situação, por oportuno se trazer ao lume à análise do julgado oriundo do Tribunal Superior do Trabalho que debateu o caso concreto, considerando todos os aspectos ora abordados.
Dispõe o aresto, que uma empregada da caixa de assistência dos servidores do Estado De Mato Grosso Do Sul, permaneceu por dez anos privada do direito de gozar férias.
Na decisão do tribunal de origem, o entendimento dos desembargadores baseava-se de que não seria possível reparar através de indenização por danos existenciais, uma vez que a reparação já se perfectibilizava através da norma infraconstitucional, conforme asseverou o relator:
“o legislador infraconstitucional, já atento a essa situação (não concessão de férias no período legal), garantiu ao trabalhador, como forma de compensá-lo, o direito de pagamento de férias em dobro (art. [137], CLT). ”
Em face da decisão do colegiado, a reclamada manejou recurso de revista à corte superior, alegando que havia infringência da norma constitucional disposta no Art. 5º, inciso X, por violação da vida privada e demais direitos personalíssimos da dignidade da pessoa humana.
Por seu turno, o tribunal superior do trabalho acolheu a tese da reclamante aduzindo que “a questão não se refere ao pagamento de férias não concedidas, e sim à violação do direito às férias."
Reiterou a corte de que a negligência da parte reclamada ao obstar as férias da reclamante, demonstrou claro ilícito às normas laborais ocasionando a violação dos direitos personalíssimos da parte afetada, por atentar contra a saúde física, mental, e a sua vida privada.
Quanto à prova de afetação, a jurisprudência ainda se mostra oscilante, havendo entendimento de que a parte deve fazer prova da afetação ao seu projeto de vida ou a sua vida de relação, bem como, há também que tal prova seja dispensável, presumindo-se o dano ou considerando-o in re ipsa, sendo suficiente a conduta ilícita.
Tal ponto é de suma importância na caracterização do dano, considerando que a princípio, o entendimento da corte superior presume que a infringência reiterada das normas relativas ao descanso do trabalhador é suficiente para caracterizar o dano existencial, uma vez que há afetação de norma de direito fundamental.
Coaduna com tal tese o acórdão proferido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região ao julgar o caso de um empregado que trabalhava 72 horas suplementares, por semana, o que lhe obstava o convívio social e familiar.
Na decisão de primeiro grau, a magistrada entendeu que “se houve renúncia ao convívio social, esta foi voluntária, havendo, em contrapartida, a justa compensação pecuniária material. ” Não sendo portanto reparável por não configuração de qualquer dano de ordem extrapatrimonial, quanto mais não haver notícias quanto a insatisfação da carga de trabalho.
Irresignado, o reclamante manejou recurso ordinário ao tribunal aduzindo que o pagamento das horas suplementares não inibe a condenação postulada, uma vez que o dano pleiteado deveria ser observado por outro prisma.
Dessa forma, entendeu o colegiado que muito além da mera indenização material pelos serviços prestados, o caso merecia especial atenção em função da infringência do direito a ser tutelado.
Jornadas de trabalho exaustivas, com prestação de labor em sobrejornada acima do limite estabelecido pela lei (art. [59], caput, da CLT), constitui causa de danos não apenas patrimoniais ao trabalhador, mas, principalmente, importa violação a direitos fundamentais e o aviltamento da saúde e bem-estar do empregado.
Quanto à prova de afetação, entendeu o relator de que é pressumível, uma vez que os empregados, em sua esmagadora maioria, não conseguem ter a dimensão da violação de seus direitos tampouco suas consequências, estando ao jugo do empregador, impotentes diante da própria ignorância.
Inegavelmente, a prestação de trabalho em jornadas exaustivas, com labor habitual e diário acima dos limites estabelecidos pela lei, além do máximo tolerável para permitir uma existência digna ao trabalhador, causa dano presumível aos direitos da personalidade do empregado (dano moral/existencial in re ipsa), dada a incúria do empregador na observância dos direitos fundamentais e básicos estabelecidos pela lei quanto à duração da jornada de trabalho, em especial os limites para exigência de horas suplementares e ao mínimo de descanso exigido para recomposição física e mental do trabalhador.
Destaca-se ainda, a fim de bem ilustrar a celeuma, a seguinte decisão oriunda do Tribunal Regional do Trabalho do Estado do Paraná:
NO EXISTENCIAL. dano moral. DIFERENCIAÇÃO. CARGA DE TRABALHO EXCESSIVA. FRUSTRAÇÃO DO PROJETO DE VIDA. PREJUÍZO À VIDA DE RELAÇÕES. O dano moral se refere ao sentimento da vítima, de modo que sua dimensão é subjetiva e existe in re ipsa, ao passo que o dano existencial diz respeito às alterações prejudiciais no cotidiano do trabalhador, quanto ao seu projeto de vida e suas relações sociais, de modo que sua constatação é objetiva. Constituem elementos do dano existencial, além do ato ilícito, o nexo de causalidade e o efetivo prejuízo, o dano à realização do projeto de vida e o prejuízo à vida de relações. Caracteriza-se o dano existencial quando o empregador impõe um volume excessivo de trabalho ao empregado, impossibilitando-o de desenvolver seus projetos de vida nos âmbitos profissional, social e pessoal, nos termos dos artigos 6º e [226] da Constituição Federal. O trabalho extraordinário habitual, muito além dos limites legais, impõe ao empregado o sacrifício do desfrute de sua própria existência e, em última análise, despoja-o do direito à liberdade e à dignidade humana. Na hipótese dos autos, a carga de trabalho do autor deixa evidente a prestação habitual de trabalho em sobrejornada excedente ao limite legal, o que permite a caracterização de dano à existência, eis que é empecilho ao livre desenvolvimento do projeto de vida do trabalhador e de suas relações sociais. Recurso a que se dá provimento para condenar a ré ao pagamento de indenização por dano existencial.
Reconhecida a ocorrência do dano existencial, entende a jurisprudência oriunda do Tribunal Regional do Trabalho que a o valor pecuniário da reparação deve atender aos “princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, bem como ressarcir o obreiro de seu prejuízo, sem descuidar, também, do caráter pedagógico da condenação, buscando inibir o empregador de repetir o ato danoso. ”
Considerado as diretrizes iniciais de persecução do valor, é analisada extensão dos danos sofridos pelo autor, sua capacidade econômica a fim de inviabilizar o enriquecimento sem causa, bem como a do ofensor, a fim de aferir o seu aporte econômico para que o valor não se transforme em mera cláusula liberatória, o grau de culpa da ré, o tempo da prestação de trabalho, nesse sentido vale a lição de José Felipe Ledur, veja-se:
A condenação em reparação de dano existencial deve ser fixada considerando-se a dimensão do dano e a capacidade patrimonial do lesante. Para surtir um efeito pedagógico e econômico, o valor fixado deve representar um acréscimo considerável nas despesas da empresa, desestimulando a reincidência, mas que preserve a sua saúde econômica.
Superado este ponto, oportuno ater-se ao detalhe quanto a existência de certa confusão ao nomear o instituto jurídico, conforme comumente se vê nos acórdãos a expressão - dano moral do tipo existencial - sobre esse ponto, destaca Cavalcanti:
O dano moral consiste na lesão sofrida pela pessoa no tocante à sua personalidade. Envolve, portanto, um aspecto não econômico, não patrimonial, que atinge a pessoa no seu âmago. O dano existencial, por sua vez, independe de repercussão financeira ou econômica, e não diz respeito à esfera íntima do ofendido (dor e sofrimento, características do dano moral). Trata-se de um dano que decorre de uma frustração ou de uma projeção que impedem a realização pessoal do trabalhador
Ainda sobre o tema, Tula Wesendonck traz ao lume uma definição mais precisa sobre o princípio, que ainda carece de precisão técnica quando verificada a sua aplicação, havendo flagrante imprecisão na terminologia utilizada, o que via de consequência pode trazer certo prejuízo à parte, considerando a não possibilidade de cumulação com os danos morais stricto sensu, embora tratando-se de instituto jurídico diverso.
Assim como o dano moral e o dano estético são cumuláveis entre si ao teor da Súmula 387 do STJ, destaca a autora:
“os danos existenciais podem ser entendidos como uma espécie do gênero mais amplo dos danos imateriais ou extrapatrimoniais, que entre nós costumam ser chamados de danos morais. ”
Eugênio Facchini, sobre o mesmo ponto, vai além, fazendo clara distinção entre um e outro como espécies, embora estejam sobre a guarida do mesmo gênero, o autor esmiúça as sutilezas que os distinguem, a fim de demonstrar que embora tênue a linha que os divide, não se pode cogitar que sejam iguais, conforme assevera:
“Não se trata apenas de trocar seis por meia dúzia, alterando apenas a nomenclatura. Trata-se de um novo enfoque, pois permite que se insiram subclassificações, identificando espécies de danos que integram o gênero danos imateriais, cada um com seus próprios requisitos e características”.
Outro aspecto importante trata-se da repercussão do dano existencial na saúde do trabalhador, considerando que a sobrecarga de trabalho além dos prejuízos na vida de relação e ao projeto de vida, há repercussões ao fim e ao cabo que acarretam danos patrimoniais, diminuindo a capacidade econômica da vítima e prejuízo direto a sua saúde.
Destaca Maurício Godinho Delgado que a jornada de trabalho nos moldes aplicados no Brasil acaba por afetar o trabalhador além de sua saúde, nas suas relações familiares e correspondentes crianças e adolescentes envolvidos.
Explica ainda que ocorrendo a ampliação da jornada, com prestação de horas extras, aumentam, as chances de ocorrer doenças profissionais, ocupacionais ou acidentes do trabalho, ao passo que sua redução diminui de maneira significativa tais probabilidades da denominada infortunística do trabalho.
Portanto, percebe-se que esse quadro advindo da violação à existência acarretará o aparecimento de doenças do trabalho que podem pôr em risco a saúde física e mental do empregado, nesse aspecto, frisa-se que a maior exposição da saúde do trabalhador, maior também será afetação de seu sistema imunológico, aumentado a vulnerabilidade em face de doenças do trabalho, em razão da não possibilidade de regeneração em face da carga horária exigida.
Considerando que a lesão por esforços repetitivos defluiu de uma exposição excessiva aos fatores que a desencadeiam, mormente ligados à ergonomia, tal exposição aliadas as péssimas condições de trabalho acabam por prejudicar a vida do lesionado, que se vê limitado de realizar atividades até mesmo cotidianas.
Ainda nesse contexto, destaca-se a lição de Jorge Cavalcanti:
O direito fundamental à saúde está diretamente relacionado à qualidade de vida dos trabalhadores no ambiente de trabalho e visa promover a sua incolumidade física e psíquica durante o desenvolvimento da sua atividade profissional, de modo que o trabalho possa ser executado de forma saudável e equilibrada e que o trabalhador possa de lá sair em condições de desenvolver outras atividades, desfrutando assim dos prazeres de sua existência enquanto ser humano.
Ao que se vê os infortúnios da jornada além do limite constitucional previsto no artigo 7º, inciso XIII, são, em regra, um dos fundamentos para a caracterização do dano na justiça do trabalho, considerando que seus prejuízos irradiam efeitos em um sem fim de consequências negativas ao trabalhador, que embora recompensado pelo labor extraordinário, tal valor não se revela como insuficiente para compensar o prejuízo causado.
Sobre tal aspecto, destaca-se:
Para a barreira temporal da vida humana como fator que dificulta a plena reparação de um dano ao projeto de vida:"A vida — ao menos como a conhecemos — é uma só, e tem um limite temporal, e a destruição do projeto de vida acarreta um dano quase sempre verdadeiramente irreparável, ou, uma vez ou outra, dificilmente reparável."
Em suma, negar ao ser humano o direito à reparação pelo dano injusto sofrido, seja qual for a sua natureza, significa contrariar frontalmente um dos princípios básicos da responsabilidade civil aplicada ao direito do trabalho, qual seja da reparação integral.
Nesse contexto, utilizando-se do preceito contido no art. [944] do Código Civil, com o permissivo do artigo 8º, parágrafo único da CLT o princípio da reparação integral do dano, utilizado pela justiça laboral visa à plena reparação em face do injusto sofrido.
No caso, ao se trabalhar sobre a ótica do dano extrapatrimonial, há de se reconhecer a impossibilidade objetiva de se alcançar a reparação total, dado o grau de subjetividade da afetação, contudo, conforme leciona Judiht Martins Costa, deve se perseguir tal ideal.
Como bem arremata Gilberto Schäfer, conceituar dano ao projeto de vida é dar projeção à proteção extrapatrimonial a qual a Constituição Federal da guarida em seu art. 5º., V e X, delimitar o tema é de crucial importância para a plena proteção de forma transindividual:
A categoria de Dano ao Projeto de Vida tem a tarefa de precisar os danos imateriais ou morais albergados na Constituição do Brasil (art. 5º., V e X), realizando uma adequada qualificação jurídica de modo a reparar integralmente os danos causados a pessoa humana em seu aspecto individual e coletivo. A proteção ao Projeto de vida permite uma adequada reparação das vítimas de violações indevidas especialmente daquelas ofensas aos direitos humanos – e que as pessoas não sejam tolhidas de realizar as escolhas que elegeram e que o direito possa sancionar adequadamente os violadores destas condutas.
Como se vê, são inúmeros os aspectos a serem observados pelo julgador a fim de identificar, no caso concreto, a incidência do instituto, considerando que ainda há flagrante oscilação quanto a sua conceituação, ainda sendo confundindo como espécie de dano moral.
De tal sorte que, uma vez constatado, o julgador deve observar as regras da reparação integral, na medida do possível, fixando o quantum reparatório que atenda tal finalidade na medida do prejuízo sofrido pela vítima.