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A natureza objetiva da qualificadora do feminicídio e sua quesitação no Tribunal do Júri

Agenda 10/03/2015 às 22:26

O que muda na prática do júri com a nova lei do feminicídio

 

Com a recente aprovação do Projeto de Lei nº 8.305/2014, da Câmara dos Deputados, foi sancionada a Lei nº 13.104, de 09 de março de 2015, que alterou o art. 121 do Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Assim, cumpre verificar como se dará a elaboração e a votação do questionário (CPP, art. 482 e seguintes) a ser respondido pelos jurados no Tribunal do Júri, órgão jurisdicional competente para o julgamento do feminicídio.

A redação do art. 121 do CP passou a vigorar com as seguintes inovações a partir do dia 10 de março de 2015, in verbis:

 

Homicídio simples

Art. 121.  ..............................

..................................................

Homicídio qualificado

§ 2º  ...................................

..................................................

Feminicídio

VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:

..................................................

§ 2º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

I – violência doméstica e familiar;

II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

......................................... .......

Aumento de pena

......................................... .......

§ 7º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:

I – durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;

II – contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;

III – na presença de descendente ou de ascendente da vítima.

 

Primeiramente, observa-se que a redação originária do Senado Federal (PLS nº 292/2013) trazia no novel inciso VI do § 2º do art. 121 do CP a expressão “por razões de gênero”, a qual foi substituída na Câmara dos Deputados pela expressão equivalente “por razões da condição de sexo feminino”, o que em nada muda a exegese do dispositivo, na medida em que ele faz referência ao homicídio praticado contra a mulher (pessoa do sexo feminino) em decorrência de construções socioculturais plasmadas no inconsciente coletivo, as quais espelham relações desiguais e assimétricas de valor e poder atribuídas às pessoas segundo o sexo.[1]

Com efeito, o feminicídio constitui modalidade de violência de gênero ou, conforme preceitua o art. 5º, caput, da Lei Maria da Penha e o art. 1º da Convenção de Belém do Pará, violência “baseada no gênero”. Nessa perspectiva, vale destacar as seguintes definições contidas no art. 3º, alíneas “c” e “d”, da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica – Convenção de Istambul, in verbis:

c) «Género» refere-se aos papéis, aos comportamentos, às atividades e aos atributos socialmente construídos que uma determinada sociedade considera serem adequados para mulheres e homens;

d) «Violência de género exercida contra as mulheres» abrange toda a violência dirigida contra a mulher por ser mulher ou que afeta desproporcionalmente as mulheres;

Dentre as circunstâncias qualificadoras do crime de homicídio, há as de caráter subjetivo ou pessoal (incisos I, II e V), vinculadas à motivação e à pessoa do agente e não ao fato por ele praticado, bem como as de caráter objetivo ou real (incisos III, IV e VI), associadas à infração penal em si, tais como o meio, o modo de execução do crime e o tipo de violência empregado.

A nova qualificadora do feminicídio não constitui o móvel imediato da conduta, isto é, o agente pode ter agido por causa de uma discussão banal com a vítima (motivo fútil) ou por causa da sua possessividade e ciúme excessivo em relação à vítima ou em razão de seu inconformismo com o término do relacionamento afetivo (motivo torpe), para ficar só nesses dois exemplos corriqueiros na lida do Tribunal do Júri, dentre muitos outros. Durante o interrogatório de um réu que tenha praticado um feminicídio, jamais lhe será perguntado se ele cometeu o crime “por razões de gênero” (ou “por razões da condição de sexo feminino”), mas qual o acontecimento, atitude ou episódio do contexto fático-probatório do caso que fez eclodir ou o levou ao ato de violência macabro, ocorrência essa que geralmente constitui algum motivo fútil ou torpe na maioria das vezes, conforme exemplificado.

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Por outro lado, assim como a elementar objetiva do emprego de violência diferencia um crime de roubo de um crime de furto, a qualificadora do feminicídio descreve hipótese fática objetiva da presença (existência ou emprego) de violência praticada contra a mulher por razões da condição de sexo feminino (isto é, por razões de gênero) em duas hipóteses específicas elencadas no § 2º-A do art. 121 do CP: violência doméstica e familiar contra a mulher (inciso I) e menosprezo ou discriminação à condição de mulher (inciso II). Ou seja, caberá aos juízes naturais da causa (os jurados, no caso do Tribunal do Júri) apenas verificar a situação objetiva da presença ou não dessas duas hipóteses dos incisos I e II do § 2º-A do art. 121 do CP, como já ocorre hoje com a verificação, pelo juiz togado, por ocasião da fixação da pena, da incidência da circunstância agravante do art. 61, II, “f”, parte final, do CP, a qual prevê exasperação da pena quando o agente tiver cometido o crime “com violência contra a mulher na forma da lei específica”, ou melhor, na forma da Lei 11.340/06, que nos seus artigos 5º e 7º enumera as hipóteses e formas de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Doravante, quando a qualificadora do feminicídio incidir, restará prejudicada a incidência da agravante genérica do art. 61, II, “f”, parte final, do CP, sob pena de bis in idem vedado pelo art. 61, caput, do CP. De outra parte, a expressão “violência doméstica e familiar” contida no inciso I do § 2º-A deve ser interpretada sistematicamente tal qual está positivada na Lei Maria da Penha, não só pela necessidade de coerência, unidade e concordância prática do ordenamento jurídico protetivo da mulher, como também porque o próprio Código Penal, no art. 61, II, “f”, fez remissão à “lei específica” quando quis se referir à violência praticada contra a mulher.

Portanto, se, de um lado, a verificação da presença ou ausência das qualificadoras subjetivas do motivo fútil ou torpe (ou ainda da qualificadora do inciso V) demandará dos jurados avaliação valorativa acerca dos motivos inerentes ao contexto fático-probatório que levaram o autor a agir como agiu, por outro lado, a nova qualificadora do feminicídio tem natureza objetiva, pois descreve um tipo de violência específico contra a mulher (em razão da condição de sexo feminino) e demandará dos jurados mera avaliação objetiva da presença de uma das hipóteses legais de violência doméstica e familiar (art. 121, § 2º-A, I, do CP, c/c art. 5º, I, II e III, da Lei 11.340/06) ou ainda a presença de menosprezo ou discriminação à condição de mulher (art. 121, § 2º-A, II, do CP).

Nesse sentido, note-se que a hipótese do inciso II do § 2º-A ficou reservada aos casos em que autor e vítima são pessoas desconhecidas e sem qualquer relação interpessoal, diferentemente da hipótese do inciso I do § 2º-A, que cuida dos casos em que autor e vítima têm ou mantiveram alguma relação de proximidade, conforme hipóteses do art. 5º, I, II e III, da Lei 11.340/06, in verbis:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Por conseguinte, é objetiva a análise da presença do modelo de violência baseada no gênero (ou em razão da condição do sexo feminino), positivada na Lei Maria da Penha e na Convenção de Belém do Pará e agora incorporada pela Lei nº 13.104/2015 com a expressão “violência doméstica e familiar”, já que a Lei Maria da Penha já reputa como hipóteses desse tipo de violência aquelas transcritas acima (art. 5º, incisos I, II e III).

No que diz respeito à redação dos quesitos a serem votados na sala especial pelos jurados nos casos de feminicídio, não se pode olvidar que o parágrafo único do art. 482 do CPP determina que os quesitos sejam redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária precisão. Desse modo, o quesito da qualificadora do feminicídio, assim como os das causas de aumento trazidas pelo novel § 7º do art. 121 do CP deverão ser votados por último, após os quesitos da materialidade, autoria, absolvição e eventual quesito de causa de diminuição de pena alegada pela defesa (CPP, art. 483).

Outrossim, a redação dos quesitos deve ser simplificada ao máximo, de modo a ser compreendida facilmente por um espectro amplo de jurados, de maneira que não há necessidade de se repetir a expressão contida no VI do art. 121 (“contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”), já que o § 2º-A faz interpretação autêntica de referida expressão na forma dos seus respetivos incisos I e II, por isso basta que o conteúdo descritivo de desses incisos esteja contido na quesitação.

Assim, a título de ilustração, teríamos os seguintes quesitos num questionário típico de caso de feminicídio consumado:

1º Quesito (materialidade). No dia tal, endereço tal, hora tal, nesta cidade, a vítima fulana sofreu ferimentos de instrumento perfuro-cortante, conforme laudo de exame cadavérico tal?

2º Quesito (autoria). O acusado fulano foi o autor dos ferimentos descritos no quesito anterior?

3º Quesito (absolutório). O jurado absolve o acusado?

4º Quesito (na eventualidade de ser alegada causa de diminuição pela defesa nos debates). O acusado cometeu o crime sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima (descrever no que consistiu a provocação da vítima)?

5º Quesito (na eventualidade de ter sido admitida qualificadora subjetiva na pronúncia). O acusado cometeu o crime mediante motivo torpe, consistente em sentimento de posse e ciúme paranoico, ao não aceitar a vítima usar roupas curtas?

6º Quesito (na eventualidade de ter sido admitida qualificadora objetiva na pronúncia). O acusado cometeu o crime com meio cruel, pois desferiu muitas facadas na vítima, infligindo a ela desnecessário e excessivo sofrimento?

7º Quesito (qualificadora do feminicídio). Há quatro possiblidades de quesitação, a depender de qual das hipóteses do § 2º-A incidirá no caso concreto:

7º.1. O crime envolveu violência doméstica e familiar contra a mulher, pois o acusado convivia com a vítima na mesma unidade doméstica (hipótese do art. 5º, I, da Lei 11.340/06)?

7º.2. O crime envolveu violência doméstica e familiar contra a mulher, pois o acusado pertencia à família da vítima, já que era irmão dela (especificar parentesco natural ou por afinidade – hipótese do art. 5º, II, da Lei 11.340/06)?

7º.3. O crime envolveu violência doméstica e familiar contra a mulher, pois o acusado já tinha mantido relação íntima de afeto com a vítima (hipótese do art. 5º, III, da Lei 11.340/06 – especificar se namoro, união estável, casamento, noivado etc.)?

7º.4. O crime envolveu menosprezo ou discriminação à condição de mulher, consistente em... (especificar no que consistiu o menosprezo ou a discriminação)?

8º Quesito (causas de aumento do feminicídio). Há sete possibilidades de quesitação, a depender de qual das hipóteses do § 7º incide no caso concreto:

8º.1. O crime foi cometido durante a gestação?

8º.2. O crime foi cometido nos três meses posteriores ao parto?

8º.3. A vítima era menor de 14 anos?

8º.4. A vítima era maior de 60 anos?

8º.5. A vítima tinha deficiência?

8º.6. O crime foi cometido na presença de descendente da vítima (especificar qual)?

8º.7. O crime foi cometido na presença de ascendente da vítima (especificar qual)?

Por fim, vale ressaltar que, na hipótese de o homicídio privilegiado (CP, art. 121, § 1º) ser acolhido pelos jurados (4º quesito), restará prejudicada a votação do quesito da qualificadora subjetiva eventualmente imputada na pronúncia (motivo fútil ou torpe), porém a votação seguirá quanto às qualificadoras objetivas (incisos III, IV e VI do § 2º do art. 121 do CP), inclusive quanto à qualificadora do feminicídio, pois, conforme explicado linhas atrás, tal qualificadora é perfeitamente compatível com a incidência do privilégio, quando teríamos um homicídio privilegiado-qualificado. Entendimento diverso (ou seja, entender que o acolhimento do privilégio é incompatível com a qualificadora do feminicídio, ao fundamento de que esta teria natureza subjetiva) conduziria ao disparate de se estar diante de um caso típico de violência de gênero (ou, noutras palavras, caso típico de feminicídio) e de o quesito do feminicídio sequer chegar a ser votado pelos jurados uma vez acatado o privilégio, em total afronta ao escopo da Lei nº 13.104/2015.

 

[1] Nessa linha era, mutatis mutandis, a redação originária do art. 5º, caput, do PL 4.559/2004, que resultou na edição da Lei Maria da Penha – Lei 11.340/06, dispositivo que conceituava relações de gênero.

Sobre o autor
Amom Albernaz Pires

Promotor de Justiça no MPDFT com atuação no Tribunal do Júri de Ceilândia/DF. Pós-graduado em Ciências Penais pela FESMPDFT.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Sou muito interessado na temática da violência de gênero. Já tenho artigo publicado pelo Jus Navigandi com o título a O opção legislativa pela política criminal extrapenal e a natureza jurídica das medidas protetivas da Lei Maria da Penha.

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