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A indefinição jurídica sobre o início da vida humana:

desinteresse legislativo versus aborto

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Agenda 29/03/2015 às 09:15

Capítulo III

4  - Aplicação prática: aborto

 Sem dúvida, definir juridicamente o momento em que se dá o início da vida humana, dentre outras aplicações, acarretaria uma possível legalização da prática de aborto no país. É o que se tentará demonstrar nesse tópico.

 Infelizmente, a prática abortiva é um problema de saúde pública no Brasil e assim deveria ser tratada. O Dr. Drauzio Varella alerta[14] sobre a atual situação do aborto no Brasil:

 Desde que a pessoa tenha dinheiro para pagar, o aborto é permitido no Brasil. Se a mulher for pobre, porém, precisa provar que foi estuprada ou estar à beira da morte para ter acesso a ele. Como consequência, milhões de adolescentes e mães de família que engravidaram sem querer recorrem ao abortamento clandestino, anualmente.

 (...) Conciliar posições díspares como essas é tarefa impossível. A simples menção do assunto provoca reações tão emocionais quanto imobilizantes. Então, alheios à tragédia das mulheres que morrem no campo e nas periferias das cidades brasileiras, optamos por deixar tudo como está. E não se fala mais no assunto.

 (...) Não há princípios morais ou filosóficos que justifiquem o sofrimento e morte de tantas meninas e mães de famílias de baixa renda no Brasil. É fácil proibir o abortamento, enquanto esperamos o consenso de todos os brasileiros a respeito do instante em que a alma se instala num agrupamento de células embrionárias, quando quem está morrendo são as filhas dos outros. Os legisladores precisam abandonar a imobilidade e encarar o aborto como um problema grave de saúde pública, que exige solução urgente.

 No Brasil, uma em cada cinco mulheres entre 18 e 40 anos de idade já fez ao menos um procedimento abortivo, e metade delas teve que ser internada em decorrência da prática. Os dados são da maior pesquisa já realizada no país sobre o tema, feita por dois cientistas brasilienses, Marcelo Medeiros e Débora Diniz. O trabalho inclusive recebeu o maior prêmio das Américas na área de pesquisas sobre saúde, o Fred L. Soper à Excelência em Literatura sobre Saúde. A pesquisa foi feita pelo método de cédula, para que a mulher não se sentisse constrangida em responder de forma honesta, e chegou-se à relação de 1/5 o número de mulheres que já fizeram aborto. A pesquisa foi  publicada na revista Ciência & Saúde Coletiva no ano de 2010. Por critérios legais e práticos, a pesquisa restringiu-se apenas à mulheres entre 18 e 40 anos. Imagine-se se fossem incluídas aí as adolescentes entre 14 e 17 anos de idade, que representam parcela significativa do número de mulheres com vida sexual ativa e que estão em idade fértil. Isso poderia aumentar o número obtido na pesquisa.

 Dados do Sistema Único de Saúde, o SUS, dão conta de que entre os anos de 1995 e 2007 foram realizados 3,1 milhões de curetagens no país. É uma média de 258 mil procedimentos anuais. Se se levar em conta que esses são números oficiais e que estão aí excluídas as mulheres que não chegam a precisar de atendimento hospitalar, ou mesmo as que precisando não o buscam, o número é assustador. E é justamente isso que diz o Instituto Alan Guttmacher, que realiza pesquisas sobre o aborto em todo o mundo, e aponta que no Brasil são realizados cerca de 1.000.000 (um milhão) de abortos anualmente. Repita-se, o aborto é um problema de saúde pública.

 Infelizmente, tanto o legislativo quanto o executivo nacionais fazem de conta que o problema não existe e ficam inertes diante da situação. O legislativo por não se dar conta de que o Código Penal é ineficaz e o executivo por não promover políticas públicas para um melhor planejamento familiar e atendimento médico descente.

 Por partes. Primeiramente, convém analisar a conjuntura do ordenamento penal brasileiro. O Código Penal data da década de 40 do século passado e hoje não mais satisfaz os anseios da população. Se na época em que foi feito o Código Penal a sociedade demonizava o aborto e o clamor era por condenar tal prática, hoje já não mais. Não se está aqui a dizer que a sociedade atual consente com a prática abortiva e que massivamente a aceita. Não. O que aqui se está a dizer é que atualmente a sociedade é mais tolerante e que o tema precisa ser revisto pelo legislativo. O Código Penal é totalmente ineficaz no que tange ao crime de aborto porque contam-se nos dedos o número de mulheres realmente presas pelo crime em relação à quantidade de abortos realizados. E prever punições mais severas não vai coibir a prática, pois as mulheres, quando precisarem, vão abortar e isso é um fato. Pelos dados trazidos acima, imagine processar e encarcerar todas essas um milhão de mulheres, bem como médicos e enfermeiras que colaboraram com a realização do aborto.

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 Por tanto, poder-se-ia adotar uma legislação atinente a definir o momento em que se inicia a vida humana, que poderia, além de regulamentar a prática do aborto, trazer aplicações em outras áreas do Direito. Nos Estados Unidos, por exemplo, o estado do Kansas aprovou lei que define a concepção como marco inicial da vida humana, seguindo a tendência de outros estados como Arkansas, Carolina do Norte, Illinois, Missouri e outros. Nos Estados Unidos, desde 1973, o aborto é permitido, em função do caso Roe vs Wade.

 No Uruguai, em 2012, foi aprovada a legalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A mulher que optar por realizar o aborto é auxiliada por uma gama de profissionais, como ginecologistas, psicólogos e assistentes sociais, a fim de auxiliá-la na decisão. Depois que a lei entrou em vigor, o número de abortos diminuiu, muito provavelmente em virtude da orientação profissional de psicólogos e assistentes sociais. 

 Alguns países europeus também usam o critério temporal para permitir o aborto, variando o tempo de gestação entre 90 dias e 24 semanas, como é o caso da Holanda, Bélgica, Reino Unido, Suécia, Portugal, Itália, França e Áustria. Importante salientar que na França e na Alemanha a lei regulamentadora do aborto partiu de iniciativas femininas, por meio de manifestos assinados pelas próprias mulheres admitindo que realizaram aborto (quando este ainda era proibido), contando com pouco mais de 300 mulheres.

 No Brasil, no mês de março de 2013, o CFM enviou à Comissão do Senado responsável pelo projeto de reforma do Código Penal documento no qual defende a legalização do aborto até a 12ª semana de gestação, seguindo tendência mundial.

 Pelo que aqui foi exposto, nítido está que legislar sobre o momento em que tem início a vida humana e também sobre a prática abortiva é possível, sendo que se se puder conciliar ambos num mesmo sentido, ou seja, se ambos tiverem o mesmo marco, um final e outro inicial (aborto e início da vida, respectivamente) seria muito bem-vindo. Resta saber se o legislativo brasileiro teria coragem de fazê-lo. Como dito anteriormente no ponto 3.4 deste trabalho, a classe dos políticos brasileiros é, em sua maioria, covarde e não quer se indispor com seu eleitorado. Nenhum político quer tomar a frente de qualquer projeto que possa macular sua imagem frente ao eleitor (como se o envolvimento em esquemas de corrupção já não fosse o bastante).

  As consequências da covardia legislativa são sofridas pelas mulheres brasileiras, obrigadas a recorrer aos métodos quase que medievais para realizar o aborto. Veja-se o que diz o Dr. Dráuzio Varella[15]:

 A técnica desses abortamentos geralmente se baseia no princípio da infecção: a curiosa introduz uma sonda de plástico ou agulha de tricô através do orifício existente no colo do útero e fura a bolsa de líquido na qual se acha imerso o embrião. Pelo orifício, as bactérias da vagina invadem rapidamente o embrião desprotegido. A infecção faz o útero contrair e eliminar seu conteúdo.

 O procedimento é doloroso e sujeito a complicações sérias, porque nem sempre o útero consegue livrar-se de todos os tecidos embrionários. As membranas que revestem a bolsa líquida são especialmente difíceis de eliminar. Sua persistência na cavidade uterina serve de caldo de cultura para as bactérias que subiram pela vagina, provoca hemorragia, febre e toxemia.

 A natureza clandestina do procedimento dificulta a procura por socorro médico, logo que a febre se instala. Nessa situação, a insegurança da paciente em relação à atitude da família, o medo das perguntas no hospital, dos comentários da vizinhança e a própria ignorância a respeito da gravidade do quadro colaboram para que o tratamento não seja instituído com a urgência que o caso requer.

 A leitura do trecho acima é de provocar ânsia. A não ser que a mulher seja de uma classe econômica mais abastada, onde ela é levada a clínicas com condições descentes para realizar o procedimento, esse é o panorama dos abortos clandestinos no Brasil, com abortos feitos na clandestinidade e de forma perigosa para a saúde e vida da gestante.

 O mais correto é a adoção, dessa vez por parte do Poder Executivo, de políticas públicas para o planejamento familiar, fornecendo educação sexual nas escolas e promovendo propagandas nos meios de comunicação.  Quando se fala em legalização do aborto, a primeira coisa que se pensa daqueles que a defendem é que são a favor do aborto. Por mais controverso que pareça, não. De forma alguma, ninguém é a favor do aborto. As pessoas que defendem a legalização do aborto são a favor de a mulher poder escolher se quer ou não aquela gestação naquele momento, e não que ela seja obrigada, sendo dada a opção de interrompê-la, por vários motivos, seja mesmo psicológico ou até financeiro, o que atualmente é denominado de aborto social ou econômico. Como já dito, as mulheres, proibidas ou não, vão abortar e isso é um fato. Portanto, deve-se dar condições iguais às mulheres, sejam ricas ou pobres, de poder realizar o aborto da forma menos traumática possível, seja esse trauma físico ou psicológico. Uma lei para tratar desse fato é imprescindível.


Considerações finais

 O presente trabalho tentou abordar da forma mais clara e objetiva a realidade brasileira no que diz respeito à falta da definição jurídico-legislativa do início da vida humana e, junto a isso, uma possível legalização da prática abortiva. Além do histórico do tema, foram trazidas quatro relevantes teorias sobre o início da vida humana (existem outras) e explicou-se o conceito de cada uma, bem como os prós e contras que cada teoria poderia trazer se fosse adotada. Aliado a isso, analisou-se também a legislação brasileira a respeito do tema em debate e viu-se que cada seguimento do direito acaba abarcando, indiretamente, todas as teorias apresentadas.

 Primeiramente, a possibilidade de se definir o momento inicial da vida humana serviu tão somente para um exercício de reflexão, e as pesquisas e estudos realizados para tal levaram à conclusão de que o tema ainda será bastante debatido e por muito tempo, muito mesmo. São inúmeras questões envolvidas, morais e éticas, religiosas, ideológicas, enfim. E, também como explicado, mesmo que a ciência chegue a um consenso desse marco inicial da vida humana, ainda assim as discussões não cessariam. Cada pessoa, lógico, tem seu íntimo, suas próprias convicções e tentar fazer com que uma pessoa mude aquilo que pensa, principalmente em tema tão espinhoso, é tarefa quase impossível. Mas impossível apenas no campo da discussão, pois no campo jurídico seria sim possível por fim ao impasse, tanto é que em determinados estados dos Estados Unidos o início da vida humana já é definido legalmente.  Se esse singelo trabalho monográfico pudesse lançar mão de uma das teorias trazidas para ser utilizada, dentro da sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, essa teoria seria a da atividade neural, pura e simplesmente por uma questão de lógica. Primeiramente porque é pacífico na legislação e na medicina, não só brasileira mas mundial, de que a morte é definida pela cessação das atividades cerebrais. Assim, nada mais lógico do que encarar o início da vida conjuntamente com os início das atividades neurais. Segundo porque o Supremo Tribunal Federal, tanto no julgamento da ADI 3510, que tratou sobre a constitucionalidade do art. 5º da Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança) quanto no julgamento da ADPF 54, que tratou sobre o aborto de fetos anencéfalos, posicionou-se no sentido de que se não há atividade cerebral não há de se falar em vida, liberando, respectivamente, as pesquisas com células-tronco embrionárias (nos termos da lei 11.105/2005) e o aborto em gestações de fetos anencéfalos.

 Só para lembrar, definir legalmente esse momento está nas mãos unicamente do poder legislativo e isso independe de uma resposta da biologia. Afinal, o Direito faz suas presunções em outros temas, como no caso da citação por edital, em que pelo bem-estar do andamento processual, supõe-se que o réu tomou ciência da ação contra ele movida; ou no caso do estupro presumido quando a jovem é menor de 14 anos de idade, onde, apenas pelo critério da idade, presume-se que o homem agiu com culpa exclusiva, podendo ser levado à cela sem que se considere outros fatos. Esses dois exemplos vêm só para ilustrar que o Direito já faz suas próprias presunções e que definir o momento inicial da vida humana viria apenas a ser mais uma. Como já dito, necessário é que o Direito tome para si a responsabilidade de definir o tema, mesmo sem o auxílio da biologia. 

 Segundo, e talvez o mais importante, seja o outro tema trazido pelo trabalho, que é o aborto e a realidade brasileira sobre esse problema de saúde pública. É preciso que se tenha em mente, e que também a sociedade evolua nesses sentido, de que o aborto existe e que, mesmo proibidas, as mulheres irão continuar abortando. Portanto, proibir não é o caminho. O caminho correto é o da educação e do planejamento familiar, viabilizados pelo Estado, para que o número de mulheres que engravidam em hora inoportuna diminua e para que nos casos que ocorram possa ser dada à mulher a liberdade de escolher se prossegue ou não com a gestação. Se optar por continuar, que assim seja, isso é o desejado. Mas se por um acaso o melhor para o momento seja interromper a gravidez, que assim seja também, com acompanhamento psicológico e social, bem como condições hospitalares para o procedimento.

 Não se pode fechar os olhos para o fato de que há um grande número de mulheres que morrem todos os anos por conta de abortos mal sucedidos. Já se têm ótimos resultados em outros países, inclusive com o vizinho Uruguai, em que depois de uma legislação no sentido de liberar e viabilizar a prática abortiva no sistema público de saúde o número de abortamentos e o número de óbitos de mulheres em decorrência dessa prática diminuíram bastante.  À luz de todo o pensamento exposto neste trabalho, para finalizar, trazse aqui um trecho do editorial do jornal Folha de São Paulo, de 15 de abril de 2007, que diz:

"Nem a ciência nem a religião podem dar uma resposta satisfatória e universal sobre quando começa a vida -se na concepção, ao longo do desenvolvimento fetal ou no nascimento. A única alternativa é deixar que o direito estabeleça o ponto, que será necessariamente arbitrário. O conjunto dos cidadãos e cidadãs tem toda a legitimidade para fazêlo."  

 Apesar de este trabalho dizer que a teoria mais lógica e plausível que poderia ser adotada pelo legislativo pátrio seja a da atividade neural, o trecho acima trazido não poderia ser mais claro. Sim, qualquer critério utilizado hoje para se definir o momento inicial da vida seria arbitrário, pois de fato ainda não há resposta ao questionamento. Mas o conjunto de cidadãos e cidadãs, entenda-se legislativo, tem legitimidade para definir esse momento através de algum critério (claro, buscando, dentro dos limites, o mais racional possível) até que a ciência possa dar uma resposta final, se é que esse dia chegará.  

Sobre o autor
Stefano da Silva Rios

Bacharel em direito pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIOS, Stefano Silva. A indefinição jurídica sobre o início da vida humana:: desinteresse legislativo versus aborto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4288, 29 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37481. Acesso em: 23 dez. 2024.

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