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O marco civil da internet: primeiras linhas

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Agenda 06/04/2015 às 11:11

O artigo analisa o Marco Civil da Internet quanto aos aspectos legais da responsabilidade civil atribuída aos provedores de internet e compara com o regime legal existente nos Estados Unidos da América e União Europeia.

Resumo: A lei nº 12.965, nominada de Marco Civil da Internet veio com o propósito de aclarar as dúvidas interpretativas quanto ao regime da responsabilidade civil atribuído aos provedores de internet. Não obstante, a lei ainda cuidou de outros aspectos, estabelecendo como princípio cardeal o da liberdade de expressão em detrimento da proteção à honra e da imagem, ao estabelecer que eventuais ataques a tais valores exigem a intervenção judicial para retirada ou bloqueio de tais informações disponíveis na internet. Em complemento, o regime legal aprovado pelo Parlamento estabelece espécie de imunidade civil aos provedores de internet pelos conteúdos disponibilizados por seus usuários, na linha do regime legal adotado pelos Estados Unidos da América. O presente artigo investiga esses aspectos e expõe algumas dúvidas interpretativas.

Palavras-Chave: Marco Civil da Internet. Princípio da neutralidade da rede. Liberdade de expressão. Proteção da privacidade.


1 Introdução

Ao entrar na internet, o usuário necessariamente utiliza os serviços prestados pelos intervenientes técnicos, os chamados provedores de acesso, e para acessar a conteúdos existentes em rede, há a prestação de serviços pelos provedores de conteúdo gerados por terceiros, os chamados provedores de hospedagem, em uma linguagem bem simplista. Esses intermediários técnicos estão em uma posição mais facilmente alcançável e possuem recursos financeiros, tornando-os a via mais atrativa nas ações de responsabilidade civil. Destarte, a preocupação de tais agentes econômicos frente à franca possibilidade de arcarem com pesados custos de indenização  não é nenhuma novidade, a exemplo do colhido em um evento ocorrido em Genebra:

Como guardiães da internet, os proprietários da infraestrutura de rede subjacentes ou provedores de acesso à Net, os intermediários parecem ter sido lançados do dia para noite no papel de guardiães morais, juízes de Direito, tropas de reserva ou de vigilantes da internet para as agências de fiscalização da lei! Nós somos firmemente informados pelo governo que a lei aplica-se tanto off-line quanto on-line, todavia ainda até o presente ninguém ofereceu muita orientação como ou por quem deve ser aplicado. (tradução livre)[1]

No Brasil, ante a ausência de lei específica regulamentando os deveres a serem cumpridos pelos atores técnicos, a jurisprudência encontrava tais deveres ao interpretar o sistema jurídico brasileiro e estava balizando as questões respeitantes a fazer incidir os pressupostos da responsabilidade civil. Em linhas gerais, a compreensão dos julgadores parecia inclinada em ativar o dever de agir do intermediário técnico, mediante simples notificação de qualquer interessado, gerando sua inércia no dever de indenizar o prejudicado pelos danos causados em sua esfera protegida pelo ordenamento jurídico. A inclinação jurisprudencial não agradava aos prestadores de serviços de conexão à internet e aos provedores de espaços em seus servidores, pois divergia substancialmente do regime legal adotado em outras ordens jurídicas, como sedimentado nos Estados Unidos da América ou na União Europeia.

Nesse ponto, a lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, com o nomen iuris de Marco Civil da Internet, veio à lume com a pretensão de aclarar as questões atinentes ao regime legal imposto aos prestadores de serviços em internet, particularmente com a viga mestra da garantia da neutralidade da rede, com a afirmação de o texto legal estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil.

O novel diploma legal está dividido em cinco capítulos, assim distribuídos: O primeiro trata das disposições preliminares, o segundo dos direitos e garantias dos usuários, o terceiro trata da chamada provisão de conexão e de aplicações de internet, o quarto trata das questões da requisição judicial dos dados registrados de conexão e de acesso a aplicações de internet e o quinto e último refere da atuação do poder público.

Destarte, com o propósito de analisar alguns aspectos do regime regulatório estatuído pela Lei do Marco Civil da Internet, este artigo abordará alguns pontos específicos, comparando com a regulação operada em outras ordens jurídicas, notadamente ao regime estabelecido nos Estados Unidos da América e na União Europeia.

Para o Direito do Consumidor, parece não restar dúvida de que a atividade das empresas provedoras de acesso de conexão à internet ou de aplicações de internet configura prestação de serviços a ser regida pelo Código de Defesa do Consumidor, razão pela qual será utilizada a expressão consumidor ao longo do texto, em detrimento da figura de linguagem utilizada pelo legislador, ao lançar a expressão usuário.

2 Das categorias funcionais

Nos Estados Unidos da América, usualmente os provedores de serviços em internet são conhecidos genericamente como ISP, abrangendo toda e qualquer categoria de serviço prestado aos usuários da rede.

A primeira lei, o estatuto do Communications Decency Act (CDA), ou Lei da Decência das Comunicações, de 1996, separa as categorias funcionais dos ISP em Interactive Computer Service (ICS) e Information Content Provider (ICP). A primeira categoria trata da definição dos entes que fornecem mero acesso aos usuários e a segunda categoria refere ao próprio fornecedor de conteúdo em internet, diferenciação bem detalhada no regime legal com as implicações próprias na possiblidade ou não de responsabilização ao ator da internet, a ser abordado mais adiante.

A segunda lei, o estatuto do Milênio Digital ou simplesmente DMCA foi publicada em 1998 e estabelece categorias funcionais de prestadores de serviços em internet, as quais estão divididas em provedores de mere conduit, caching, hosting e de information location tools. O provedor de mere conduit ou transitory digital network communications diz respeito ao mero transmissor de dados em linha, o de caching constitui uma técnica de guarda ou armazenagem de dados temporais em seus sistemas, com vistas a tornar mais rápido o acesso do conteúdo aos seus assinantes, a de hosting corresponde ao serviço de disponibilizar espaço em seus servidores para os usuários aporem seus próprios conteúdos e a última categoria, a dos provedores de ferramentas de localização de conteúdo existente em rede, os conhecidos motores de busca, no exemplo do buscador da google.

Um tanto quanto semelhante ao texto do DMCA, o legislador comunitário editou a chamada Diretiva do Comércio Eletrônico, de 8 de junho de 2000, adotando a definição das categorias de prestadores intermediários de serviços em internet, assim separadas: a de simples transporte, a de armazenagem temporária (caching) e a de armazenagem em servidor.

Diferentemente do existente nos ordenamentos comparados, o legislador brasileiro separou os prestadores de serviços em internet em duas categorias, a saber: Os provedores de conexão e os provedores de aplicações de internet, conforme exsurge da interpretação funcional de variados artigos do texto legal do Marco Civil da Internet.

3 Da busca da primazia da liberdade de expressão

Declaradamente adotado pelo texto legal, a liberdade de expressão parece ter assumido um papel preponderante na Lei do Marco Civil, o que não está isento de críticas.

Com efeito, em uma leitura apressada do texto legislado pode indicar que a liberdade de expressão está acima de outros princípios constitucionais, com a adoção de um regime muito próximo ao existente no ordenamento jurídico estadunidense[2]. No entanto, no Brasil a liberdade de expressão não possui o alcance de princípio absoluto, eis que há outros princípios de igual carga semântica, como a proteção da privacidade, da honra e da imagem, os quais não podem ficar ao desabrigo ante um aparente conflito.

Ainda, é preciso destacar, a dignidade da pessoa humana pode ser considerada como principal garantia constitucional do cidadão, ai compreendida a garantia protetiva dos direitos individuais e primeiro fundamento do nosso sistema constitucional. Logo, não é o fato de o legislador ter buscado dar, a exemplo do art. 2o. da Lei 12.965, uma espécie de primazia à liberdade de expressão, ao adotá-la como fundamento da disciplina e uso da internet, fator a esvaziar os outros princípios, notadamente naquelas questões jurígenas em que for discutidos outros valores constitucionais, a exemplo do princípio maior da dignidade da pessoa humana.

Certamente muitos casos concretos, ao longo da aplicação da lei nova, vão ajudar na construção de uma sadia hermenêutica e ponderar os valores constitucionais em jogo, preservando a força normativa da Constituição. A recomendação do legislador, na pretensão de dar as balizas de interpretação da lei[3], até pode surtir algum efeito, mas é preciso discordar, a norma legal é uma adolescente e como tal, ganha asas e voa longe de seu criador, sendo a rebeldia uma marca própria.

4 Do princípio da neutralidade da internet.

No Senado dos EUA no Comitê de Comércio, Ciência e Transporte ocorrem audiências públicas para discutir a questão da adoção ou não da neutralidade da rede. Em uma dessas audiências, importantes contributos foram dados aos Congressistas, nomeadamente no sentido de alertar quanto à necessidade ou não de interferir no sentido natural da internet, a qual iniciou naquele país com a ideia de ser livre e distante da intervenção/regulação governamental[4]. O Professor Lawrence Lessig, por exemplo, alertou ao fato de dever o Congresso aprender com o passado, justamente para impedir a mudança da infraestrutura da rede, fator determinante que permitiu inúmeras inovações, como foi o surgimento de empresas no porte da Google e da Yahoo!, bem como no sentido de qualquer mudança na legislação  deve promover a concorrência, não apenas nos serviços de banda larga, mas também nos conteúdos e aplicações que são executadas sob a rede de banda larga.[5]

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Os especialistas ouvidos pelo  Senado Americano alertaram que talvez poucas empresas poderiam comprar um acesso mais rápido na rede de banda larga, na hipótese de ser permitido às operadoras de internet discriminar o tráfego em rede. A preocupação real é, as operadoras de tráfego em internet podem discriminar o conteúdo que trafega em seus sistemas, mediante cobrança de sobretaxas altíssimas,  ou até mesmo reduzindo a velocidade de conteúdos similares aos fornecidos por seus parceiros comercias ou por eles comercializados, o que redunda por uma escolha indireta daquilo que o consumidor pode acessar ou até mesmo prejudicar a livre concorrência.

Durante a tramitação do projeto do Marco Civil da Internet, certamente o lobby das operadoras de telefonia e controladoras da maior parte de redes de acesso à internet contribuiu no trancamento da pauta do Congresso e atrasou a rápida aprovação da lei. O fato é, as grandes redes de acesso à internet sustentam, tanto aqui como em outros países, a neutralidade da rede inibe investimentos estratégicos, diante da impossibilidade de cobrar preços diferenciados em razão do conteúdo em tráfego. E mais ainda, há o argumento do princípio da neutralidade da rede conduz, em muitas situações, no benefício de uma pequena camada de consumidores, os quais utilizam a rede para baixar conteúdos considerados pesados, um importante fator causador do travamento ou lentidão das redes de banda larga.

No entanto, a opção do legislador brasileiro foi no sentido de assegurar a neutralidade do que passa pela rede. O princípio basilar da utilização comercial da internet, a chamada garantia da neutralidade da rede (art. 3, IV, da Lei n. 12.965/2014), busca assegurar a mais ampla liberdade, ou seja, a rede de internet deve continuar a ser um espaço para experimentação, inovação e livre fluxo de informações[6].  

Segundo pode ser extraído do sistema legal em vigor, o ente responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, vedada a distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

A lei é clara, na expressão do comentarista futebolístico da arbitragem, o consumidor deve ser informado  adequado e previamente sobre eventual necessidade da mitigação do tráfego adotadas como política comercial da empresa operadora de internet. É importante destacar, a mitigação do tráfego não está autorizada nas hipóteses do caput do art. 9 o., pois se assim fosse possível, o princípio da neutralidade da rede seria apenas uma quimera, um sonho.

Como dito no Senado Americano, acaso fosse permitido às operadoras de internet discriminar o tráfego em seus sistemas, seria o mesmo que permitir às operadoras de energia elétrica fornecer mais ou menos energia a quem utilizasse determinada torradeira indicada ou vendida pela empresa de energia elétrica.

Algumas críticas levantadas durante os trabalhos legislativos, apesar de relevantes, não resistem ao marco regulatório, pois as empresas de telecomunicações não estão impedidas de continuar comercializando acesso aos seus consumidores por pacotes de velocidades diferenciadas. No entanto, é preciso frisar, são as operadoras de acesso de internet obrigadas a oferecer a conexão contratada, não podendo interferir, em regra, com o conteúdo acessado ou em tráfego em seus sistemas. Em alguma partida, é esperado que com o marco regulatório certas condutas discriminatórias, a exemplo do chamado traffic shaping[7] venham a desaparecer ou ser minimizadas, ante a possibilidade de pesadas sanções previstas em lei.

Para evitar ou minimizar a prática do traffic shaping, há necessidade de regular expressamente a questão da velocidade contratada e disponibilizada, pois o marco civil não aboliu a venda de pacotes diferenciados, com esclarecimento prévio e adequado ao consumidor de qual é a velocidade assegurada contratualmente. Ademais, é necessário que a regulação não permita grandes diferenças entre a velocidade contratada e a velocidade efetivamente disponibilizada, obrigando a compensação aos consumidores quando houver redução de velocidade. Portanto, aqui é um ponto crucial à eticidade dos contratos dos serviços prestados pelas operadoras, cabendo ao Estado dar os meios para a Agência Reguladora ou órgão de supervisão que vier a ser criado desempenhar com eficiência o papel de fiscalização da qualidade dos serviços oferecidos.

Quanto ao decreto regulamentador a ser expedido pela Presidência da República (art. 9 o, § 1o,), o texto legal desde logo assegura os limites do poder regulamentar, os quais não podem estar em dissonância da mens legis.

5 Da proteção à privacidade

 O legislador estabeleceu o dever de proteção à intimidade, privacidade, da honra e da imagem dos cidadãos, imputando ao provedor de conexão e de acesso diversos deveres, entre eles o de adotar as medidas técnicas adequadas para atender ao comando legal. Segundo disposto na lei, a proteção da privacidade não está restrita ao consumidor da rede, alcançando o seu manto a toda e qualquer parte eventualmente atingida.

Contudo, não obstante o dever legal de proteção à privacidade e suas vertentes decorrentes do texto legal, o fato é que o provedor de acesso está obrigado a conservar pelo prazo de um ano as conexões de seus consumidores e os provedores de aplicações (conteúdos) devem conservar os registros dos acessos pelo período mínimo de seis meses.

Destarte, o legislador criou dois prazos da obrigação da conservação dos dados, a depender da figura do serviço prestado em causa. A conservação indevida ou sem segurança adequada dos dados pode configurar um risco, eis que não há nenhum servidor de internet imune a uma possível invasão, dada a notoriedade de os próprios serviços de internet do Pentágono já terem sido invadidos, fato que levou o legislador a exigir que tais dados fossem conservados em ambiente seguro e controlado.    

6 Da garantia do sigilo

Quase que como um novo direito básico do consumidor, a lei do marco civil da internet assegura aos usuários de serviços em internet o direito de proteção contra a divulgação de seus dados pessoais e dos registros de acesso à rede e dos aplicativos consultados, salvo daqueles dados em que houver o consumidor consentido de forma livre, expressa e com informação clara da possibilidade do compartilhamento de tais dados. A norma é um mínimo de proteção conferida ao consumidor, pois não está afastada uma proteção mais ampla decorrente do próprio texto constitucional, das leis já existentes e de qualquer outra lei que vier a tratar do assunto, como a exemplo de uma lei geral sobre proteção de dados.

No entanto, a opção legislativa foi a de conferir uma proteção da divulgação de dados para terceiros, salvo por ordem da autoridade judicial ou por requisição da autoridade administrativa competente. Destarte, em determinados casos, com vistas a descobrir a identidade de um investigado, a autoridade judicial poderá determinar a revelação dos dados essenciais conducentes a revelar a identificação de usuário ou de terminal utilizado para aceder aos serviços da internet.

Importante destacar, o conteúdo das comunicações somente poderá ser revelado em hipóteses restritas e limitadas na necessidade da investigação, por ordem judicial, eis que a autoridade administrativa somente possui competência legal autorizada para acesso direto daqueles elementos reveladores da qualificação pessoal do investigado, ai compreendidos os dados de filiação e endereço.

Logo, a requisição de dados pessoais por autoridade administrativa está bem limitada, pois necessariamente a autoridade requisitante deve ser apenas àquelas com poderes legais de requisição e exclusiva aos fins destinados.

6.1 Da coleta e tratamento de dados

Resta assegurado aos consumidores dos serviços prestados pelas operadoras de internet a proteção legal contra o compartilhamento de seus dados pessoais, compreendidos os registros de conexão e de acesso às aplicações de internet. No entanto, o compartilhamento dos dados pode vir a ocorrer, desde que o consumidor consinta de forma livre, expressa e receba a informação adequada do tratamento a ser dado aos elementos autorizados. Desde a concepção inicial dos idealizadores do direito à privacidade, a ideia do consentimento do afetado parece excluir a violação desse direito. [8]

No entanto, alguma dificuldade prática da ampla proteção pode ser vislumbrada desde logo, pois dificilmente um consumidor dos serviços prestados pelas operadoras de acesso e de aplicativos de internet fará uma leitura prévia e detalhada de quais dados concorda em compartilhar. Ante a falta de leitura, há a presunção de seu conhecimento e o consentimento pode ser considerado válido, algo que pode revelar a inutilidade do dispositivo legal, além da absoluta falta de compreensão adequada do alcance da autorização dada, salvo naqueles casos em que existir autorização excessiva, tornando a cláusula de adesão nula de pleno direito em face de sua abusividade.

O legislador não esclarece o que ocorre naqueles casos do consumidor dos serviços de internet não consentir com o compartilhamento dos dados. Na hipótese de negativa do compartilhamento dos dados por parte do consumidor, o prestador do serviço poderá negar a fruição do serviço? A melhor leitura a ser posta do regime estatuído, é a de o consentimento livre permite a negativa ao consumidor, sem a possibilidade de restrição ou negativa da fruição do serviço pretendido. A negativa da prestação do serviço, pelo simples fato do consumidor não anuir no compartilhamento de seus dados, leva à conclusão lógica de prática abusiva, a ser combatida pelos órgãos de defesa do consumidor.

Importante frisar, o direito básico do consumidor à informação está robustecido com a lei do marco civil da internet, ao considerar o fato de a lei examinada exigir: as cláusulas contratuais devem vir dispostas em destaque, de forma clara e com as consequências e limites do compartilhamento de dados.

Muito a propósito, a alínea “c” do inciso VIII, do art. 7 o exige que os contratos de prestação de serviços ou em termos de uso de aplicações da internet especifiquem as finalidades às quais os dados serão coletados. Não é permitido, ao facebook, por exemplo, ao coletar os dados de seus usuários, compartilhá-los com todo e qualquer aplicativo que vier a ser criado ou já existente, sob o pífio argumento de autorização prévia, quando o compartilhamento vier a ser revelador de utilização posterior de forma a prejudicar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem de seus consumidores.

O compartilhamento posterior daqueles dados colhidos, por exemplo, na confecção do perfil do usuário, somente poderão ser compartilhados em termos a preservar os elementos acima referidos, mediante autorização prévia, o chamado consentimento livre, expresso e informado.

O tratamento de dados, elemento sensível com a franca possibilidade de prejudicar o consumidor, no espírito da lei, está proibido. Ademais, eventual autorização prévia afetadora da garantia do direito à privacidade, é nula de pleno direito (art. 8 o. e seu parágrafo único e inciso I, da lei em estudo). Importante noticiar, o Projeto de Lei de atualização do CDC erige a autodeterminação, a privacidade e a segurança das informações e dados prestados ou coletados como um direito básico do consumidor e sua aprovação deverá refletir diretamente na interpretação da atual lei do Marco Civil[9].

6.2 Dupla finalidade da coleta de dados

A coleta de dados dos usuários de internet (consumidores) pode ser compreendida em sua dupla finalidade. A primeira finalidade, direcionada ao faturamento empresarial e venda de publicidade, decorre da vocação natural dos prestadores de serviços em internet, fonte de rentabilidade da rede de internet, com a ampla possibilidade da abertura do leque de vendas. A segunda finalidade, direcionada às autoridades administrativas e a cumprir com possível futura ordem judicial, é a da identificação posterior daquele agente primário eventualmente violador da esfera de proteção de terceiros, como nos casos de inserção de perfis falsos, de ofensa à honra e a imagem de outrem etc.

Quanto à futura identificação de agente lesante, avizinha a franca possibilidade de algumas empresas não agirem com a eticidade necessária no desempenho de suas atividades, dado o legislador brasileiro ter cochilado e colocado uma armadilha na proteção de terceiros atingidos, ao admitir, em seu art. 17, “a opção por não guardar os registros de acesso a aplicações de internet” com a cláusula de tal desídia não implicar responsabilidade sobre danos decorrentes do uso desses serviços por terceiros.

O citado dispositivo, em verdade, parece estar embebido de inconstitucionalidade, ao admitir a abertura do dever de cumprir com as obrigações, como não implicar em nenhuma responsabilidade no atingimento da esfera de terceiros, os vulneráveis na relação de consumo[10]. Ora, o artigo questionado parece ter sido desenhado por aqueles aplicativos que vez por outra surgem no mercado brasileiro, prometendo anonimato, com a possibilidade de causar danos à esfera protetiva da honra, da imagem e da privacidade, como fosse possível a primazia da liberdade de expressão em detrimento da dignidade da pessoa humana, a exemplo do aplicativo Lulu e do mais recente aplicativo do secret.

7 Da irresponsabilidade civil dos provedores de internet

O sistema adotado no velho Continente, em apertada síntese, pode ser afirmado no estabelecimento de um sistema de irresponsabilidade civil aos intermediários técnicos, desde que esses desconheçam a existência de material ilícito em seus sistemas e a partir do momento em que tenham conhecimento da ilicitude, atuem com diligência no sentido de retirar ou impossibilitar o acesso às informações.  A legislação comunitária deixa em aberto a questão, do que seja efetivamente ter consciência de fatos e circunstâncias de que a atividade ilegal é aparente, pondo nos ombros dos países membros o detalhamento do procedimento a ser dado o grau de conhecimento e o dever de agir.

A opção do legislador brasileiro não foi a do regime estabelecido na Comunidade Europeia. Do bojo do texto legal examinado, a opção da lei brasileira foi a de adotar a essência do regime legal existente nos EUA, na lei da Decência das Comunicações. Pelo regime dos Estados Unidos, questões do Direito Autoral devem ser tratadas em outra lei (e foram – DMCA), como dispõe o Marco Civil, ao deixar a legislação existente ou a ser criada cuidar do assunto[11].  Em síntese, a legislação da Decência das Comunicações isenta o provedor de conteúdos de terceiros e de acesso pelos materiais ilícitos existentes em seus servidores. O provedor do próprio conteúdo é o responsável por suas publicações.

Assim, segundo dispõe o art. 18, o provedor de conexão não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Alias, a regra é universal, pois não teria o menor sentido tornar responsável a companhia telefônica na hipótese de uma ligação anônima. O provedor de conexão não possui e não pode possuir qualquer controle prévio acerca dos conteúdos transmitidos em seus sistemas, sob pena de ser estabelecido um regime preventivo e obrigatório de monitoramento na internet. A própria lei, em face do princípio da neutralidade, veda qualquer discriminação quanto aos pacotes em tráfego nos sistemas dos provedores de conexão.

Não obstante a lei não traga em seu bojo a questão da responsabilidade legal atribuída ao provedor de conteúdo próprio, decorre do própria lógica a imputação de responsabilidade àquele que publica o seu conteúdo.

E amenizando o amplo espectro de irresponsabilidade conferida ao provedor de conexão, a lei condiciona a irresponsabilidade aos chamados provedores de aplicações de internet em face do chamado conteúdo gerado por terceiros. Como ocorre a amenização, ou o condicionamento desta irresponsabilidade?

A regra geral, em sua interpretação literal, assegura ao provedor de aplicações de internet não restar obrigado a retirar conteúdo gerado por seus consumidores (a lei fala em terceiros) mediante os chamados avisos daqueles que aleguem restar prejudicados por conteúdos supostamente violadores da esfera de proteção.

A regra da não retirada obrigatória dos conteúdos deixa de existir quando há ordem judicial determinando sua retirada, o que parece óbvio à primeira vista. Se o juiz determinar, o seu descumprimento terá consequências, particularmente quando não for cumprida adequadamente. A ordem judicial deve ser específica e delimitadora do seu alcance e com precisa indicação da localização do material questionado[12]. Logo, a primeira exceção da não obrigação de retirada de conteúdos prevista na  lei é a da exigência de ordem judicial específica.

No entanto, a lei do marco civil não foi tão drástica quanto ao quesito da imunidade de responsabilidade civil ao provedor de internet de aplicações, ao permitir simples avisos para tornar obrigatória a retirada de conteúdo, com a condição de os conteúdos questionados estarem relacionados a imagens, vídeos ou quaisquer outros materiais que contenham cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado, a chamada vingança pornô[13].

A lei não estipula prazo para o provedor agir ativamente na remoção do conteúdo, apenas afirmando que a indisponibilização deva ocorrer de forma diligente, consagrando o tripé da capacidade, conhecimento e inércia como requisitos de ativação de imputação de responsabilidade. Em outras ordens jurídicas resta consagrado a menção a agir de forma expedita (DMCA), ou de forma diligente (Diretiva do Comércio Eletrônico) e no Brasil, há precedentes fazendo menção da obrigatoriedade da retirada do conteúdo ocorrer em 24 horas.

O vazio da norma é aparente. Aqui, o legislador usou da boa técnica legislativa, ao deixar em aberto o prazo do dever a ser cumprido, posto que a natureza da internet, na sua forma interpretativa prevista no art. 6 o deve deixar ao caso concreto, a avaliação da diligência operada. O tempo no meio online é essencial no tocante a limitar danos, e com frequência, a remoção somente ocorre depois de causar sérios danos[14].

A notificação não parece ser requisito essencial, de ser efetuada mediante notificação judicial ou extrajudicial. A melhor interpretação a ser dada é a da implícita obrigação de o provedor de aplicações restar obrigado a manter um canal eficaz de recebimento de reclamações, tal como ocorre no regime do DMCA, inclusive por meio eletrônico.[15]

Fica o registro da consagração da responsabilidade civil subsidiária (art. 21). O alcance da subsidiariedade não parece restar dúvidas, consiste no sentido de que ao autor primário do ilícito é o dever de responder civilmente pelos danos causados, mas em sua ausência ou não identificação, o provedor de internet de aplicações deverá arcar com os custos da reparação do dano, condicionado ao não agir de forma diligente na remoção dos conteúdos lesivos.

O nó górdio é a questão daqueles conteúdos manifestamente prejudiciais à intimidade, vida privada, honra e imagem, sem adequação à cláusula da vingança pornô. A questão que se põe é, o provedor de internet, ao receber uma notificação fundamentada de eventual prejudicado, municiada com documentos sérios e com elementos demonstrativos e irrefutáveis da violação da esfera da vítima, não será obrigado a agir na remoção ou indisponibilização daquele conteúdo? Continua a ser exigida a remoção somente por ordem judicial?

O caput do art. 19 diz que o intuito do regime legal é a de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura. O provedor, na linha do esboço legislativo, não pode arvorar-se em juiz da causa. A resposta não pode ser tão simples e aceitar, a regra da irresponsabilidade colocada no artigo em questão possa ter um alcance ilimitado ainda naqueles casos de manifesta violação dos direitos protegidos pela lei do Marco Civil da Internet e sob o amparo de nosso sistema jurídico.

Aqui, o juiz de um caso concreto deve buscar socorro na essência dos princípios da disciplina da internet. Vejamos o art. 3 o.

O princípio erigido pelo legislador como preponderante, foi o da garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal. Não obstante a intenção deliberada do legislador infraconstitucional, a proteção da privacidade e dos dados pessoais também constituem princípios em igual forma e talvez até com um alcance maior, dado que decorrem diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana. Logo, tais princípios devem ser ponderados no caso concreto, de forma a não deixar nenhum deles a descoberto ou dar uma amplitude maior ou menor, divorciado do texto constitucional.

A sugestão na boa aplicação da lei é a de exigir dos provedores de aplicação a manutenção de canais efetivos via on-line para recebimento de reclamações fundamentadas, com obrigação de comunicar ao queixoso do resultado de sua apreciação. Na hipótese de não apreciar a reclamação ou não responde-la de forma adequada, informando de conclusão sobre a retirada ou não do conteúdo, no caso concreto, o juiz deve ponderar quais valores estão em jogo e buscar no espírito do CDC, nomeadamente no art. 6 o, inciso VI, da efetiva prevenção e reparação de danos (Princípio da Prevenção), e imputar o dever de indenizar ao provedor que deixou de agir quando podia fazê-lo. Adotado o regime do CDC, o serviço  é defeituoso.

O consumidor vítima (art. 17, do CDC), é um agente a ser necessariamente protegido de forma especial. Não fosse suficiente, o CDC pune a prática de condutas abusivas, na dicção legal do art. 39 (dentre outras práticas), e não pode ser esquecido, o consumidor é  a parte vulnerável da relação de consumo. As atividades dos provedores de aplicações em internet, os serviços prestados, são serviços submetidos à égide do CDC. Também é preciso lembrar, o Código Civil torna como ato ilícito o ato abusivo[16].

8 Da defesa do consumidor em juízo

Em face da possível judicialização das demandas advindas da inserção de conteúdos prejudiciais à honra, à reputação ou a direitos da personalidade ou da indisponibilização de tais conteúdos, o legislador abriu margem à utilização dos juizados especiais para resolução dos litígios (art. 18, 3 o, da lei do marco civil da internet), colocando em mãos do judiciário a responsabilidade de dirimir uma infindável fonte de litígios. Ora, mais salutar teria sido a opção legislativa de imputar um senso maior de agir com prudência, diligência e boa fé aos agentes econômicos integrantes da cadeia de prestação de serviços, os operadores de internet.

Na mesma linha, ainda foi permitido expressamente em sede de juizado especial, a possibilidade de antecipação de tutela, medida processual com divergência de ser possível conceder no rito abreviado das causas submetidas à Lei 9.099/95. Certamente, o legislador não atentou adequadamente ao fato notório de os juizados especiais estarem com sobrecarga de feitos, e a agilidade pretendida na prestação jurisdicional não surta efeitos, com a continuidade ou perpetuação das ofensas à terceiros. Na mesma linha, o legislador caminhou na linha de querer a justiça como onipresente e resolver as demandas que poderiam ser solucionadas com a imputação de deveres de agir de forma mais diligente.

Por fim, a lei admitiu a defesa coletiva na defesa dos direitos consagrados no texto do marco civil da internet, a exemplo do direito da privacidade e da proteção de dados, o que é extremamente salutar, pondo fim a eventuais divergências, ex vi do art. 30.

9 Conclusão

O trabalho não visou solucionar ou esgotar as diferentes nuances da lei do marco civil da internet. A ideia foi provocar algumas questões, abrindo o debate, forte na acepção da naturalidade do dissenso.

Não obstante a crença infundada e ultrapassada de configurar a internet um espaço imune ao poder estatal, uma zona de non-droit, mesmo diante da ausência de lei específica sobre o tema, o judiciário sempre deu respostas aos casos submetidos a apreciação.

A lei possui suas deficiências. No entanto, não deve ser simplesmente desconsiderada, eis que basta procurar com um olhar de lince suas amplas possibilidades de proteção ao consumidor, lapidando as imperfeições e exigir do aplicador do Direito a melhor solução possível com base na principiologia estatuída pelo Marco Civil e sua interação com o Código de Defesa do Consumidor, na linha do que já está consagrado como diálogo das fontes.

Vale lembrar a preciosa lição do Professor Doutor Manoel Carneiro de Frada[17], com a liberdade de adaptação, os consumeristas podem descansar: porfie bem, que encontrará via de regra, no tesouro do sistema jurídico de proteção ao consumidor as soluções mais adequadas para a responsabilidade civil das operadoras, descobrindo a perene atualidade daquilo que é vivo e sábio.

Tenho dito.

Sobre o autor
Paulo Roberto Binicheski

Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa-Portugal, Professor de Direito do Consumidor no Instituto de Educação Superior de Brasília – IESB, Professor no Curso de Pós Graduação Lato Sensu em Direito Advocacia Empresarial, Contratos, Responsabilidade Civil e Família no Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP, Promotor de Justiça titular da 1. Promotoria de Defesa do Consumidor do MPDFT.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BINICHESKI, Paulo Roberto. O marco civil da internet: primeiras linhas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4296, 6 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36379. Acesso em: 22 nov. 2024.

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