Em decisão proferida nos autos do Processo nº. 5083376-05.2014.404.7000, que trata da conhecida Operação Lava-Jato, o Juiz Federal, Dr. Sergio Fernando Moro, após ser questionado por uma série de advogados sobre a validade de interceptações de e-mails, afirmou que o importante não é se atentar a detalhes de cada diligência, mas se houve autorização judicial e se os fins foram alcançados.
Na decisão proferida no dia 26 de janeiro, ele escreveu que “não tem a menor relevância a questão relativa à forma de implementação da diligência, se os ofícios judiciais ou da autoridade policial foram entregues a X ou a Y, se foram selados ou não, se o endereço foi escrito corretamente, com utilização de letra cursiva ou não”.
Para ele, “essas questiúnculas relativas a formalidades, sendo apenas relevante se atenderam ou não a finalidade da realização da diligência e se foram ou não autorizadas judicialmente, questões já respondidas no sentido afirmativo”.
Ou seja, os fins justificam os meios.
A decisão veio a propósito da notícia de que não havia "informações sobre como as mensagens de celular trocadas entre um funcionário da construtora OAS e Alberto Youssef foram interceptadas. Segundo a defesa do empresário, a falta de registros sobre os “caminhos” que essa interceptação percorreu até chegar aos autos a torna ilegal e, portanto, não pode ser apresentada como prova em juízo. As alegações estão na resposta à denúncia apresentada contra José Aldemário Pinheiro Filho, presidente afastado da OAS, que responde pelos atos da empresa."
De acordo com a defesa do empresário as provas que levaram o Ministério Público Federal a essa conclusão foram colhidas de forma ilegal, pois a Polícia Federal teria violado a Constituição, leis e um tratado de cooperação internacional entre Brasil e Canadá para interceptar as mensagens de texto que levam a acusação a crer na conexão entre a OAS e Alberto Youssef.
O executivo da OAS e Youssef trocavam mensagens por meio de aparelhos BlackBerry. São celulares que têm um sistema próprio para troca de mensagens de texto, chamado BlackBerryMessages, ou BBM. Os servidores que dão suporte ao sistema — e por onde essas mensagens passam e ficam armazenadas — ficam no Canadá. Por isso, em tese, a polícia brasileira não poderia ter acesso ao seu conteúdo.
Segundo a defesa do empresário, para que esse sistema seja interceptado pela polícia brasileira, há todo um caminho burocrático a percorrer: os pedidos de cooperação devem tramitar por autoridades centrais, que avaliam a pertinência e a possibilidade de cumprir com o pedido. No Brasil quem responde como autoridade central é a Procuradoria-Geral da República. No Canadá, o Ministério da Justiça. É uma maneira de manter um “controle da soberania”, diz a defesa.
No caso do executivo da OAS, a Polícia Federal pediu à 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, onde corre a operação, a interceptação telemática dele. Pedia que a Research In Motion (RIM), fabricante do BlackBerry, desse, “em tempo real, acesso ao conteúdo dos diálogos e/ou mensagens dos seguintes aparelhos telefônicos”.
O juiz responsável pelo caso, Dr. Sergio Fernando Moro, estranhou o pedido e pediu esclarecimentos. A princípio, “o destinatário da ordem judicial deve ser uma empresa no Brasil, ainda que representante de outra no exterior”, mas a Polícia Federal respondeu que a interceptação seria “transmitida por canais diretos entre o Departamento de Polícia Federal e a referida empresa”. O contato da Research In Motion com a Polícia Federal brasileira seria um homem chamado Andrew — até agora sem sobrenome — conforme consta dos autos. E Moro, então, autorizou o prosseguimento da interceptação.
O grampo resultou em um documento em formato HTML (linguagem de programação usada em sites da internet) gerado pelo próprio Departamento de Polícia Federal. Aí está o problema apontado pelos advogados. O procedimento burocrático das cooperações internacionais deixa um rastro de ofícios, ordens, pedidos etc.: sai da polícia, para o Ministério Público, para o Judiciário, para o órgão de cooperação internacional, para o órgão estrangeiro e faz todo o caminho de volta. No caso da OAS, não há nenhum registro desse caminho.
Como não há pegadas da interceptação, não há controle sobre como ela foi feita, por quem, quem teve acesso, se o arquivo foi alterado ou editado. Isso torna toda a prova ilegal, já que não há formas de controlar a investigação. Até mesmo a veracidade das mensagens está passível de contestação — e o empresário contesta: “Afinal, não se pode dizer serem os resultados verdadeiros, porque sem controle”. Fonte: Revista Consultor Jurídico, acessada em 22 de janeiro de 2015.
Pois é.
Se efetivamente a defesa tem razão, poderá ter havido uma "quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos", como afirma Geraldo Prado[2], ocorrendo exatamente o que aconteceu no caso do Banco Opportunity S/A, quando a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal anulou todo o processo, em razão da ilegalidade da apreensão, pela Polícia Federal, de computadores e o espelhamento de discos rígidos (HDs), durante diligências das operações Satiagraha e Chacal. A decisão foi tomada na análise do Habeas Corpus nº. 106566, impetrado na Corte pela defesa do empresário Daniel Dantas. Os Ministros entenderam que as provas colhidas a partir dos HDs devem ser desconsideradas e determinaram, ainda, a imediata devolução do material apreendido à instituição financeira. A decisão unânime foi tomada nesta terça-feira, dia 16 de dezembro de 2014. No dia 27 de outubro de 2004, policiais federais cumpriam mandado de busca e apreensão expedido pelo Juiz da 5ª. Vara Federal Criminal de São Paulo no endereço profissional de Daniel Dantas, localizado no 28º. andar de um edifício comercial no centro do Rio de Janeiro. Ao serem informados que a sede do Banco Opportunity ficava no 3º. andar do mesmo prédio, os policiais comunicaram o ocorrido ao Juiz substituto, que autorizou, por meio de ofício sem maiores detalhes, o espelhamento [cópia] do disco rígido do servidor da instituição financeira.
O julgamento do caso começou na sessão do dia 09 de dezembro de 2014, quando o relator, Ministro Gilmar Mendes, considerou ilegal a diligência. Para ele, o Magistrado que despachou o caso no dia da busca e apreensão não foi alertado ou não percebeu que os equipamentos em questão estavam em local diverso do constante no mandado. “As provas obtidas pela busca e apreensão no terceiro andar do edifício da avenida Presidente Wilson, 231, no Rio de Janeiro, foram ilicitamente adquiridas, a meu ver, porque a diligência contrariou a regra constitucional de inviolabilidade de domicílio do artigo 5º, XI, da Constituição”, frisou o relator ao votar no sentido de que essas provas ilicitamente incorporadas ao processo devem ser excluídas do processo.
A Ministra Cármen Lúcia pediu vista dos autos na ocasião e apresentou voto na sessão do dia 16 de dezembro de 2014. Ao acompanhar integralmente o relator, a Ministra entendeu que procede o inconformismo da defesa quanto ao fato de a autorização do juiz substituto ter indicado endereço diverso do constante no mandado original, sem a mesma pormenorização. “Pelo que se tem nos autos, ao deferir o pedido de espelhamento do HD pertencente ao banco Oportunity, o magistrado ou não foi alertado ou não percebeu que a medida importaria em alteração daquele primeiro, especialmente em relação ao endereço e à necessidade do espelhamento ser feito na forma como foi”, concluiu a Ministra. O decano da Corte, Ministro Celso de Mello concordou com o relator. Segundo ele, mandados de busca e apreensão não podem se revestir de conteúdo genérico, nem ser omissos quanto à indicação, a mais precisa possível – a teor do artigo 243 do Código de Processo Penal – do local objeto dessa medida extraordinária. "Medidas que contrariam os comandos constitucionais e revelam-se inaceitáveis não podem merecer a chancela do STF, sob pena de subversão dos postulados constitucionais que definem limites inultrapassáveis do poder do Estado em suas relações com os cidadãos", concluiu o decano.
O presidente da Turma, Ministro Teori Zavascki, também acompanhou o relator. (Fonte: página oficial do Supremo Tribunal Federal).
Aliás, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal deferiu o Habeas Corpus Nº. 115714 para determinar a anulação, desde a fase de interrogatório dos corréus. O Habeas Corpus foi impetrado contra decisão do Superior Tribunal de Justiça que indeferiu liminar com pedido semelhante, no qual a defesa do réu alegou ter sido impedida de questionar os corréus durante interrogatório.
Ora, a formalidade procedimental não pode ser desconsiderada pelo Magistrado. Não se trata de mero formalismo, mas de uma formalidade exigida por lei e de cumprimento obrigatório, até como uma garantia para o acusado.
Como se sabe, o Processo Penal funciona em um Estado Democrático de Direito como um meio necessário e inafastável de garantia dos direitos do acusado. Não é um mero instrumento de efetivação do Direito Penal, mas, verdadeiramente, um instrumento de satisfação de direitos humanos fundamentais e, sobretudo, uma garantia contra o arbítrio do Estado. Aliás, sobre processo, já afirmou o mestre Calmon de Passos, não ser “algo que opera como simples meio, instrumento, sim um elemento que integra o próprio ser do Direito. A relação entre o chamado direito material e o processo não é uma relação meio/fim, instrumental, como se tem proclamado com tanta ênfase, ultimamente, por força do prestígio de seus arautos, sim uma relação integrativa, orgânica, substancial.”[3] Nesta mesma obra, o eminente processualista adverte que o “devido processo constitucional jurisdicional (como ele prefere designar), para evitar sofismas e distorções maliciosas, não é sinônimo de formalismo, nem culto da forma pela forma, do rito pelo rito, sim um complexo de garantias mínimas contra o subjetivismo e o arbítrio dos que têm poder de decidir.”[4]
Como afirma Ada Pelegrini Grinover, “o processo penal não pode ser entendido, apenas, como instrumento de persecução do réu. O processo penal se faz também – e até primacialmente – para a garantia do acusado. (...) Por isso é que no Estado de direito o processo penal não pode deixar de representar tutela da liberdade pessoal; e no tocante à persecução criminal deve constituir-se na antítese do despotismo, abandonando todo e qualquer aviltamento da personalidade humana. O processo é uma expressão de civilização e de cultura e consequentemente se submete aos limites impostos pelo reconhecimento dos valores da dignidade do homem.”[5]
Aliás, sobre o procedimento em matéria processual penal e bem a propósito, ensina Antonio Scarance Fernandes que “a incorporação, nos ordenamentos, de modelos alternativos aos procedimentos comuns ou ordinários gera para as partes o direito a que, presentes os requisitos legais, sejam obrigatoriamente seguidos. (...) Em relação à extensão do procedimento, têm as partes direito aos atos e fases que formam o conjunto procedimental. Em síntese, têm direito à integralidade do procedimento.”[6] (também sublinhamos).
Ademais, “o procedimento pode ser visto como as regras de um jogo, que devem ser obedecidas para que seja legítima a competição. O cumprimento dos atos e fases procedimentais se impõe tanto ao Juiz quanto às partes e a todos os sujeitos que participarem do processo, isso porque o procedimento é integral. Além disso, prevendo a lei um procedimento específico para determinada relação de Direito Material controvertida, não cabe ao Juiz dispensá-la, impondo-se sua observância, em respeito ao devido processo legal. Justifica-se isso em virtude de os atos previstos na cadeia procedimental serem adequados à tutela de determinadas situações, daí serem imprescindíveis, ou seja, o procedimento ostenta uma tipicidade.”[7]
Como afirma Gilberto Thums, no Estado Democrático de Direito “o rito processual deve representar uma garantia ao acusado de que terá a seu dispor todos os instrumentos de defesa e que não serão violados os seus direitos fundamentais assegurados na Constituição e nas leis, retratados no princípio do due processo of law.” Neste sentido, conclui o autor que “o rito desempenha um papel importante, tanto para o réu quanto para o jurisdicionado.”[8]
Mutatis mutandis, por votação unânime, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu Habeas Corpus (HC 93387) a um condenado por tráfico de drogas: “É sempre importante enfatizar, presente esse contexto, que a estrita observância da forma processual representa garantia plena de liberdade”, afirmou o Ministro Celso de Mello.
Certamente sem um processo penal efetivamente garantidor, não podemos imaginar vivermos em uma verdadeira democracia[9]. Um texto processual penal deve trazer ínsita a certeza de que ao acusado, apesar do crime supostamente praticado, deve ser garantida a fruição de seus direitos previstos especialmente na Constituição do Estado Democrático de Direito.
Notas
[2] Prova Penal e Sistema de Controles Epistêmicos, São Paulo: Marcial Pons, 2014.
[3] Direito, Poder, Justiça e Processo, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 68.
[4] Idem, p. 69.
[5] Liberdades Públicas e Processo Penal – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª. ed., 1982, pp. 20 e 52.
[6] Teoria Geral do Procedimento e o Procedimento no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, pp. 67/69.
[7] Luciana Russo, “Devido processo legal e direito ao procedimento adequado”, artigo publicado no jornal “O Estado do Paraná”, na edição do dia 26 de agosto de 2007.
[8] Sistemas Processuais Penais, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 181.
[9] Apesar de que, como ensina Norberto Bobbio, “(...) a Democracia perfeita até agora não foi realizada em nenhuma parte do mundo, sendo utópica, portanto.” (Dicionário de Política, Brasília: Universidade de Brasília, 10ª. ed., 1997, p. 329).