Com a evolução dos estudos do Direito Penal, a tipicidade, que era vista sob feição exclusivamente formal, como mera subsunção do fato à norma, passou a ser vista sob outra ótica, abrangendo também o aspecto material, a demandar relevância da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado.
Como decorrência do postulado da intervenção mínima, exige-se proporcionalidade entre a conduta a ser punida e a drasticidade da intervenção estatal penal.[1] Surgiu exatamente nesse contexto o princípio da insignificância, inserido na esfera qualitativa do postulado da lesividade, para afastar a tipicidade material: [2]
O Direito Penal só pode ir até o limite estritamente necessário para a proteção do bem jurídico, não devendo se preocupar com bagatelas. Nessa senda, o fato penalmente insignificante deve ser excluído da tipicidade penal, devendo o ilícito ser trabalhado por outros ramos do Direito.[3]
A jurisprudência dos Tribunais Superiores [4] seguiu o mesmo norte, no sentido de que, ainda que num primeiro momento a conduta se encaixe na descrição do tipo penal, não há que se falar em crime caso ausente a relevante lesão ao objeto jurídico, incidindo o princípio da bagatela. Isto é, não basta a tipicidade formal, devendo o jurista perquirir a presença concomitante da tipicidade material.
Nesse sentido, o postulado da insignificância nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do Direito Penal,[5] ultima ratio na proteção a bens jurídicos.[6] Não é razoável a utilização desse rígido ramo do Direito, movimentando-se toda a máquina estatal, a fim de investir numa persecução penal acerca de fato sem relevância típica. Pela força de sua resposta, o Direito Criminal deve incidir sobre o menor número possível de situações, deixando para os demais ramos a solução para os ilícitos de menor gravidade:
A solução punitiva sempre importa num grau considerável de violência, ou seja, de irracionalidade, além da limitação de seu uso, impõe-se, na hipótese em que se deva lançar mão dela, a redução, ao mínimo, de sua irracionalidade.[7]
Também parece indiscutível que a tão só instauração de procedimento policial já configura um atentado ao chamado status dignitatis do investigado.[8] O inquérito policial representa um constrangimento (strepitus) ao investigado, embaraço este que só será legal se houver justa causa a motivar a instauração do procedimento. É dizer, a deflagração de inquérito policial depende da possibilidade de se reunir um conjunto de elementos mínimos capazes de estabelecer um liame entre autoria e materialidade de uma infração penal.
A instauração de inquérito policial contra pessoa determinada traz consigo inegável constrangimento. Esse constrangimento, todavia, pode ser tido como legal, caso o fato sob investigação seja formal e materialmente típico, cuida-se de crime cuja punibilidade não seja extinta, havendo indícios de envolvimento dessa pessoa na prática delituosa. Em tais casos, deve a investigação prosseguir. Todavia, verificando-se que a instauração do inquérito policial é manifestamente abusiva, o constrangimento causado pelas investigações deve ser tido como ilegal, afigurando-se possível o trancamento do inquérito policial.[9]
Bem assim, não há que se falar em instauração de inquérito policial, e muito menos em prisão em flagrante, diante de fato insignificante.[10] Não por outra razão as Cortes Superiores têm trancado[11] inquéritos policiais instaurados sem justa causa, para apurar fato formal ou materialmente atípico.
Nessa perspectiva, a moderna doutrina confirma a possibilidade de o Delegado de Polícia aplicar o princípio bagatelar próprio:
O princípio da insignificância afasta a tipicidade do fato. Logo, se o fato é atípico para a autoridade judiciária, também apresenta igual natureza para a autoridade policial.[12]
Não só os Delegados podem como DEVEM analisar os casos de acordo com o princípio da insignificância. Merecem aplauso e incentivo os Delegados que agem dessa forma, pois estão cientes do papel que lhes cabe na investigação preliminar, atuando como filtros de contenção da irracionalidade potencial do sistema penal. (...) Não interessa reafirmar qualquer lugar de autoridade: interessa é obstaculizar a irracionalidade e para isso, os Delegados devem ser a primeira barreira.[13]
O raciocínio não poderia ser diferente. Inexiste dispositivo legal limitando a análise do Delegado de Polícia à tipicidade formal. Ademais, o inquérito policial desacompanhado do fumus comissi delicti traduz um procedimento natimorto, fadado a movimentar inutilmente a máquina estatal, com todo o ônus decorrente. A instauração indiscriminada de cadernos investigativos acarreta imenso prejuízo financeiro ao Estado, sendo custo do procedimento indevido assimilado pela coletividade. É preciso romper com a equivocada ideia de que o procedimento policial, por não exigir o prévio recolhimento de custas, é grátis. Os atores jurídicos que se recusam a considerar o custo de manutenção do sistema penal são verdadeiros “perdulários investidos em funções públicas, incapazes de pensar para além do formalismo e, portanto, juristas do século passado”.[14] Nessa toada entende o Superior Tribunal de Justiça:
Restando evidente, por conseguinte, a ausência de justa causa para o prosseguimento do Inquérito Policial, pela desnecessidade de movimentar a máquina estatal, com todas as implicações conhecidas, para apurar conduta desimportante para o Direito Penal, por não representar ofensa a qualquer bem jurídico tutelado.[15]
Demais disso, não se pode esquecer o contexto brasileiro de superlotação carcerária,[16] onde existem mais de 570.000 pessoas segregadas, sendo quase a metade por prisões provisórias, cenário que seria indevidamente agravado caso fosse obrigatória a prisão dos responsáveis por condutas penalmente insignificantes.
Com efeito, se a insignificância for perceptível primo ictu oculi, o Delegado de Garantias não só pode, como deve aplicar o princípio da insignificância e se abster de lavrar auto de prisão em flagrante ou mesmo de baixar portaria de instauração de inquérito policial. [17] O Delegado de Polícia, autoridade estatal que, assim como Magistrado, age com imparcialidade e concentra em suas mãos o poder de decidir sobre o direito de ir e vir dos cidadãos, não deve atuar como chancelador de capturas feitas na maioria das vezes por policiais fardados integrantes de carreiras não jurídicas. A Autoridade Policial não é uma máquina de encarcerar, e sua livre convicção motivada não pode ser substituída por uma atuação robotizada, entendimento esse reforçado pela Lei de Investigação Criminal, que outorga ao Estado-Investigação a função de realizar análise técnico-jurídica do fato sob seu exame.[18]
Nesse ínterim, chama a atenção a tentativa de algumas autoridades de pressionar a Autoridade de Garantias a lavrar prisões em flagrante e instaurar inquéritos policiais indiscriminadamente, ainda que a insignificância seja aferível de plano. A pergunta que surge inevitavelmente: é a quem interessa tolher o poder decisório do Delegado de Polícia e o obrigar a prender o ladrão de chocolate? Certamente não à sociedade.
A Polícia Judiciária não deve ceder a qualquer tipo de pressão no exercício de seu mister, mesmo que proveniente do Poder Judiciário ou Ministério Público, e especialmente se direcionada a realizar prisões e investigações descabidas:
É necessário respeitar sempre a autonomia valorativa de cada um dos órgãos estatais que atuam no sistema de justiça criminal (polícia judiciária, ministério público e magistratura). Mesmo porque inexiste hierarquia entre esses órgãos. Todos são carreiras jurídicas com assento constitucional. E, acima de tudo, deveriam todos empreender medidas para a redução do arbítrio punitivo.[19]
Não se pode olvidar que a lavratura do auto de prisão em flagrante e o indiciamento possuem pressupostos semelhantes, a saber, a existência de indícios de autoria ou participação do suspeito em relação a uma infração penal. Logo, a requisição de lavratura do auto de custódia flagrancial relativa a fato insignificante resulta, ainda que por via indireta, em uma requisição de indiciamento, absolutamente rechaçada pelas Cortes Superiores[20] e pela doutrina.[21]
Obviamente, a decisão da Autoridade de Garantias deve ser sempre fundamentada, como se exige das autoridades num Estado Democrático de Direito. Além do mais, a não instauração do caderno investigativo não impede que a Polícia Judiciária documente os elementos colhidos em verificação preliminar das informações, espécie de procedimento policial – ao lado do inquérito policial e do termo circunstanciado de ocorrência – que possui amparo jurisprudencial[22], legal[23] e doutrinário:
Verificada a improcedência das informações (art. 5º, § 3º, do CPP) por força do princípio da insignificância, a autoridade policial não estará obrigada a lavrar o flagrante ou baixar portaria instaurando o inquérito policial. Possui nesse momento autoridade para fazer o primeiro juízo de tipicidade.[24]
Não custa sublinhar que o procedimento em nada prejudica o controle externo do membro do Ministério Público, que, cumprindo seu dever de visitar a Delegacia de Polícia, possui acesso às informações[25], podendo eventualmente sustentar posição diversa dentro de sua esfera de seu convencimento motivado. Prejuízo tampouco há para o Juiz de Direito, cuja livre convicção fundamentada, de igual modo, permanece intacta.
De mais a mais, o procedimento estará sujeito à fiscalização da Corregedoria da Polícia, não para interferir na independência funcional do Delegado de Garantias, mas a fim de constatar que fundamentou sua decisão; e também da sociedade, já que a Polícia Judiciária é inegavelmente um dos mais fiscalizados órgãos públicos.
Por tudo isso, mesmo que outra autoridade discorde do posicionamento da Autoridade de Garantias [26] revela-se totalmente descabida e teratológica a tentativa de responsabilizá-lo criminal, administrativa ou funcionalmente por sua deliberação funcional motivada.
Uma vez que não pode transigir com direitos fundamentais do cidadão, o Delegado de Polícia não pode ser coagido a levar adiante uma investigação policial temerária. Garantir a liberdade fundamentada de ação da Polícia Judiciária significa ampliar as possibilidades de preservação do princípio da dignidade da pessoa humana.
Mais do que um poder do Delegado de Polícia, a aplicação do princípio da insignificância é um dever no desempenho da sua missão de garantir direitos fundamentais, devendo ser repelidas eventuais interferências escusas em detrimento do interesse público. Entendimento diverso reduziria a Autoridade Policial a mero instrumento repressivo focado em ninharias, reforçando o viés seletivo do Direito Penal.
Nessa esteira, a Autoridade de Garantias não pode relegar a segundo plano:
sua missão institucional de primeiro garantidor da legalidade da persecução penal, a qual foi redimensionada, em boa hora, pelos princípios da Constituição Cidadã de 1988, que não se contenta com o singelo exercício de uma atividade investigativa a qualquer custo.[27]
Como afirmamos anteriormente [28], a persecução penal deve caminhar lado a lado com a franquia constitucional de liberdades públicas, razão pela qual a independência funcional do Delegado de Polícia, mais do que uma prerrogativa do cargo, traduz uma garantia do cidadão.
Referências
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Notas
[1] BITENCOURT, Roberto. Tratado de direito penal. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 2012, p. 49.
[2] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008, p. 26.
[3] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 134-135.
[4] STF, HC 119.778, Rel. Min, Carmen Lúcia, DP 21/11/2013; STJ, RHC 42.454, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ 01/04/2014.
[5] VICO MAÑAS, Carlos. O princípio da insignificância como excludente da tipicidade no direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 81.
[6] ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. T. 1. Madrid: Civitas, 1997, p. 65.
[7] PIERANGELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugênio Raul. Manual de Direito Penal Brasileiro. v.1. São Paulo: RT, 2010. p. 35.
[8] CHOUKR, Fausi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação Criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.7.
[9] LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de processo penal. Niterói: Impetus, 2013, p. 138
[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 135.
[11] STF, HC 218.234, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 13/03/2012; STJ, RHC 42.454, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ 01/04/2014.
[12] MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado. São Paulo: Método, 2013, p. 36
[13] KHALED JR, Salah H.; ROSA, Alexandre Morais da. Delegados relevantes e lesões insignificantes: a legitimidade do reconhecimento da falta de tipicidade material pela autoridade policial. Justificando, nov. 2014. Disponível em: <http://justificando.com/2014/11/25/delegados-relevantes-e-lesoes-insignificantes-legitimidade-reconhecimento-da-falta-de-tipicidade-material-pela-autoridade-policial/>. Acesso em: 06 abr. 2015.
[14] ROSA, Alexandre Morais da. Direito Penal não dá mais do que se pede e engana quem quer ser enganado. Revista Consultor Jurídico, ago. 2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-ago-15/limite-penal-direito-penal-nao-engana-quem-enganado>. Acesso em: 07 abr. 2015.
[15] STJ, HC 72.234, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 09/10/2007.
[16] Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ano 8, 2014. Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
[17] CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 126; MEROLLI, Guilherme. Fundamentos críticos de direito penal: dos princípios penais de garantia. São Paulo: Atlas, 2014, p. 319.
[18] Art. 2º, §6º da Lei 12.830/13.
[19] MACHADO, Leonardo Marcondes. Flagrantes de bagatela: considerações sobre a aplicação do princípio da insignificância pelo delegado de polícia. In: SANTOS, Cleopas Isaías; ZANOTTI, Bruno Taufner (Org.). Temas avançados de polícia judiciária. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 161.
[20] STF, HC 115.015, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 27/08/2013; STJ, HC 165.600, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 04/11/2010.
[21] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 119; LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 142; ANSELMO, Márcio Adriano. In: DEZAN, Sandro Lúcio; PEREIRA, Eliomar da Silva. Investigação criminal: conduzida por delegado de polícia. Curitiba: Juruá, 2013, p. 211.
[22] STJ, HC 199.086, Rel. Min. Jorge Mussi, DP 21/05/2014; STJ, HC 103.566, Rel. Min. Jane Silva, DP 01/12/2008; TRF2, RHC 130.2002.51.01.501285-8, Rel. Des. Sergio Feltrin Correa, DP 22/07/2003.
[23] Art. 5º, §3º, 2ª parte do CPP; Parecer 409/2013 sobre o Projeto de Lei 132/12, que após aprovação foi convertido na Lei 12.830/13.
[24] NICOLLIT, André. Manual de Processo Penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 86.
[25] Art. 9º, I e II da Lei Complementar 75/93 e art. 4º, I e V da Resolução 20/07 do Conselho Nacional do Ministério Público.
[26]Termo utilizado por: BARBOSA, Ruchester Marreiros. A denominação “Polícia Judiciária” não se justifica mais. Revista Consultor Jurídico, abr. 2012. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-abr-27/ruchester-barbosa-denominacao-policia-judiciaria-nao-justifica>. Acesso em: 06 abr. 2015.
[27] GOMES, Rodrigo Carneiro. Inquérito policial. Revista dos Tribunais, v. 852, p. 732, out. 2006.
[28] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Missão da Polícia Judiciária é buscar a verdade e garantir direitos fundamentais. Revista Consultor Jurídico, jul. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jul-14/academia-policia-missao-policia-judiciaria-buscar-verdade-garantir-direitos-fundamentais>. Acesso em: 15 jul. 2015.