3. AS TRANSGENERIDADES E SEUS ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E JURÍDICOS
“Todos me viam como uma menina. Para mim, era um menino. Havia um abismo de como me viam e como me sentia”.
Assim inicia João W. Nery, primeiro transhomem brasileiro, psicólogo e mestrando que perdeu seu direito de exercer a profissão, bem como as demais garantias civis ante a realização da cirurgia de redesignação sexual em um período de total ilegalidade, o Capítulo 3 – “Zé e Zeca” do seu livro Viagem Solitária – Memórias de um transexual trinta anos depois, que inspira o presente trabalho para além dos estudos jurídicos.
A reflexão acerca do papel da identidade que é atribuída unilateralmente à pessoa ao nascer, bem como das limitações dos conceitos de gênero e sexualidade advindos de interpretações políticas e sociológicas, aceitas pela sociedade como um todo, incita o questionamento do fenômeno da transexualidade e de todas as suas nuances e particularidades.
As determinações de gênero binário de “macho” e “fêmea”, baseadas puramente nos conceitos médicos e genéticos, desconsiderando, pois, a individualidade do ser, bem como suas variações e especificidades e a consciência social de anormalidade das demais identidades de gênero, inclusive classificando-as como distúrbio ou transtorno psicológico, enseja a marginalização das pessoas transgêneras que buscam usufruir das suas liberdades existenciais no âmbito da sociedade.
Nota-se, pois, que a categoria da transexperiência não torna os transhomens e transmulheres (enquanto identidade de gênero que, como será melhor exposto, se diferencia de orientação sexual) uma categoria identitária fixa e determinada, permitindo entendê-la como parte de processos históricos e sociológicos que posicionam os sujeitos e produzem suas experiências, sendo passíveis de interpretação, interrogando seus processos de criação, concluindo, pois, que adveio de experiência política, tanto por sua construção individual, como coletiva.
Neste contexto, válido apresentar conceitos, distinções e características, bem como pontuar os avanços e questionar as omissões jurídicas em torno das garantias dos direitos das pessoas transgêneras, travestis e transexuais.
3.1 Conceitos, distinções e características
Deve-se entender gênero enquanto construção social, cultural e comportamental, limitado pelo sistema binário, cisgênero e heteronormativo do masculino e feminino. Tal axioma, quando irrefletido ou não questionado, ou mesmo não desconstruído, enseja as mais variadas discriminações, tais quais a diminuição do papel da mulher frente ao patriarcalismo, bem como a homofobia e a transfobia.
Por sua vez, entende-se por sexo o conjunto de características físicas (órgãos sexuais e reprodutores), genéticas (genes XX e XY) e fisiológicas (hormônios sexuais masculinos e femininos). Ainda, se aliadas às definições meramente biológicas, estas determinam também o sexo civil, jurídico ou legal, consignado por meio do registro civil de pessoas naturais.
Neste ínterim, mesmo subsistindo o conservadorismo, algumas vezes estimulado por dogmas históricos e sociais que não se adéquam às novas subjetividades, entende-se por superados os conceitos de sexo meramente advindos da medicina ou da ciência, dando lugar às novas orientações, bem como às transidentidades.
João W. Nery (2012) explica que a transidentidade abrange uma série de concepções pessoais em que uma pessoa sente o desejo de adotar, temporária ou permanentemente, o comportamento e os atributos sociais de gênero (masculino ou feminino), em contradição com o sexo genital. Em alguns casos, este será o travestismo ocasional. Em outros, as pessoas podem viver alternadamente com duas identidades sociais, masculina e feminina. Ou assumir uma posição intermediária, o intersexual. Ou, ainda, viver plenamente no tipo de sexo oposto (homossexualidade). Finalmente, algumas pessoas anseiam por uma modificação do corpo até a cirurgia de mudança de sexo: aqui estamos falando especificamente de transexualidade.
Encarada como manifestação da subjetividade, não é possível falar da sexualidade humana sem admitir seu caráter multidimensional. A formação da identidade sexual pressupõe não apenas elementos biológicos, mas também a manifestação da autonomia do sujeito em um dado contexto sócio-cultural. A influência histórica, a maneira como cada um sente e percebe as pessoas, o mundo e a si mesmo, é tão própria que não há como compreender a vivência da sexualidade sem a concepção do indivíduo como um ser autônomo e dotado de particularidades.
Por esta razão, a construção da identidade sexual é consequência da construção da subjetividade da pessoa, no exercício de sua autonomia ético-existencial, do direito ao autodesenvolvimento que se firma em dois pilares básicos - o respeito à dignidade da pessoa humana e o direito de liberdade geral de ação, culminando, portanto, no direito à autodeterminação da identidade de gênero.
Dito isto, ressalta-se que a transexualidade é um estado subjetivo de inadequação do seu gênero psíquico com o seu sexo fisiológico e anatômico, bem como com o gênero social que lhe foi imposto. Em suma, o transhomem não se reconhece no corpo e imposições sociais femininas, nem a transmulher se percebe no físico e designação de gênero masculinas.
Importante esclarecer, neste contexto, que orientação sexual não está, necessariamente, relacionada com a transgeneridade. Aquela diz respeito a uma preferência afetiva e/ou sexual. Por exemplo, no caso da homossexualidade, pessoas que sentem atração por pessoas do mesmo sexo biológico e mesmo gênero social. A transexualidade diz respeito à ausência de reconhecimento do gênero biológico e fisiológico pelo seu gênero psíquico. É a divergência entre sua construção social de gênero e as suas características físicas, externas, mutáveis.
Assim, todos os indivíduos que reivindicam um gênero não apoiado no seu sexo podem ser chamados de 'transgênero'. Estariam incluídos aí, além de transexuais que realizaram cirurgia de troca de sexo, travestis que reconhecem seu sexo biológico, mas têm o seu gênero identificado como feminino; travestis que dizem pertencer a ambos os sexos/gêneros e transexuais masculinos e femininos que se percebem como homens ou mulheres mas não querem fazer a cirurgia. A classificação de suas práticas sexuais como homo ou heterossexuais estará na dependência da categoria que estiver sendo considerada pelo indivíduo como a definidora de sua identidade (o sexo ou o gênero) (LIMA, 2007).
A transexualidade ainda possui classificação de distúrbio psicológico, listado na Classificação Internacional de Doenças (CID10 F54 – Transexualismo), categorizado no grupo de transtornos mentais e comportamentais, o que alimenta os atos discriminatórios e segregadores.
Michel Foucault, em História da Sexualidade, v. I (1999, p.10), alerta:
O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado não possui eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silencia. Não somente não existe, como não deve existir e à menor manifestação fá-lo-ão desaparecer – sejam atos ou palavras.
Não foi por acaso que, em grande parte do Ocidente, desde o século XIX, as lutas sociais e políticas pela descriminalização de algumas sexualidades vistas como desviantes, embora vitoriosas juridicamente, redundaram na patologização (direta ou indireta) dessas mesmas sexualidades. Mais do que conquistar direitos civis através de políticas públicas, a luta dessas pessoas é para saírem da categoria de monstros e conseguirem habitar integral e legitimamente a categoria “humanos”.
Cumpre, pois, transcrever o entendimento de Elizabeth Zambrano, extraído do acórdão de relatoria do Juiz Federal Roger Raupp Rios, prolatado nos autos de Ação Civil Pública que requestava a cobertura da cirurgia de redesignação sexual pelo Sistema Único de Saúde[4]:
O senso comum considera que uma pessoa, ao ser classificada como homem ou mulher (sexo biológico), terá, naturalmente, o sentimento e o comportamento masculino ou feminino (identidade/papel de gênero) e o seu desejo sexual será dirigido para pessoas do sexo e/ou gênero diferente do seu (orientação heterossexual). Esses três elementos - sexo, gênero e orientação - são pensados, em nossa cultura, como estando sempre combinados de uma mesma maneira - homem masculino heterossexual ou mulher feminina heterossexual. É possível, entretanto, inúmeras combinações entre eles. Uma delas é a homossexualidade, termo referente a pessoas que praticam sexo com pessoas do mesmo sexo. Essas pessoas têm orientação sexual diferente da esperada para o seu sexo e gênero, mas isso, não necessariamente, indica uma mudança de 'identidade de gênero'. Elas não se percebem nem são percebidas pelos outros como de um gênero (masculino ou feminino) diferente do seu sexo (homem ou mulher), mesmo com comportamentos considerados ambíguos (homem afeminado ou mulher masculinizada). Já homens que fazem uso de roupas e modificações corporais para se parecer com uma mulher, sem buscar uma troca de sexo cirúrgica são considerados travestis. Travestis, aceitando seu corpo biológico de homem (embora modificado, às vezes, pelo uso de hormônios femininos e/ou implantes de silicone) e se percebendo como mulheres, reivindicam a manutenção dessa ambigüidade corporal, considerando-se, simultaneamente, homens e mulheres; ou se vêem 'entre os dois sexos' nem homens, nem mulheres. Todos, porém, se percebem como tendo uma identidade de gênero feminina.
Pelo exposto, deve-se considerar, ainda, a perspectiva social (que diz respeito ao conteúdo e à forma das relações sociais, cujo desvendamento só se tornou possível a partir da noção de gênero), sob pena de buscar uma solução jurídica incorreta quanto à interpretação sistemática do direito e à força normativa da Constituição. Com efeito, a força normativa de Constituição, como método próprio de interpretação constitucional, exige do juiz, ao resolver uma questão de direitos fundamentais, adotar a solução que propicie a maior eficácia jurídica possível das normas constitucionais.
É, portanto, diante da eficácia dos direitos fundamentais sobre a autonomia privada existencial, que se revela imprescindível a consideração de uma abordagem social da transexualidade, em detrimento da biomédica, a fim de que se alcance uma solução jurídica constitucionalmente adequada para este litígio.
3.2 A tutela do direito à autodeterminação de gênero pelo Judiciário brasileiro
O reconhecimento da transexualidade na década de 1950, embora por vias da patologização, representou um avanço para a luta destas pessoas, que passaram de esquecidos para portadores. Isto denota, portanto, a completa marginalização dos transgêneros no decorrer da história.
Atualmente, manter esse status é legitimar uma ideia com base apenas na medicina, de que a identidade de gênero deve ser designada a partir da mera observância do sexo morfológico fisiológico e genético, desconsiderando, portanto, a identidade de gênero socialmente construída. O sentimento de gênero. O entendimento e a formação da personalidade e individualidade.
O Problema dos portadores de disforia de gênero, como vem sendo tratado pelo poder público no Brasil, mormente pelo Poder Judiciário, acaba por exclui-los do espaço público, nega-lhes a prerrogativa de sujeitos de direito, ao vedar-lhes a adequação do seu sexo morfológico ao sexo psíquico e a correspondente redesignação do estado sexual e do prenome no assento de nascimento. A Constituição de 1988 fornece, em seus princípios, todos os fundamentos necessários para adequar o transexual não só a sua realidade psíquica, mas a toda realidade social, para fazê-lo um participante útil e produtivo do seio produtivo (SZANIAWSKI, 1998, p.255).
Ademais, a defesa da despatologização exige uma reflexão profunda, vez que possui um entrave burocrático determinante para o movimento trans. Diferentemente do caso da homossexualidade, que, ao ser retirada da lista da Classificação Internacional de Doenças (CID) em 17 de maio de 1990, resultou em uma vitória para a luta, existe o impasse no caso dos transexuais, pois, ao deixar de ser tratada institucionalmente como doença, torna-se impossível a cobertura da cirurgia de redesignação sexual pelo Sistema Único de Saúde.
Neste passo, embora seja uma medida essencial à dignidade deste grupo de sujeitos, deve-se antes buscar soluções à burocracia, sob pena de retroceder e anular uma das maiores vitórias dos/as transexuais no país. Válido mencionar, pois, que as cirurgias de adequação de sexo no Brasil apenas se iniciaram legalmente em 1997, a partir da Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 1.482/97[5], que retirou da clandestinidade intervenções cirúrgicas do processo transexualizador, passando, contudo, a serem realizadas nos hospitais universitários e em caráter experimental (NERY, 2011).
Em 2002, o CFM revisou esta norma, por entender que nem todos os procedimentos de transgenitalização eram experimentais, e publicou a Resolução nº 1.652/2002[6], que passou a ser referência nacional “para todas as ações endereçadas às pessoas transexuais, mesmo para os profissionais não vinculados ao Conselho Federal de Medicina.”[7]
Cumpre dispor decisão já citada anteriormente, prolatada em 14/08/2007 no bojo de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal a qual condenou a União a incluir o tratamento cirúrgico de redesignação sexual na lista de cobertura promover todas as medidas apropriadas para possibilitar aos transexuais a realização, pelo Sistema Único de Saúde, de todos os procedimentos médicos necessários para garantir a cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários, conforme critérios estabelecidos na Resolução nº 1.652/2002, do Conselho Federal de Medicina.
Declarou, também, a obrigação da União de editar ato normativo que preveja a inclusão de modo expresso, na Tabela de Procedimentos remunerados pelo Sistema Único de Saúde (Tabela SIH-SUS), métodos os procedimentos cirúrgicos necessários para a realização da cirurgia nominada no item anterior, bem como remunere os hospitais pelos procedimentos realizados em conformidade com a citada Resolução.
Na ocasião, o Juiz Federal Roger Raupp Rios fundamentou a decisão com uma rica análise interdisciplinar e social do fenômeno da transexualidade, com trechos que seguem:
Quem define esta combinação é, basicamente, a atuação combinada de duas ordens de saber e de crenças: o poder que detêm os profissionais da saúde (vistos como guardiões do saber biomédico) de definir "cientificamente" quem é homem e quem é mulher e, a seu lado, a prevalência de determinadas percepções, socialmente dominantes, sobre o que é ser masculino e o que é ser feminino. […]
Com efeito, a proteção jurídica que a norma constitucional protetiva da dignidade humana proporciona é, dentre outros conteúdos, a garantia de que o sujeito será respeitado como um fim em si mesmo, ao invés de ser concebido como um meio para a realização de fins e de valores que lhes são externos e impostos por terceiros. Vale dizer, é levar a sério a autonomia individual, que possibilita conduzir-se conforme suas próprias convicções e projetos pessoais (respeitados, é claro, direitos de terceiros), livre de imposições externas e de condicionamentos decorrentes de visões de mundo alheias. Para o caso, isto implica que visões de mundo heterônomas, que objetivem impor aos indivíduos transexuais limites e restrições vinculadas a concepções de mundo metafísicas ou políticas, com repercussão no acesso aos procedimentos cirúrgicos, estão em desacordo com os direitos fundamentais de liberdade e de proteção à dignidade humana.
A afirmação da pertinência destes princípios jurídicos ao caso em julgamento demonstra a relevância do pedido veiculado na ação civil pública. Com efeito, a não-inclusão dos procedimentos na tabela do SUS cria dificuldades concretas com impacto restritivo dos direitos fundamentais da liberdade, da não-discriminação, do livre desenvolvimento da personalidade, da privacidade e da dignidade humana. Há, portanto, forte carga argumentativa em favor do requerido pelo MPF, uma vez que somente princípios tão fortes quanto estes serão capazes de prevalecer, em juízo de ponderação, diante do pleito ajuizado. […]
Tais constrangimentos sociais, no caso, derivam de uma "naturalização" do binarismo de gênero, fruto do ambiente cultural, como se o ser humano não pudesse construir suas vivências de modo mais rico e variado do que uma rígida, fixa e pré-determinada descrição de papéis, atribuídas de forma heterônoma e homens e mulheres
De acordo com a metodologia jurídica, esta dinâmica configura verdadeiro processo de concretização do direito fundamental à liberdade, que se expressa no livre desenvolvimento do indivíduo e no direito à identidade sexual, tudo em respeito à dignidade da pessoa humana, garantia constitucional que não se compadece com o desejo de que terceiros determinem os fins da vida alheia. […]
A fundamentação ora desenvolvida é de grande relevância para o caso, uma vez que, diversamente daquilo que concluiu a sentença, a atuação judicial aqui não é a de"legislador positivo", em invasão da competência constitucional do Parlamento ou da Administração. Trata-se, ao contrário, de respeitar a eficácia do direito já existente, que é o direito fundamental, previsto na "Lei das leis", a Constituição. Cuida-se, deste modo, não de ultrapassagem dos limites da atribuição constitucional da jurisdição, mas, ao contrário, de cumprimento da mais importante missão de juízes e de tribunais, que é zelar pelos direitos fundamentais. […]
O direito fundamental de liberdade, diretamente relacionado com os direitos fundamentais ao livre desenvolvimento da personalidade e de privacidade, concebendo os indivíduos como sujeitos de direito ao invés de objetos de regulação alheia, protege a sexualidade como esfera da vida individual livre da interferência de terceiros, afastando imposições indevidas sobre transexuais, mulheres, homossexuais e travestis. A norma de direito fundamental que consagra a proteção à dignidade humana requer a consideração do ser humano como um fim em si mesmo, ao invés de meio para a realização de fins e de valores que lhe são externos e impostos por terceiros; são inconstitucionais, portanto, visões de mundo heterônomas, que imponham aos transexuais limites e restrições indevidas, com repercussão no acesso a procedimentos médicos.
Ratificou, ainda, que a procedência do pedido era premente e com o fim de concretizar direitos fundamentais invocados a partir de uma perspectiva capaz de contemplar a força normativa da Constituição como um todo. No caso, esta solução só é alcançada se o acolhimento do pedido fizer valer, na maior medida possível, os direitos de liberdade, de igualdade, de proteção da dignidade humana e o direito à saúde de forma complementar e simultânea.
Por fim, concluiu que, se a decisão tomasse outro caminho, no sentido de restringir a readequação sexual por intervenção cirúrgica, simplesmente para confirmar o binarismo sexual e gênero tradicionalmente vigentes, teríamos como resultado o enfraquecimento de todos os direitos fundamentais invocados, com a legitimação e reprodução de uma série de graves violações a direitos fundamentais de homens e mulheres heterossexuais, homossexuais, travestis e transexuais.
Vê-se, portanto, um dos maiores avanços no campo da transgeneridade no Brasil, com a medida que proporcionou a readequação das características externas, as quais possuem o condão de identificar o sujeito em todos âmbitos e relações interpessoais, ao seu estado psíquico e subjetivo de identidade de gênero, proporcionando, ainda, que dezenas de sujeitos insertos no seu mundo individual de total desacerto social, tivessem acesso ao procedimento cirúrgico, bem como a todo o processo que o precede, adequando, pois, à sua real identidade de gênero via SUS.
Importante informar que até 2014 foram realizados 6.724 procedimentos ambulatoriais e 243 procedimentos cirúrgicos em quatro serviços habilitados no processo transexualizador no SUS. Desde novembro de 2013, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria n° 2.803, ampliou o processo transexualizador no SUS, aumentando o número de procedimentos ambulatoriais e hospitalares e incluindo procedimentos para redesignação sexual de mulher para homem.[8]
Ademais, tanto os transhomens como as transmulheres precisam passar por todo o complexo trâmite de acompanhamento com psicólogo, endocrinologista e assistente social com fito de obter um laudo que ateste a condição de transexual e o encaminhamento à realização da cirurgia.
Desta feita, a questão se desenvolve em meio às novas configurações de relações de poder, tanto no âmbito do Estado como fora dele, desafiando, pois, a noção de política como busca do bem comum. As inovações científicas aliadas à democratização dos debates em torno das questões de gênero e empoderamento das individualidades afetaram a percepção de identidade e personalidade, cenário no qual as fronteiras entre o mundo psíquico, o mundo coletivo e o mundo pessoal tendem a tornar-se menos densas.
Hoje, não mais deve entender-se que existem hierarquias de culturas nem imposições de modelos comportamentais. Assim, com base nesse entendimento é que foram aprovados, nas 31ª e 33ª sessões gerais da UNESCO em 2002 e 2005, respectivamente a “Declaração Universal sobre Diversidade Cultural” e a “Convenção sobre a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais”. Não existe nada mais rico do que a diversidade humana. Impor padronizações ou modelos culturais é ir de encontro à própria natureza do ser humano e, consequentemente, ir contra sua dignidade, princípio fundamental do Estado brasileiro (art. 1º, inciso III da CF/88). (LOPES, 2008, p.27)
Veja-se, pois, que fora proporcionado às/aos transexuais a readequação do corpo e, portanto, da identidade física adequada ao seu reconhecimento de gênero, não garantindo, contudo, sua readequação no que diz respeito ao seu nome e gênero oficiais, constantes nos registros civis e em desacordo tanto com o seu novo sexo, quanto com sua identidade subjetiva.
Têm-se, portanto, avanços no Executivo, aliados à atuação humanizadora do Judiciário (diga-se pontual, vez que em sua maioria, as decisões judiciais não acatavam os pedidos formulados para realização legal da cirurgia de redesignação sexual), contudo restou-se inerte o poder Legislativo no que diz respeito à tutela dos transgêneros, travestis e transexuais.
Neste contexto, tais sujeitos novamente ficaram presos à burocracia e à ausência de reconhecimento identitário, vez que possuíam um novo corpo readequado à sua identidade de gênero, após longo trâmite clínico para obtenção de um laudo científico sua condição subjetiva, contudo permaneceram com o registro civil constando o nome e sexo de nascença, em total desacordo à sua nova condição. Assim, tornou-se necessário o início de nova etapa para a obtenção da sua identidade real: a ação judicial de retificação de nome e gênero nos registros civis.
Como Paula Viturro (2011, apud LITARDO, 2012, p. 1) sabiamente declarou, “Quem assume um compromisso com a luta contra a discriminação sabe que, agrade-lhe ou não, grande parte de suas batalhas ocorrerá no terreno pantanoso do Direito.”
Por sua vez, Patricia Williams (2003, apud LITARDO, 2012, p. 3), ao tratar da retórica dos direitos, afirmou que “a sutileza da verdadeira instabilidade dos direitos não torna inútil sua máscara de estabilidade”. Essas duas teses coincidem em um olhar crítico que classifica o Direito como um discurso particularmente complexo, uma vez que pode ser tanto funcional a determinados mecanismos de opressão como representar uma ferramenta de libertação de certos círculos de confinamento.
Em termos gerais, os discursos jurídicos não conseguem incorporar uma perspectiva crítica do gênero por serem efeito e causa das normas reguladoras do gênero binário e, por sua vez, também não é possível manter uma perspectiva de gênero do Direito sem primeiro enfocar a própria percepção de Direito (LITARDO, 2012).
Conforme Emiliano Litardo (2012, p. 4):
A nosso ver, esse exercício crítico serve para elaborar estratégias que visam dar visibilidade a situações de vulnerabilidade jurídica e política e para avaliar o impacto de certas políticas públicas voltadas para a diversidade sexual, evitando, o máximo possível, que se caia em atoleiros ideológicos. Trata-se de aguçar a visão para poder avaliar as opções políticas. Ter uma visão crítica do Direito – ideológica e histórica – dá margem à possibilidade de intervenções políticas no campo jurídico.
Neste contexto de empoderamento dos sujeitos pela obtenção de direitos basilares do ordenamento e em busca da dignidade plena, bem como do fortalecimento da luta contra as situações de discriminação, marginalização e violência no cotidiano, vez que comuns as situações de afastamento destes sujeitos do convívio familiar, de agressões físicas fatais, de extrema pobreza ante a impossibilidade de inserção no mercado de trabalho, que se constatou o fenômeno da judicialização das transgeneridades.
3.3 Repercussões do registro de nascimento na construção da identidade social da pessoa
O Código Civil de 2002 foi pensado e construído de modo a apresentar aspectos principiológicos oriundos da constitucionalização das relações privadas. Observa-se uma hermenêutica civilista contemporânea, amalgamada pelo princípio da sociabilidade das relações privadas; a mitigação da liberdade contratual e do direito à propriedade por matérias de ordem pública (função social do contrato e da propriedade); a judicialização da responsabilidade civil; o reconhecimento dos direitos da personalidade e a suas repercussões judiciais e, por fim, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais (MARQUES, 2013).
Neste contexto, a legislação civilística trouxe em seu corpo o capítulo destinado aos direitos da personalidade, no qual objetiva a tutela do nome, reforçando, por sua vez, o seu caráter personalíssimo, no artigo 16, que determina que “Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.”
O nome é um elemento institucional, efetivado pelo registro civil, o qual é instituição administrativa que tem como fim imediato a publicidade de fatos jurídicos de interesses públicos e privados. Tem como função, ainda, dar autenticidade, segurança e eficácia aos fatos cientificados.
Para além do aspecto formal, o nome possui excepcional carga social, vez que traz consigo uma imagem construída de vida pregressa, de feitos, excepcionalidades, erros, enfim, uma marca pessoal que determina diversos passos da vida do indivíduo. Traz também uma identidade de gênero, definida exclusivamente por fatos fisiológicos e biológico, com base na ideia socialmente aceita da heteronormatividade, do masculino versus feminino.
Aduz Pablo Stolze (2002, p. 205) que o nome da pessoa natural é o sinal exterior mais visível de sua individualidade, sendo através dele que a identificamos no seu âmbito familiar e no meio social. Acrescenta:
[...] a personalidade jurídica tem por base a personalidade psíquica, somente no sentido de que, sem essa última não se poderia o homem ter elevado até a concepção da primeira. Mas o conceito jurídico e o psicológico não se confundem. Certamente o indivíduo vê na sua personalidade jurídica a projeção de sua personalidade psíquica, ou antes um outro campo em que ela se afirma, dilatando-se ou adquirindo novas qualidades. Todavia, na personalidade jurídica intervém um elemento, a ordem jurídica, do qual ela depende essencialmente, do qual recebe a existência, a forma, a extensão e a força ativa. Assim, a personalidade jurídica é mais do que um processo superior da atividade psíquica: é uma criação social, exigida pela necessidade de pôr em movimento o aparelho jurídico, e que, portanto é modelada pela ordem jurídica.
O nome é um dos atributos da personalidade, pois faz reconhecer seu portador na esfera íntima e em suas relações sociais. Ele personifica, individualiza e identifica a pessoa de forma a poder impor-lhe direitos e obrigações. Desta feita, é reconhecidamente um direito da personalidade, porquanto é o signo individualizador da pessoa natural na sociedade.
O registro público da pessoa natural não é um fim em si mesmo, mas uma forma de proteger o direito à identificação da pessoa pelo nome e filiação, ou seja, o direito à identidade é causa do direito ao registro. O princípio da verdade real norteia o registro público e tem por finalidade a segurança jurídica, razão pela qual deve espelhar a realidade presente, informando as alterações relevantes ocorridas desde a sua lavratura (RESP 1.072.402-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJO 4/12/2012).
Destarte, ele envolve tanto um direito individual, quanto um interesse social. Possui um aspecto privado, vez que direito da personalidade, bem como ligado diretamente ao princípio da dignidade humana, e um aspecto público, por ter como fim a formação de uma identidade perante a sociedade.
Adriano de Cupis (2008, p.179) assevera que o indivíduo, como unidade de vida social e jurídica, precisa afirmar a sua individualidade, de modo a distinguir-se dos demais:
O bem que satisfaz essa necessidade é o da identidade, o qual consiste, precisamente, no distinguir-se das outras pessoas nas relações sociais. Poderia ser colocada a questão de saber se tal bem deve proceder na hierarquia dos modos de ser morais da pessoa, os bens da honra e resguardo, mas não sofre dúvida a sua grande importância, pois o homem atribui grande valor, não somente ao afirmar-se como pessoa, mas como uma certa pessoa, evitando confusão com os outros.
Norberto Bobbio (1992) chamou a contemporaneidade de a “era das Constituições”, diante da institucionalização da proteção contra o arbítrio e a defesa dos direitos individuais. Cria-se uma linguagem de limitação do exercício do poder que confirma o reconhecimento do direito e da constituição como intimamente ligados ao modo concreto de atuação do poder político – visto este inicialmente como poder do estado confrontando os indivíduos.
Destarte, embora a legislação ainda se mantenha omissa no que diz respeito a determinadas demandas que urgem por respostas efetivas, nota-se um movimento no Judiciário de garantia da eficácia dos direitos fundamentais, relacionados aos direitos humanos e aos direitos da personalidade, com fito de ver a pessoa humana tutelada e respeitada sua individualidade e em suas escolhas existenciais.
Todavia, há de se ressaltar que, embora se visualizem avanços no que diz respeito à garantia de direitos individuais com repercussão coletiva, ante a observância dos princípios da igualdade e da liberdade – vide a democratização do conceito de família, o reconhecimento da união estável homoafetiva, a facilitação da sua conversão em casamento, a adoção por casais do mesmo sexo – têm-se ainda entraves jurídicos por omissão legislativa na tutela do grupo pertencente aos trangêneros, travestis e transexuais e uma intensa luta travada contra a discriminação dessas pessoas ante as suas incompatibilidades com o sistema binário e heteronormativo vigente na sociedade.