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A síndrome de Quico, "campo de luta" e jeitinho

Agenda 22/02/2016 às 14:08

No jogo da democracia, quando as regras não nos agradam, não podemos simplesmente ignorá-las, colocar a bola debaixo de nosso braço e irmos embora. Comenta-se o despropósito de transferirmos nosso exercício da cidadania para o STF.

Aviso aos navegantes: Hoje o assunto é um pouquinho mais polêmico. Há um vídeo no Youtube, em que o professor Daniel Sarmento manifesta-se sobre a estratégia para grupos de liberação do aborto num evento promovido pela Defensoria de São Paulo. Não vou entrar na questão do aborto, meu foco é de outra ordem. Está situado na relação Direito x Política. Ele afirma que o Congresso não é o “campo de luta” para a descriminalização do aborto, e sim o STF. O Congresso é a “pior das hipóteses” para discutir esse tema [1]

Para elucidar melhor, em uma entrevista dada ao site Os constitucionalistas, o mesmo professor disse “O STF é um intérprete importante da Constituição, mas não o seu senhor. Ele também pode errar – e erra às vezes. Há mecanismos sociais e políticos legítimos para lutar pela prevalência de interpretação constitucional distinta da adotada pelo Supremo. Além disso, existe interpretação constitucional fora das cortes – por exemplo, no Parlamento, no espaço público informal, nas reivindicações dos movimentos sociais, na academia -, e ela não pode ser ignorada”. [2]

E, ao ser questionado sobre o STF ser uma Corte ativista, ele declara:

“O conceito de ativismo é objeto de controvérsia. Há quem o utilize com carga necessariamente negativa, como os originalistas, nos Estados Unidos, que empregam o rótulo para criticar a jurisprudência progressista da Corte de Warren. É o caso, na doutrina brasileira, de Elival da Silva Ramos e de Lênio Streck. Eu prefiro adotar um uso neutro do termo, em que o ativismo denota uma atuação mais enérgica e proativa da Corte, que pode ser ou não legítima, dependendo do caso e de uma série de variáveis, que não teria como explicar aqui. Orientei uma brilhante dissertação de Mestrado sobre o tema, de Carlos Alexandre de Azevedo Campos – que deve ser publicada em breve -, em que se sustenta que o ativismo é “multidimensional”, envolvendo inúmeras facetas (Carlos Alexandre falou em ativismo metodológico, processual, horizontal ou estrutural, vertical ou intrainstitucional, dirigista, maximalista e antidialógico).

Acho que o STF tem sido ativista em algumas questões nos últimos quinze anos. Na primeira década de vigência da Constituição, a Corte era mais autocontida, talvez pela hegemonia de Ministros nomeados durante o regime militar, que não se sentiam muito confortáveis no papel de guardiães de uma nova ordem, cujos valores não compartilhavam integralmente.

Considero que a postura mais ativista da Corte foi correta em alguns casos, e equivocada em outros. A decisão sobre a união homoafetiva, por exemplo, me parece ativista, pois o STF se baseou em princípios constitucionais abstratos, de elevado teor moral, para resolver uma questão altamente controvertida na sociedade, não dando tanto peso aos elementos literal e histórico da interpretação constitucional. Foi, na minha opinião, uma excelente decisão, talvez a mais importante da história da Corte em matéria de direitos humanos, que protegeu os direitos mais básicos de uma minoria estigmatizada.  Já a decisão de Raposa Serra do Sol, na parte em que impôs condicionantes às futuras demarcações de terras indígenas, também foi ativista. Neste caso, porém, acho que foi um ativismo ilegítimo: o STF praticamente atuou como legislador e impôs graves restrições a direitos básicos de uma minoria étnica vulnerável, que estão em total desacordo com o texto constitucional e com a normativa internacional sobre direitos humanos. Ao julgar os embargos declaratórios opostos contra tal decisão, o lado negativo das condicionantes foi em certa medida suavizado, já que o Supremo esclareceu que elas não são vinculantes para outros casos, mas não foi eliminado, uma vez que tais restrições aos direitos indígenas foram confirmadas, tendendo a pautar a atuação do Judiciário brasileiro em outros processos”. [2]

Eu volto. Qual o conceito de ativismo de Lenio Streck que Sarmento considera “negativo”? Digo-lhes: toda decisão judicial que com base em convicções pessoais (argumentos teleológicos, consequencialistas etc.) fere a legalidade. Legalidade é entendida no sentido de Elías Diaz: legalidade que se constitui sob o manto da constitucionalidade. São palavras das obras do gaúcho. Por exemplo, na questão da união estável gay o professor Lenio Streck se manifestou contrariamente por ser uma afronta aos limites semânticos do art. 226, §3º, CF [3]. E antes que um incauto o acuse de “positivista”, leia o texto "E a professora me disse: você é um positivista." [4]

Ocorre que defender a legalidade (leis e Constituição) num país como o Brasil é muito difícil. Por quê? Pois as pessoas lidam com o “público” somente levando em conta os próprios interesses, as ideologias etc. E na cultura do jeitinho se procura sempre burlar quando é possível. Não entendem que a Constituição impõe limites e, muitas vezes, são duros. Como uma “mãe” que diz ao filho o que pode e não pode fazer. Respeitar os limites: é assim que se constrói um espaço plural e multicultural. 

Sarmento, por sinal, teve mais um embate teórico com Lenio quando interpretou equivocadamente o que este disse sobre pré-compreensão gadameriana e afirmou que se tratava dos preconceitos. Divergiram. E mais uma vez divergem: para Sarmento, há o bom e o mau ativismo. Como se verifica a “bondade” e a “maldade” do ativismo? Lenio já esclareceu isso [5]. Para Sarmento, há o ativismo legítimo e o ilegítimo. Quais são as balizas de legitimidade quando não se respeita a Constituição? Volto à duríssima pergunta que Lenio fez quando interpelado por um jurista-ativista LGBT: Direito é militância? Direito é joguinho retórico? Brinco: talvez o busílis resida no ativismo em seus múltiplos sentidos.

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O carioca responderia: sim! Afinal, o quê se pode depreender do que ele fala no vídeo senão isso? Passando uma “tática” de burlar o jogo democrático. Por quê? Quem é o responsável pelo processo legislativo? O Congresso. E para ter uma mudança desse talante (descriminalizar o aborto) quem deve ficar incumbido? O Congresso. Onze ministros não podem substituir legitimamente as duas Casas Legislativas num assunto tão delicado, em que envolve divergências a quilo. Portanto, o STF não é o “guardião da moral da nação” [6].

É o que a jurista alemã Ingeborg Maus demonstra à exaustão, mormente nesse ponto:

“A apropriação da persecução de interesses sociais, de processos de formação da vontade política e dos discursos morais por parte da mais alta corte é alcançada mediante uma profunda transformação do conceito de Constituição: esta deixa de ser compreendida — tal qual nos tempos da fundamentação racional-jusnaturalista da democracia — como documento da institucionalização de garantias fundamentais das esferas de liberdade nos processos políticos e sociais, tornando-se um texto fundamental a partir do qual, a exemplo da Bíblia e do Corão, os sábios deduziriam diretamente todos os valores e comportamentos corretos. O TFC, em muitos de seus votos de maioria, pratica uma "teologia constitucional"”. [7]

Em outras palavras, o que a fala de Sarmento parece indicar é uma proposta de instar grupos de pressão para que estes forcem o STF a burlar a Constituição e, pois, as regras do jogo numa democracia. Para ser mais claro: é um “jeitinho” de fraudar a Constituição. Não é muito mais fácil o STF sacar uns princípios da cartola e com uma canetada tornar o aborto lícito via jurisdição constitucional? Sim! Foi o mesmo que a Corte Suprema fez em relação a uma “minoria estigmatizada”, autorizou a união gay com o recurso a “princípios abstratos” e, em 2013, o CNJ editou a resolução para viabilizar a conversão em casamento. Simples, pois! Mais ágil, fácil e eficaz. Aqui, podemos usar a expressão de Barroso quando na ADPF 54, disse que em momentos da história cabe ao STF “desemperrar” o trem. Quando a sociedade não está “madura” para ser tão progressista como o defensor de tal ideia, então uma vanguarda de iluministas toma à frente e conduz o processo à revelia dos não-iluminados? Agora, quem me explica o que é isto o progresso? E outra: progresso para quem? Isso é muito perigoso, não acha? E a democracia? E o voto? E a opinião de cada brasileiro? Há assuntos blindados ao povo? Aos quais este não pode deliberar? O quê diz a Constituição? Constituição para quem, cara pálida? Quem decide são os expertos? Eles sabem o quê é melhor? Eles sabem o quê é um bom ativismo? O quê é legítimo? Por quê eles e não nós também? 

Em um interessante artigo, o prof. Marcelo Cattoni da UFMG fala do problema em se transferir o "nosso destino e o nosso exercício da cidadania para o STF, sob a desculpa da incapacidade dos cidadãos brasileiros de exercerem sua cidadania." Ele prossegue: "A Constituição não é do STF... [Este] não pode compreender o exercício de suas funções como substituição do papel dos cidadãos em uma democracia, sob pena de se dar continuidades a tradições autoritárias com as quais a Constituição vem romper. A Constituição é NOSSA, como um projeto aberto e permanente de construção de uma sociedade de cidadãos livres e iguais; se não, não é Constituição".

Enquanto isso no Olimpo, há quem se arrogue no direito de (des)emperrar a história humana, a dos pobres mortais, incapazes de dirigirem suas vidas por conta própria ou por meio de seus representantes. A democracia fica à mercê da canetada "suprema" que se legitima&esconde sob as audiências públicas. Modéstia à parte, acertei na analogia do STF com o Olimpo bem antes de conhecer esse texto da Maus e esta dizer sobre a “teologia constitucional” extraída da CF-Sagrada com emanação direta dos “deuses”. E, recentemente, vimos um “deus menor” (juiz de direito) ficar irritado com a revelação de sua “natureza” por uma mortal.

Nossa Constituição, a que Ulysses chamou de "Cidadã", é, em muitos aspectos, Cortesã. Não falo por inimizade, é o que mais gosto de estudar em direito. Digo que ela tenta harmonizar, muitas vezes, o "inconciliável". É como Dona Flor e seus dois maridos quando se trata de ideologias, ora mais liberal (Estado mínimo), ora mais estatizante e intervencionista (Estado “obeso”). Embora acredite que a nossa Constituição tenha mais maridos, flertes com outros rapazes, inclusive fizeram um estudo (não me recordo o professor) que mostrava que a questão ideológica dos parlamentares em 1988 era bem equilibrada (desde a extrema-esquerda, esquerda, centro, até a, direita, extrema-direita). Razoável, não? Pluralismo político, pois?

Nesse amálgama, é que o jurista tem que atuar. Como um equilibrista na corda bamba. Como disse Marinho Guzman: "nem tão ao céu, nem tão ao mar". E o que agrava mais a situação é que o Guardião, ao invés de proteger, dita a Dona Flor os rumos que ela deve trilhar, os maridos a quem deve se entregar, ou, na pior das hipóteses, deixam-na refém de só um marido que, valendo-se de sua coloração totalitária, tripudia, espanca, maltrata a pobre Flor que, livre-nos Deus, poderá ser macerada e lançada fora. E os filhos de Flor, aqueles do outro marido, correm perigo. Serão tachados de bastardos e expurgados dos braços maternais. Lançados na vala e perseguidos por todos os jornais. Salvem, Flor, dos seus algozes infernais!

E o Legislativo tem sua parcela de culpa também. Não deixa de ser uma esquisitice o fato de a vítima ajudar o criminoso. Guardadas as proporções, é o que o Legislativo faz em relação ao Judiciário. O primeiro dá “amplos poderes” (a burguesia que compra a corda que será enforcada, para lembrarmos de Lenin) ao segundo, depois quando este se vale dos seus novos instrumentos para sufocar o primeiro, ocorre uma indignação institucional. Por exemplo, a reação de Sarney, quando presidente do CN, em relação a uma decisão polêmica do STF no dia seguinte: Estão ofendendo essa Casa legislativa (Senado).

Por essa e outras, o gaúcho tem razão em estar com Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo (LEER). Quando os alunos são “doutrinados” nessa perspectiva de eu posso usar a Constituição como bem entender e que, se o Congresso não quiser, há quem queira (STF), então fica difícil. O Direito, nesse sentido, é militância e joguinho retórico. Uma massinha de modelar nas mãos do jurista. Faço o que eu quero. E para citar o Eros Grau na Reclamação 4335-5: Eu, como ministro do STF, faço o direito. E a doutrina que nos acompanhe, prontamente ou com relutância.

Para encerrar, cito um trecho do professor Georges Abboud [8]: “No Estado Constitucional, não se admite que o jurista, o agente político ou o cidadão sofra da síndrome do Quico. No jogo da democracia, quando as regras não nos agradam, não podemos simplesmente ignorá-las colocar a bola debaixo de nosso braço e irmos embora.” Resumindo: As regras são claras, como recorda Arnaldo. Se se quiser alterar a legislação quanto ao aborto, deve-se optar pela “pior das hipóteses”, qual seja o povo (titular do poder constituinte originário ou isso é "doutrina vã"?), representado pelo Congresso Nacional, quer se goste, quer não. Acredito que isso não está no primeiro artigo "à toa", "de enfeite". Afinal, a Constituição ainda constitui! Tudo pelo bem da democracia e, se alguém ficar irritado (a), em memória ao Chaves que tanto nos fez rir na infância, de pronto respondo: é que me escapuliu ou fue sin querer queriendo... Deixo meu humilde pedido: Se curtirem, compartilhem!


 Referências

[1] http://www.youtube.com/watch?v=FRRJoJpuZP4

[2] http://www.osconstitucionalistas.com.br/o-stf-nao-e-o-centro-do-constitucionalismo

[3] http://jus.com.br/artigos/13229

[4] http://www.conjur.com.br/2012-ago-23/senso-incomum-professora-disse-voce-positivista

[5] http://www.conjur.com.br/2013-jun-13/senso-incomum-ativismo-existe-ou-imaginacao-alguns

[6] http://www.conjur.com.br/2013-set-05/senso-incomum-supremo-nao-guardiao-moral-nacao

[7] http://www.direitocontemporaneo.com/wp-content/uploads/2014/02/JUDICI%C3%81RIO-COMO-SUPEREGO-DA-SOCIEDADE.pdf

[8] ABBOUD, Georges. 25 anos da Constituição Federal: parabéns à Geni!. In: Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, n. 938, dezembro, 2013.Fonte: http://www.jurisconsultos.org/2014-11-29---olhar.html

Sobre o autor
Diego Ribeiro

Acadêmico de Direito da Universidade Federal Fluminense.<br>Colunista do site Jurisconsultos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Diego. A síndrome de Quico, "campo de luta" e jeitinho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4618, 22 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34509. Acesso em: 25 nov. 2024.

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