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O exercício do direito de voto do usufrutuário de ações da sociedade anônima

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Agenda 02/08/2017 às 14:00

1 Introdução

Este artigo científico visa explanar e questionar uma das diversas omissões legais constantes em nosso ordenamento jurídico. A veterana Lei 6.404, editada em 1976, não prevê resolução de determinados conflitos que podem vir a existir dentro do ramo de atividades de uma Sociedade Anônima.

Mais especificamente, ele objetiva indicar a omissão legal decorrente da análise do artigo 114 da referida carta legislativa, haja vista que este cita anterior ou posterior convenção entre nu-proprietário e usufrutuário de ações da S.A. acerca do exercício do direito de voto, entretanto, se omite ao deixar de declarar qual a saída para o caso de conflito existente entre aqueles sujeitos.

A própria Lei 6.404/1976 dispõe da resolução de conflitos para outros casos também previstos no ordenamento, entretanto, como dito acima, no que diz respeito ao exercício do direito de voto, permanece inerte desde a edição do texto legal em 1976.

A intenção, portanto, é apontar quais os caminhos    que devem ser percorridos pelos jurisdicionados e pelos seus respectivos advogados para que a omissão da lei seja sanada da maneira menos gravosa para ambas as partes, bem como e principalmente, à Sociedade Anônima.

Há de se ressaltar que o fato de o exercício de direito de voto permanecer obstado pela impossibilidade de se efetivar o direito de um dos acionistas que gravou suas ações com o usufruto pode trazer irremediáveis prejuízos para o futuro daquela companhia.

Não é difícil imaginar que decisões que exigem aprovações da assembleia geral sejam de suma importância para o efetivo prosseguimento das atividades de empresa, bem como para a consequente provisão de lucros daqueles que adquiriram ou subscreveram apostando no sucesso daquele empreendimento.

Parte da jurisprudência entende que não cabe ao Magistrado tomar essa decisão, e sim às partes. Por outro lado, há quem diga que referido direito de voto, nesse caso, não deve ser exercido, deixando que os demais acionistas decidam sozinhos. Existem, ainda, outras possibilidades levantadas por doutrinadores e julgadores do nosso Brasil, as quais veremos neste trabalho.

Despertar o interesse de acadêmicos, profissionais e juristas em geral por omissões legais que poderiam ser facilmente preenchidas por meio de edição de nova legislação também é um dos interesses deste trabalho. Promover a discussão acerca da razão da ausência desta previsão legal.

A provocação, o consequente diálogo e a posterior normatização de nossos pensamentos são os fatos geradores das leis que regerão nosso país, ou seja, cabe a nós arguir e discutir as falhas existentes em todo o nosso ordenamento jurídico.

Em curta síntese, é o objetivo final deste trabalho promover a discussão sobre o exercício do direito de voto pelo usufrutuário de ações da S.A. em razão da omissão legal do art. 114 da Lei n. 6.404/1976.


2 CONTEXTO HISTÓRICO DO DIREITO DE EMPRESA E DA SOCIEDADE ANÔNIMA NO BRASIL

2.1 TRANSIÇÃO DO DIREITO COMERCIAL AO DIREITO EMPRESARIAL

No começo das primeiras organizações em sociedade do ser humano – ao menos no que diz respeito às normais comerciais -, as manifestações do comércio tiveram início dentro de uma das mais sofisticadas e antigas sociedades da vida humana: as famílias.

Naquela época, a economia fundava-se na confecção familiar de diversos tipos de produtos para uso próprio que, em um segundo momento, começaram a ser levados à troca, junto de representantes de outras “sociedades”, ambos visando obter utensílios que lhes fossem necessários para sua mantença, escambando referidos objetos e, dessa maneira, atingindo seu maior interesse: a satisfação da sua própria família que laborava na produção deles.

Nesse norte discrimina Coelho (2011, p. 23):

Os bens e serviços que homens e mulheres necessitam ou desejam para viver (isto é, vestir, alimentar-se, dormir, divertir-se etc.) são produzidos em organizações especializadas. Nem sempre foi assim, porém. Na Antiguidade, roupas e víveres eram produzidos na própria casa, para os seus moradores; apenas os excedentes eventuais eram trocados entre vizinhos ou na praça. Na Roma antiga, a família dos romanos não era só o conjunto de pessoas unidas por laços de sangue (pais e filhos), mas também incluía os escravos, assim como a morada não era apenas o lugar de convívio íntimo e recolhimento, mas também o de produção de vestes, alimentos, vinho e utensílios de uso diário.

Entretanto, com o passar dos anos e o legítimo interesse de certos indivíduos em viabilizar em nome dos representantes familiares a troca daqueles objetos, de maneira que lhe facilitassem o escambo, surgiram os sujeitos que apanhavam os utensílios confeccionados pelas famílias em suas próprias residências e levavam-nos à praça para que fossem efetuadas as trocas, observando, logicamente, o interesse de cada uma das partes.

Descreve Venosa (2012, p. 4) que:

As primeiras manifestações do comércio surgiram nos núcleos familiares na antiguidade. A economia era fundada na produção e posteriormente na troca. As relações intersubjetivas de troca eram intermediadas por indivíduos que buscavam os produtos nos núcleos familiares e efetivavam o escambo. Surgem, assim, os comerciantes, que são os sujeitos que realizavam as trocas mediante uma compensação em dinheiro como retribuição à intermediação.

Dessa maneira, ao longo dos anos, os sujeitos que efetuavam referidas transações foram se profissionalizando e oferecendo serviços diferenciados e cada vez mais complexos às famílias que produziam o objeto de suas transações. Estes indivíduos, a partir de então, realizavam as trocas mediante uma compensação pecuniária como retribuição à intermediação do escambo.

Com o passar do tempo, esse conjunto de sujeitos que efetuavam as transações em troca de dinheiro – o que sustentava suas famílias, foi expandindo seus campos de atuação e tornando-se autossuficiente, ultrapassando as fronteiras terrestres e encontrando no comércio marítimo o mais largo dos caminhos para o sucesso.

Sobre esta fase leciona Ramos (2010, p. 2):

É justamente nessa época que se costuma apontar o surgimento das raízes do direito comercial, ou seja, do surgimento de um regime jurídico específico para a disciplina das relações mercantis. Fala-se, então, na primeira fase desse ramo do direito. É a época do ressurgimento das cidades (burgos) e do Renascimento Mercantil, sobretudo em razão do fortalecimento do comércio marítimo.

Assim, levando-se em conta que aquelas transações, agora desvinculadas daquelas primeiras sociedades familiares, tomavam rumos expressivos, fato que fez com que a troca (escambo) começasse a cair em desuso, entra em ação a divisão dos lucros entre produtor (até então as sociedades familiares) e intermediador (o sujeito que levava os objetos confeccionados pelas famílias à troca), sendo esta atividade considerada, portanto, como o mais novo ato do comércio.

Diante disso, tornou-se cada vez mais inviável a omissão normativa quanto à prática destes atos que, diante de sua complexidade, exigiam que fossem reguladas as maneiras de como haveriam de ser pautadas as negociações propostas pelo sujeito (comerciante) ao representante familiar (produtor) e deste com outros indivíduos atuantes na área do comércio.

Surgem, assim, as chamadas Corporações de Ofício, também conhecidas como Corporações de Mercadores, as quais eram grandiosas entidades burguesas que deram início à referida regulamentação para normatizar as relações econômicas dos atos de comércio. Destaca Ramos (2010, p. 2) que “cada Corporação tinha seus próprios usos e costumes, e os aplicava entre os seus membros”.

Nesse sentido, descreve Venosa (2011, p. 4):

Nesse cenário, torna-se inevitável a regulamentação dessa prática econômica, denominada de comércio. Surgem então na Idade Média as Corporações de Ofício, poderosas entidades burguesas que passam a ditar as regrar para a regulamentação dessas relações econômicas e das profissões em geral. Cada Corporação tinha suas regras próprias destinadas a disciplinar as relações entre seus membros.

Leciona, ainda, Oliveira (2004, p. 20):

Em virtude do lugar de destaque que veio adquirindo o comércio na vida social da época e da força sempre crescente da classe comercial, grande importância e autoridade tiveram, bem depressa, também as Corporações dos Mercadores. As Corporações dos Mercadores, que constituíam um dos núcleos mais consideráveis da população da cidade, conservaram zelosamente a autonomia própria, mesmo na organização comunal.

Destacou-se, assim, um direito fundado nos costumes de cada uma das corporações que tratavam das matérias inerentes à prática do comércio de acordo com os costumes e práticas comuns de cada uma das regiões contempladas pela estrutura destas corporações de ofício.

Sobre o tema, extrai-se da obra de Requião (2011, p. 33, grifo do autor):

Em um ambiente jurídico e social tão avesso às regras do jogo mercantil, foram os comerciantes levados a um forte movimento de união, através das organizações de classe que os romanos já conheciam em fase embrionária – os colégios. Entretanto, na Idade Média, essas corporações se vão criando no mesmo passo em que se delineiam os contornos da cidade medieval. Como principal e organizada classe, enriquecida de recursos, as Corporações de Mercadores obtêm grande sucesso e poderes políticos, a ponto de conquistarem a autonomia para alguns centros comerciais, de que se citam como exemplo as poderosas cidades italianas de Veneza, Florença, Gênova, Amalfi e outras.

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Infere-se, ainda, da doutrina de Ramos (2010, p. 2, grifo do autor):

Ocorre que na Idade Média não havia ainda um poder político central forte, capaz de impor regras gerais e aplica-las a todos. Vivia-se sob o modo de produção feudal, em que o poder político era altamente descentralizado nas mãos da nobreza fundiária, o que fez surgir uma série de “direitos locais” nas diversas regiões da Europa. Em contrapartida, ganhava força o Direito Canônico, que repudiava o lucro e não atendia, portanto, aos interesses da classe burguesa que se formava. Essa classe burguesa, os chamados comerciantes ou mercadores, teve então que se organizar e construir o seu próprio “direito”, a ser aplicado nos diversos conflitos que passaram a eclodir com a efervescência da atividade mercantil que se observava, após décadas de estagnação do comércio. As regras do direito comercial foram surgindo, pois, da própria dinâmica da atividade negocial. Surgem nesse cenário as Corporações de Ofício, que logo assumiram relevante papel na sociedade da época, conseguindo obter, inclusive, certa autonomia em relação à nobreza feudal.

Tem-se, então, um período subjetivista do direito comercial, o qual era regulado pelo corporativismo, profissionalismo, bem como pela autonomia das corporações frente às relações comerciais.

Destaca Requião (2011, p. 35):

Temos, nessa fase, o período estritamente subjetivista do direito comercial a serviço do comerciante, isto é, um direito corporativo, profissional, especial, autônomo, em relação ao direito territorial e civil, e consuetudinário. Como o comércio não tem fronteiras e as operações mercantis se repetem em massa, transpira nítido o seu sentido cosmopolita.

Este novo sistema trouxe ao ordenamento a classificação bipartida das relações de direito privado em civis e comerciais, fixando normas peculiares de cada um desses regimes.

Diante da necessidade dos Estados em reivindicarem a chamarem para si o monopólio da jurisdição, as Corporações de Ofício perdem espaço que, posteriormente, foi preenchido pelas leis editadas pelos Estados que, sobremaneira, davam enfoque maior à liberdade e igualdade no exercício das artes e ofícios.

Assim leciona Ramos (2010, p. 4):

As corporações de ofício vão perdendo paulatinamente o monopólio da jurisdição mercantil, na medida em que os Estados reivindicam e chamam para si o monopólio da jurisdição e se consagram a liberdade e a igualdade no exercício das artes e ofícios. Com o passar do tempo, pois, os diversos tribunais de comércio existentes tornaram-se atribuição do poder estatal.

Dessa maneira, em 1804 e 1807 a França editou seu Código Civil e Código Comercial (vigente a partir de 1° de janeiro de 1808), respectivamente. O direito comercial embarca, diante disso, numa segunda fase, podendo-se destacar um direito fixado para normatizar as relações jurídico-comerciais, deixando de lado a fama adquirida pelo direito comercial de que se tratavam de normas reguladoras de atividades profissionais e corporativistas (Corporações de Ofício). Agora, as normas relativas a este instituto eram fixadas pelo Estado.

Frisa Ramos (2010, p. 4):

Assim é que, em 1804 e 1808, respectivamente, são editados, na França, o Código Civil e o Código Comercial. O direito comercial inaugura, então, sua segunda fase, podendo-se falar agora em um sistema jurídico estatal destinado a disciplinar as relações jurídico-comerciais. Desaparece o direito comercial como direito profissional e corporativista, surgindo em seu lugar um direito comercial posto e aplicado pelo Estado.

Destaca Requião (2011, p. 36):

Um fenômeno social e político, todavia, próprio da época de Bonaparte, provocou nova orientação, essa arraigadamente objetivista. O Código Napoleônico de 1807 adotou declaradamente o conceito objetivo, estruturando-o sobre a teoria dos atos de comércio. Agindo assim, os legisladores do Império punham-se a serviço dos ideais da Revolução Francesa, de igualdade de todos perante a lei, excluindo o privilégio de classe. Não se concebia, diante dessa filosofia política, um código destinado a garantir, numa sociedade fundada sobre o princípio da igualdade de todos perante a lei, prerrogativas e privilégios dos mercadores. É de recordar que “todas as espécies de corporações de cidadãos do mesmo estado e profissão”, resquícios da organização feudal, haviam sido proibidas pela Lei de 14 de junho de 1791, a célere Lei Le Chapelier, “sob qualquer forma que seja...”. Com isso, pretendia a Convenção assegurar a plena liberdade profissional, extinguindo todos os privilégios que as corporações acumularam através de séculos a favor dos comerciantes. O Código de Comércio passava a ser, em 1807, um estatuto disciplinador dos atos de comércio, a que estavam sujeitos todos os cidadãos.

Para Oliveira (2004, p. 30):

Marcante caráter objeto disciplinou a matéria comercial prevista no novo diploma. Dando autonomia ao ato de comércio, desvincula-o da pessoa do comerciante, de modo que não reconhecida como comercial o ato, apenas porque fosse praticado por comerciante. Ao contrário, reconhecia como comerciante quem profissionalmente exercesse atos de comércio. Centrou, assim, no ato, não na pessoa, o caráter da atividade comercial. Sistema, aliás, dentre outros, adotado no direito comercial contemporâneo.

O Brasil, em razão da publicação legal e da normatização francesa dsses atos que já atingiam há tempo a nossa sociedade, tomou a decisão de adotar a teoria dos atos do comércio com a promulgação do Código Comercial em 1850, ou seja, somente quatro décadas após o ato francês.

Infere-se da doutrina de Ramos (2010, p. 6):

A teoria dos atos do comércio, usada pela codificação napoleônica como critério distintivo entre os regimes jurídicos, civil e comercial, extrapolou as fronteiras da França e irradiou-se pelo mundo, inclusive chegando ao Brasil. Isso nos remete, necessariamente, ao início dos anos 1800, quando se começou a discutir em nosso país a necessidade de edição de um Código Comercial.

Sobre os fatos históricos e políticos que antecederam a edição do Código Comercial de 1850, é preciso destacar que durante muito tempo o Brasil não possuiu uma legislação própria. Aplicavam-se aqui as leis de Portugal, as chamadas Ordenações do Reino (Ordenações Filipinas, Ordenações Manuelinas, Ordenações Afonsinas).

De acordo com o nosso Código Comercial de 25 de junho de 1850, qualquer pessoa capaz que praticasse costumeiramente – e isso implica na habitualidade, e profissionalmente – o que implica na prática exclusiva destes atos para sua manutenção, poderiam ser qualificados como comerciantes.

Todavia, nossa legislação comercial deixou uma grande lacuna ao não elencar os atos de comércio taxativamente, os quais, entretanto, foram discriminados pelo famoso Regulamento n. 737 do mesmo ano, com o intuito de dispor quais eram as matérias que estariam afetas, ou seja, passíveis de apreciação, pelos Tribunais do Comércio.

Nesse norte dispõe Ramos (2010, p. 7, grifo do autor):

Embora o próprio Código não tenha dito o que considerava mercancia (atos de comércio), o legislador logo cuidou de fazê-lo, no Regulamento 737, também de 1850. Prestação de serviços, negociação imobiliária e atividades rurais foram esquecidas, o que corrobora a crítica já feita ao sistema francês. Segundo o art. 19 do referido diploma legislativo, considerava-se mercancia:

§1° a compra e venda ou troca de efeitos móveis ou semoventes para os vender por grosso ou a retalho, na mesma espécie ou manufaturados, ou para alugar o seu uso;

§2° as operações de câmbio, banco e corretagem;

§3° as empresas de fábricas; de comissões; de depósito; de expedição, consignação, e transporte de mercadorias; de espetáculos públicos;

§4° os seguros, fretamentos, riscos e quaisquer contratos relativos ao comércio marítimo;

§5° a armação e expedição de navios.

A devastadora e interminável expansão do capitalismo pelo mundo implicou na ampliação deste rol de atividades que geravam riquezas aos comerciantes e aos produtores, bem como a necessidade de se ampliar o rol de atividades econômicas suscetíveis da tutela comercial.

Extrai-se da doutrina de Proença (2008, p. 3):

Contudo, posteriormente, com o extraordinário desenvolvimento da economia capitalista e seu regime de produção em massa, verificou-se a injustificável e inconcebível limitação da toeira dos atos de comércio. Assim, o direito comercial foi levado a um novo período subjetivista, correspondente ao direito empresarial. Nessa fase, abandona-se a ideia de estipular um rol de “atos de comércio”, e adota-se a ideia do direito comercial regulamentando a atividade empresarial, considerada como atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços. Essa nova fase, concretizada em torno da chamada teoria da empresa, levou o direito comercial a ser denominado direito de empresa. Os exemplos pioneiros dessa nova fase do direito comercial podem ser encontrados na Alemanha, com o CCom de 1897, e na Itália, com a promulgação do CC unificado de 1942.

Cita-se, por exemplo, nossa legislação brasileira que incluiu em 1908, outras operações neste rol que, até então, não eram consideradas práticas do comércio, por meio da edição do Decreto n. 2.044/1908.

A sociedade italiana criou, em 1942, uma nova forma de regulamentar as atividades privadas com a edição do Código Civil italiano daquele ano. Nesse diploma ocorre a unificação do direito privado e a adoção da teoria da empresa.

Sobre o tema bem conceitua Ramos (2010, p. 8-9, grifo do autor):

Diante do que se expôs nos tópicos antecedentes, percebe-se que a noção do direito comercial fundada exclusiva ou preponderantemente na figura dos atos de comércio, com o passar do tempo, mostrou-se uma noção totalmente ultrapassada, já que a efervescência do mercado, sobretudo após a Revolução Industrial, acarretou o surgimento de diversas outras atividades econômicas relevantes, e muitas delas não estavam compreendidas no conceito de “ato de comércio” ou de “mercancia”.

Em 1942, ou seja, mais de um século após a edição da codificação napoleônica, a Itália edita um novo Código Civil, trazendo enfim um novo sistema delimitador da incidência do regime jurídico comercial: a teoria da empresa.

Embora o Código Civil italiano de 1942 tenha adotado a chamada teoria da empresa, não definiu o conceito jurídico de empresa. Na formulação desse conceito, merece destaque a contribuição doutrinária de Alberto Asquini, brilhante jurista italiano que analisou a empresa como um fenômeno econômico poliédrico que, transposto para o direito, apresentava não apenas um, mas variados perfis: perfil subjetivo, perfil funcional, perfil objetivo e perfil corporativo.

Conforme leciona Ramos (2010, p. 9), o que se destaca de mais produtivo e inovador com a edição do Código Civil italiano em 1942 é que “o direito comercial deixou de ser o direito do comerciante ou o direito dos atos de comércio, para ser o direito da empresa, o que faz abranger uma gama maior de relações jurídicas”.

O visível avanço das organizações das sociedades europeias no que diz respeito aos países mais tradicionais na ótica do direito comercial, tais como os já citados Itália e França, trouxe à nossa pátria a concepção da necessidade de elaboração de um novo e atualizado projeto de regulamentação dos atos que, com toda certeza, já regiam de maneira diferente as relações entre os sujeitos.

À vista disso, em razão da alta velocidade em que se passou a transformação do direito de empresa nas “sociedades modelo” (Itália e França), bem como a omissão e o latente atraso do órgão responsável pela edição de novas normas regulamentadoras (Poder Legislativo), quem tomou a frente no sentido de trazer às relações comerciais brasileiras as regras mais atuais e, de certa maneira, mais coerentes com a atividade de comércio na atualidade, foi o Poder Judiciário que, paulatinamente, adotou a teoria de empresa impressa no texto legal italiano.

Assim bem leciona Ramos (2010, p. 12-13, grifo do autor):

Diante disso e da divulgação das ideias da teoria da empresa, após a edição do Codice Civile de 1942, pode-se perceber uma nítida aproximação do direito brasileiro ao sistema italiano. A doutrina, na década de 1960, já começa a apontar com maior ênfase as vicissitudes da teoria dos atos de comércio e a destacar as benesses da teoria da empresa.

Por outro lado, a jurisprudência pátria também já demonstrava sua insatisfação com a teoria dos atos de comércio e sua sumpatia pela teoria da empresa. Isso fez com que vários juízes concedessem concordata a pecuaristas e garantissem a renovação compulsória de contrato de aluguel a sociedades prestadoras de serviços, por exemplo. Ora, concordata e renovação compulsória de contrato de aluguel eram institutos típicos do regime jurídico comercial e estavam sendo aplicados a agentes econômicos que não se enquadravam, perfeitamente, no conceito de comerciante adotado pelo direito positivo brasileiro daquela época. Tratava-se de um grande avanço: a jurisprudência estava afastanto o ultrapassado critério da mercantilidade e adotando o da empresarialidade para fundamentar suas decisões. Nesse sentido, além dos exemplos já destacados acima, podem ser citados diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça que, desconsiderando as ultrapassadas normas do Código Comercial, já reconheciam a mercantilidade da negociação imobiliária e da atividade de prestação de serviços:

(...) O Tribunal Regional Federal da 1ª Região negou provimento às apelações dos réus, exarando entendimento no sentido de que: “As pessoas jurídicas de direito privado, que têm por objetivo social a prestação de serviços, não estão sujeitas ao pagamento das contribuições para o SESC e o SENAC, uma vez que não desenvolvem atos de comércio”. (...) 3. Novo posicionamento da 1ª Seção do STJ no sentido de que as empresas prestadoras de serviço, no exercício de atividade tipicamente comercial, estão sujeitas ao recolhimento das contribuições sociais destinadas ao SESC e ao SENAC. 4. Recursos especiais providos (STJ, REsp 777.074/MG, Rel. Min. José Delgado, DJ 05.12.2005, p. 245).

O impacto gerado pelo posicionamento do Poder Judiciário frente à inércia do Poder Legislativo gerou enorme discussão nas casas legislativas brasileiras quanto à necessidade de que, enfim, se firmasse uma nova, atualizada e coerente disposição legal para normatizar os atos de comércio, o que deu frutos quando da edição, por exemplo, do Código de Defesa do Consumidor (1990) e da Lei de Locação Predial e Urbana (1991), ambas inspiradas na teoria da empresa.

Para consolidar e firmar da forma mais concreta possível, o hoje vigente Código Civil de 2002 trouxe ao rol de leis brasileiras a confirmação da adoção expressa da teoria de empresa, trazendo a regulamentação do Código Comercial para sua estrutura normativa. Trata-se de unificação legal para fins didáticos o que não retira a autonomia do velho direito comercial, hoje simplesmente conhecido como direito de empresa.

O Livro II da Parte Especial do Código Civil trata, portanto, do chamado Direito de Empresa e conta, à vista disso, com quatro títulos, quais sejam eles: I) Do empresário; I-A) Da empresa individual de responsabilidade limitada; II) Da sociedade; III) Do estabelecimento; e IV) Dos institutos complementares. Em razão desta junção das leis restou parcialmente revogado o Código Comercial de 1850, sendo que ainda encontra-se vigente a segunda parte que trata das atividades marítimas.

Destaca Ramos (2010, p. 13):

Seguindo à risca a inspiração do Codice Civile de 1942, o novo Código Civil brasileiro derrogou grande parte do Código Comercial de 1850, na busca de uma unificação, ainda que apenas formal, do direito privado. Do Código Comercial resta hoje apenas a parte segunda, relativa ao comércio marítimo (a parte terceira – “das quebras” – já havia sido revogada há muito tempo; de lá para cá, o direito falimentar brasileiro já foi regulado pelo DL 7.661/1945, que era a antiga Lei de Falências, hoje revogada e substituída pela Lei 11.101/2005, a Lei de Falências e Recuperação de Empresas).

Diante disso, conclui-se que, com o passar dos tempos e a evolução constante das normatizações comerciais, resta evidenciada a necessidade dessas alterações quando tratamos da regulamentação de uma atividade que a cada dia mais ganha mais espaço no cenário mundial e ao mesmo tempo que é simplificada com a chegada dos meios eletrônicos, em contrapartida, trará uma demanda nova por regulamentações e disposições que possam gerir os anseios da sociedade.

2.2 EVOLUÇÃO HISTÓRIA DA SOCIEDADE ANÔNIMA NO BRASIL 

Para alguns doutrinadores, a origem histórica da S. A. se deu nas associações dos credores do Estado da Idade Média, cujo maior exemplo seja, talvez, a Officium Procuratorum Sancti Georgio (Casa de São Jorge), uma organizada instituição financeira que se desenvolveu em Gênova-ITA, entre os séculos XV e XIX. Por outro lado, parte da doutrina defende a tese de que o embrião das sociedades anônimas foi a Companhia das Índias patrocinadas pelos Estados Nacionais, citando-se, como exemplo, a Cia. das Índias Odicentais holandesa, responsável pelas invasões do litoral brasileiro (Recife, Olinda e Salvador) em meados dos anos 1600.

Assim discrimina Ramos (2010, p. 227, grifo do autor):

Noticia parte da doutrina comercialista que a origem das sociedades anônimas estaria nas associações dos credores do Estado da Idade Média, cujo maior exemplo seja, talvez, a Officium Procuratorum Sancti Georgio (Casa de São Jorge), uma bem organizada instituição financeira que se desenvolveu em Gênova entre os séculos XV e XIX. Outros doutrinadores, por sua vez, apontam como embrião das sociedades anônimas as Companhias das Índias patrocinadas pelos Estados Nacionais no início da Idade Moderna, podendo-se citar como exemplo a Cia. das Índias Ocidentais holandesa, responsável pelas invasões no litoral brasileiro (Recife, Olinda e Salvador) em meados dos anos 1600.

Gladston Mamede (2011, p. 243, grifo do autor), por seu turno, abraçando uma parte da doutrina, assim leciona sobre o início das S. A.:

É comum identificar esse momento com o mercantilismo dos séculos XVI e XVII e a necessidade de mobilização de grande quantidade de capital para financiar as expedições náuticas que, partindo da Europa (o Velho Mundo), dirigiam-se à Àsia (as Índias) e à América (Índias Ocidentais) para fazer o comércio e obter vantagens econômicas; é usual identificar-se esse momento a partir de um fato histórico preciso: a instituição, em 1602, da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais.

Desde o princípio das organizações societárias, as Sociedades Anônimas (S. A.) correspondiam à forma mais adequada aos empreendimentos de maior porte e complexidade, haja vista suas características da limitação da responsabilidade dos sócios e da negociabilidade da participação societária.

Assim dispõe Coelho (2011, p. 81):

As sociedades anônimas correspondem à forma jurídico-societária mais apropriada aos grandes empreendimentos econômicos. As suas características fundamentais são a limitação da responsabilidade dos sócios e a negociabilidade da participação societária, instrumentos imprescindíveis para despertar o interesse de investidores e propiciar a reunião de grandes capitais. 

Destaca Venosa (2012, p. 157) que “na feliz expressão de Ripert, citado por Renaud Salomon, a sociedade anônima é um ‘maravilhoso instrumento do capitalismo moderno’”.

Assim, tem-se que a sociedade anônima diz respeito aquele tipo societário onde diversos investidores (acionistas) que, levando em conta a complexidade das atividades exercidas em grupo – o que impõe um grandioso investimento – e visando o lucro, investiam suas largas economias, a fim de obter um resultado favorável fielmente proporcional ao quanto investido.

Para estes sujeitos, de certa maneira, é indiferente o objeto social, sendo que o que buscam é apenas atribuir a melhor finalidade para suas riquezas e a grande chance de ampliá-las por meio da negociação das ações que detêm perante a sociedade anônima.

No que diz respeito à constituição destas sociedades, elas constituíam-se por meio de ato de outorga do poder monárquico. Assim, o rei, ao conceder o “aval” para que o empreendimento fosse instituído, concedia uma espécie de privilégio para aqueles investidores.

Ora, levando-se em conta que as sociedades anônimas, tinham por objeto social a realização de atividades de grande envergadura, na segunda fase histórica desse tipo societário diagnosticou-se mais uma vez imperativa a participação do Estado na autorização e na fiscalização da efetivação da constituição daquelas sociedades.

Logo após, o acordo de livre comércio entabulado em 1862 entre França e Inglaterra deu início à terceira fase histórica das sociedades anônimas em que a necessidade de prévia consulta estatal para sua constituição foi deixada de lado e a sua criação dependia, assim, de simples registro realizado de acordo com a legislação específica de cada país.

Sobre a tripartição da história das constituições da S. A. bem conceitua Fábio Ulhoa Coelho:

A doutrina divide a trajetória histórica das sociedades anônimas em três períodos: outorga, autorização e regulamentação. No primeiro, a personalização e a limitação da responsabilidade dos acionistas eram privilégios concedidos pelo monarca e, em geral, ligavam-se a monopólios colonialistas. No segundo período, elas decorriam de autorização governamental. No último, bastavam o registro, no órgão próprio, e a observância do regime legal específico. (2011, p. 84, grifo do autor).

Extrai-se da doutrina de Ramos (2010, p. 225-226, grifo do autor):

Os negócios empreendidos pelas sociedades anônimas eram tão relevantes para a economia que durante muito tempo elas se constituíam mediante outorga do poder estatal. Posteriormente, mais precisamente após a promulgação do Código Comercial francês de 1808, a constituição das sociedades anônimas deixou de ser um privilégio dependente de outorga do poder público para se constituir em uma faculdade aberta aos investidores interessados em constituí-las, dependendo eles apenas de uma autorização estatal.

Com o passar do tempo, todavia, o desenvolvimento do capitalismo exigiu que se simplificassem ainda mais as regras para a constituição das sociedades anônimas, razão pela qual a partir de meados dos anos 1800 os diversos ordenamentos jurídicos da Europa deixaram de exigir de prévia autorização governamental para a constituição de uma S/A, sendo necessário, tão somente, o registro prévio no órgão competente e a submissão a um regime legal específico. A sociedade anônima, enfim, após passar pelos períodos iniciais de outorga e autorização, iniciava o seu período de regulamentação.

No Brasil, conforme relatam André Luiz Santa Cruz Ramos e Fábio Ulhôa Coelho, no período colonial, as S. A. tomavam forma por ato de outorga do poder real. Cita-se como exemplo o Banco do Brasil que foi constituído em 1808 com a chegada da família real portuguesa e mediante alvará do regente D. João VI.

Entretanto, a transição já citada que atingia diversos países europeus também surtiu efeitos no Brasil, razão pela qual, em 1849, um decreto imperial introduziu ao país o sistema de autorização, reproduzido no Código Comercial de 1850. Porém, no ano de 1882, referida disposição tornou-se inócua e a autorização governamental para constituição deste tipo societário não dependia mais de participação ativa do estado, acompanhando a tendência dos países europeus e adotando o sistema da regulamentação (terceira fase histórica).

Retira-se deste rol, todavia, as sociedades estrangeiras, seguradoras e bancos que merecem, ainda, análise e aprovação estatal para sua instituição no Brasil, bem como a constituição das sociedades anônimas mediante captação pública de recursos.

A partir do ano de 1965, em razão da reforma no mercado de capitais brasileiro, foi redigida nova lei que dispunha que somente poderiam ser transacionadas em bolsa de valores as ações de sociedades com registro perante o Banco Central. Entretanto, a adoção dessa formalidade trouxe consigo diversos defeitos constatados com o passar dos anos.

Após diversas e frustradas transações e em razão da fragilidade do sistema deste registro imposto, foram adotadas iniciativas para reabilitar o procedimento, visando fortalecer o crescimento do mercado de capitais, podendo-se citar a criação, em 1976, da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, bem como a reforma por completa da lei vigente até os dias atuais (6.404/76).

A partir desta virada histórica, “a constituição de sociedade anônima através de apelo aos investidores em geral passou a depender de autorização do governo” (COELHO, 2011). De outro lado, se os fundadores não optarem por referida solicitação, têm a alternativa de subscrevê-la por instrumento particular. Resta firmado, até os dias atuais, a adoção do direito societário brasileiro no sentido duplo de que o sistema de “regulamentação” regerá a constituição das companhias de capital fechado e o sistema de “autorização” servirá para as companhias de capital aberto.

Sobre esta transição leciona Ramos (2010, p. 226, grifo do autor):

No Brasil, as sociedades anônimas também passaram pelas três fases históricas acima mencionadas. Inicialmente, elas eram constituídas mediante outorga do poder imperial, como aconteceu, por exemplo, com o Banco do Brasil, criado em 1808 por meio de alvará do rei D. João VI. Posteriormente, a partir de 1849, as sociedades anônimas brasileiras passaram a ser constituídas mediante autorização governamental, regra que foi mantida e consolidada pelo Código Comercial de 1850. Por fim, na esteira da evolução normativa ocorrida nos diversos ordenamentos jurídicos europeus, o Brasil deixou de exigir, em regra, a prévia autorização governamental para a constituição das sociedades anônimas, incorporando o sistema da regulamentação. Sendo assim, a autorização do governo passou a ser exigida apenas em casos excepcionais, como, por exemplo, para a constituição de sociedades estrangeiras, instituições financeiras e companhias abertas.

Sobre o tema ainda dispõe Coelho (2011, p. 84-85):

No Brasil, no período colonial e no início do Império, as sociedades anônimas se constituíam por ato de outorga do poder real ou imperial. O Banco do Brasil, por exemplo, foi constituído em 1808, com a chegada da família real portuguesa à sua então colônia, mediante alvará do regente D. João VI. Em 1849, um decreto imperial introduziu entre nós o sistema de autorização, reproduzido no Código Comercial de 1850 (Borges, 1959:380). Logo em 1882, a autorização governamental foi abolida, e o direito brasileiro, acompanhando a tendência dos países centrais do capitalismo, incorporou o sistema de regulamentação. A partir disso, o ato autorizatório do governo para a constituição de sociedade anônima passou a ser necessário apenas em hipóteses excepcionais: sociedades estrangeiras, seguradoras e bancos, por exemplo.

Diante disso, conclui-se que, para a constituição de sociedades anônimas no Brasil, cujas envolvem grandiosos projetos e poderosos investidores, em regra, não há necessidade de prévio requerimento a quem quer que seja, pois a legislação permite que ela seja criada por meio do sistema adotado chamado de “regulamentação”, excetuando-se, como já apontado, companhias de capital aberto, sociedades estrangeiras, seguradoras e bancos.

Sobre o autor
Leonardo Peixer

Bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau - FURB (2013); Pós-graduando em Direito Civil e Empresarial pela Pontíficia Universidade Católica do Paraná - PUCPR (2014/2015); Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEIXER, Leonardo. O exercício do direito de voto do usufrutuário de ações da sociedade anônima. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5145, 2 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36058. Acesso em: 19 mai. 2024.

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