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O interrogatório judicial do acusado: sob a perspectiva do direito ao silêncio e da busca da verdade.

Direito ao silêncio é sinônimo de direito à mentira?

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Agenda 28/12/2015 às 12:59

5. O interrogatório como ato prescindível e a proposta de aprimoramento legislativo – De lege ferenda

Diante do tratado nos tópicos anteriores, a única conclusão possível é a de que o interrogatório não pode ser um ato obrigatório. Até mesmo sem as alterações legislativas abaixo propostas, percebe-se forte inclinação doutrinária neste mesmo sentido, isto é, que o direito ao silêncio teria implicação direta sobre a obrigatoriedade do interrogatório.

Atualmente, o Código de Processo Penal, em seu artigo 185, estabelece que “o acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado.”

Embora divergente, conclui-se que o interrogatório é tanto meio de defesa como meio de prova, vez que o acusado pode tanto se defender diretamente das imputações que recaem sobre sua pessoa, até mesmo permanecendo em silêncio, como declarar algo ou eventualmente confessar, situações que serão consideradas pelo juiz para formar sua convicção.

Como se viu, os tratados internacionais expostos tratam o interrogatório como verdadeiro direito daquele que sofre a persecução criminal. Diante disso e para real entendimento sobre as posições doutrinárias, há de se diferenciar bastante claramente dois atos cristalinamente diversos: a realização obrigatória do interrogatório e a oportunidade de comparecimento ao interrogatório.

São tópicos que não se confundem, de modo que a resposta à indagação realizada também será diferente para cada um deles.

Tem-se, portanto, de um lado a realização – obrigatória ou não - do interrogatório, que consiste no ato propriamente dito, isto é, no próprio encontro do acusado com seu julgador.

De outro lado, tem-se a oportunidade concedida ao acusado de comparecer ao interrogatório, que consiste na intimação, prevista no artigo 399 do Código de Processo Penal, para a audiência de instrução e julgamento.

Posto isso, a doutrina constrói um cenário bastante interessante acerca da (im)prescindibilidade do interrogatório.

Fernando da Costa Tourinho Filho afirma que há de se fazer inferência da necessidade do interrogatório porque é neste ato em que há a efetiva troca de olhares entre o julgado e seu julgador, de modo que, embora defendendo sempre ser meio de defesa, o juiz também ali formará seu convencimento e verdadeiramente conhecerá o acusado. [32]

O mesmo processualista ainda realça a necessidade do interrogatório pelo conteúdo do citado artigo 185 do Código de Processo Penal. Isto porque entende que o dispositivo permite que o acusado seja ouvido a qualquer tempo, mesmo que o ato seja realizado somente depois de sentença condenatória transitada em julgado, se ainda couber o recurso de apelação. [33]

Todavia, o doutrinador assevera que, embora necessário, porquanto o artigo 564, III, e, prevê a nulidade no caso da ausência de citação do réu para o ato, o interrogatório é prescindível, de modo que há, inclusive, processo contra o revel, destacando ainda a Lei de Imprensa que torna o interrogatório dispensável.[34]

Quase no mesmo sentido, Paulo Rangel ensina:

Trata-se de ato processual necessário, porém não é imprescindível à validade da relação jurídico processual, pois, se for citado e não comparecer, o réu responde o processo à revelia. Nesse sentido, necessária e imprescindível é a sua citação para comparecer em juízo, a fim de responder à acusação, sob pena de nulidade, mas não o interrogatório, pois do contrário, não haveria processo penal contra o revel. Se for citado e não responder ao chamado judicial, não há que se falar em nulidade.[35]

Daí a importância da diferenciação anteriormente exposta entre o ato de interrogatório propriamente dito e a intimação que chama o acusado à participação do ato.

Neste sentido, entende-se que caso o acusado, devidamente intimidado, não apresente nenhuma justificativa pertinente, não comparecendo à audiência, realiza a opção de nada dizer, ou seja, de exercer o direito ao silêncio.

Assim sendo, nesta concepção, a realização do interrogatório passa a não ser mais imprescindível. Isto porque o próprio acusado, intimado a comparecer ao ato de seu interrogatório, oportunidade em que poderia, de algum modo, contribuir com a sua eventual absolvição, escolhe por não participar de tal entrevista.

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A situação é totalmente diferente quando analisado o direito à oportunidade de ser interrogado, previsto expressamente nos pactos citados como o “direito de ser ouvido”.

Através do mero ideal de justiça, já é possível concluir que não haveria como ser diferente. O direito ao interrogatório consiste, na verdade, no direito do acusado de ser convidado a participar da audiência, na qual teria a oportunidade de se comunicar com o juiz e ser ouvido.

Este último – ato de intimação do acusado para o interrogatório -, sim, deve ser compreendido como imprescindível, devendo ser escolha do próprio acusado, devidamente intimado, se quer realmente participar do interrogatório ou não, sendo esta garantia de opção a expressão máxima do direito ao silêncio.

Destaca-se, este direito certo de oportunidade ao interrogatório não pode ser entendido de modo que afronte ao devido processo legal. O direito de ser ouvido somente pode ser compreendido naquele momento processual a ele inerente.

Não há que se falar em direito de ser ouvido na fase de alegações finais, por exemplo. Se já se oportunizou ao acusado o ato do interrogatório e este, devidamente intimado, não compareceu de forma injustificada, não se está diante de nulidade alguma, mas de proteção sobre eventuais estratégias defensivas que verdadeiramente não buscam a justiça.

Em sentido oposto, caso não seja oportunizado ao acusado o interrogatório, há de aceitar que este seja ouvido a qualquer tempo.

Resumidamente, se o acusado não deseja ser ouvido, não há que se falar em nulidade alguma, desde que a efetiva intimação tenha sido realizada, interpretando-se tal ato como verdadeira invocação ao direito de nada dizer.

 Em sentido contrário é a ausência do convite à audiência em que seria ouvido, de modo que não oportunizar ao acusado seu comparecimento neste ato, deve, sim, ensejar nulidade absoluta do processo.

Diante disso, é valido o ensinamento de Eugênio Pacelli de Oliveira:

O eventual não comparecimento na data de audiência una designada pelo juízo, enquanto não justificado, pode e deve ser entendido como manifestação do direito ao silêncio, afinal ninguém pode ser coagido a comparecer perante o juiz, a não ser quando se tratar de réu preso, eis que o réu não pode manifestar livremente a sua vontade.[36]

Por meio deste entendimento, afirma-se estar revogada a primeira parte do artigo 260 do Código de Processo Penal, que prevê, no caso do interrogatório, a condução coercitiva do réu, em razão de ser necessário permitir que o acusado, juntamente com o seu advogado, seja titular da decisão sobre se é ou não conveniente e vantajoso participar do ato de interrogatório, já que o ato também é meio de defesa.[37]

Em Recurso Especial, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no seguinte sentido:

O comparecimento do réu aos atos processuais, em princípio, é um direito e não um dever, sem embargo da possibilidade de sua condução coercitiva, caso necessário, por exemplo, para audiência de reconhecimento. Nem mesmo ao interrogatório estará obrigado a comparecer, mesmo porque as respostas às perguntas formuladas ficam ao seu alvedrio.[38]

Nada obstante o entendimento doutrinário e jurisprudencial, ainda prevalece na prática a condução coercitiva do acusado, de sorte que a força policial é utilizada para trazer o réu ao processo, fazendo-o comparecer ao ato de interrogatório, mesmo que não responda nenhuma das perguntas formuladas.

Guilherme de Souza Nucci, por sua vez, deixa claro que a imprescindibilidade do ato gira em torno do efetivo oferecimento, pelo juiz ao acusado, da oportunidade de ser ouvido. [39]

É exatamente neste sentido que explica João Couceiro:

Não se pode deixar de lastimar a reforma introduzida pela Lei nº 10.792, de 01/12/2003. Com efeito, perdeu-se, ali, grande chance de tornar o interrogatório ato facultativo, a ser realizado mediante requerimento da defesa, como também de regular não só as declarações do acusado, mas sim qualquer comportamento deste que possa vir a ser fonte de prova. [40]

Igualmente, pontifica Maurício Zanoide de Moraes:

Mais importante que essa conotação inicial de que quem não colabora o faz para não se incriminar e, portanto, é criminoso e não quer colaborar, sobreleva a alteração do procedimento instrutório processual penal, para dele se excluir o interrogatório como ato obrigatório caracterizando-o definitivamente como meio de defesa a ser realizado ao final da instrução em razão do requerimento da defesa. [41]

Assim, deveras louvável o entendimento de que, na verdade, o melhor seria se o acusado sequer fosse intimado para o ato do interrogatório, ato que só seria realizado se a defesa expressamente o requeresse e, assim sendo, o acusado teria o compromisso de dizer a verdade.

Destarte, o direito ao silêncio deve ser interpretado como o direito à realização facultativa do interrogatório e não mais como a exigência de comparecimento ao ato para, então, silenciar-se.

Entretanto, a atual sistemática brasileira, a partir de uma particular leitura do princípio do nemmo tenetur se detegere, estabelece normas que conduzem a certa perplexidade, pois obrigam a realização do interrogatório (artigos 185, 400, 411 e 474, do CPP), porém, adotam o direito ao silêncio nesse mesmo ato (artigo 196, CPP), para o qual o acusado é forçadamente conduzido.

Em resumo, primeiro compele-se o acusado ao interrogatório e, depois, temperando sua exigência, assegura-lhe o silêncio.

Por outro lado, a lei afirma que o silêncio não pode ser interpretado em prejuízo da defesa (art. 186, parágrafo único, do CPP), porém não consegue impedir que o juiz extraia convicções íntimas da ausência de respostas às perguntas formuladas (é inevitável que, psicologicamente, o julgador se faça a indagação: “por que o réu não responde, se é inocente?”).

Na mesma linha, principiologicamente, o Processo Penal busca a verdade, mas o acusado, figura central, cujo comportamento é objeto de apuração, não tem qualquer compromisso com ela e, para boa parte, está autorizado a mentir.

Dentro desse contexto, a testemunha, o perito, o intérprete e outros personagens do processo agem com o dever de verdade (art. 203 do Código de Processo Penal e art. 342 do Código Penal), mas não o réu, único que não tem compromisso algum com a verdade, nada obstante seja ele – e não os outros que intervém no processo – que esteja sendo acusado da prática de infração penal.

Nota-se, assim, verdadeiro contrassenso, já que, se o acusado não está obrigado a se descobrir, se não está compelido a produzir prova contra si mesmo e se não é forçado a dar sua versão sobre os fatos, não há que se prever o interrogatório como ato compulsório.

Assim, numa visão mais consentânea com o aludido princípio, o interrogatório deveria ser ato cuja realização estivesse submetida exclusivamente ao interesse da defesa, o que, sobretudo, garantiria visão judicial neutra sobre eventual ausência do ato.

Esta é a verdadeira manifestação do nemmo tenetur se detegere, já que o acusado não ficaria compelido, em qualquer hipótese, a comparecer para se explicar perante a autoridade, seja policial, seja judicial, a não ser na hipótese da necessária identificação.

Trata-se, induvidosamente, de uma significativa amplificação do direito ao silêncio, que passaria a ser a regra. O desdobramento natural dessa ideia é que, se solicitado pela defesa, o interrogatório seria realizado na perspectiva da obrigatoriedade da verdade, isto é, o acusado seria, tanto quanto a testemunha, compromissado a dizer a verdade.

Aludido pensamento representa vantagens tanto para a sociedade, notadamente no que pertine à eficiência do processo penal (iluminada pelo princípio da busca da verdade) e também ao acusado, já que, no interrogatório estritamente opcional, a versão que o acusado queira apresentar ganha relevo, crescendo em importância e conquistando largo espaço na formação da convicção do julgador

Na atualidade brasileira, contudo, não é possível negar que a mentira se tornou o método de defesa mais utilizado pelo acusado.

A observância da prática forense revela que em muitos casos o acusado, longe de se contentar que o onus probandi incumbe ao Estado e de tão somente reagir para contrariar as provas que são apresentadas em seu desfavor, passa, ele próprio, a agir para “provar” sua ausência de culpa, falseando versões para se eximir de responsabilidade.

Obviamente, afastada a hipocrisia, é preciso reconhecer que a mentira tem acentuadamente frequentado as salas de audiência do Poder Judiciário, como se o processo criminal fosse um jogo em que tudo é permitido, notadamente a falsidade.

Ainda diante desse quadro todo, entende-se que são necessárias correções normativas no ordenamento penal e processual penal brasileiro, no sentido de duas mudanças básicas: a) interrogatório não obrigatório, mas excepcional, que venha a ocorrer apenas por conveniência da defesa; b) imposição do compromisso de dizer a verdade ao réu que peça para ser interrogado, tipificando como crime a violação de tal compromisso.

Com essas poucas alterações, se amplificaria o direito ao silêncio, se evitaria formação de convencimento íntimo desfavorável ao acusado, seria valorizada a versão do réu, restaurando sua credibilidade, e, ainda, o interrogatório concorreria para a busca da verdade e tornaria a jurisdição mais eficiente, o que denota a vantagem das proposições formuladas.

Sobre o autor
Hugo Campitelli Zuan Esteves

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Norte do Paraná. Pós-Graduado em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina: especialista em Direito Constitucional. Pós-graduado pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Docente em Kroton Educacional. Docente em Anhanguera.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ESTEVES, Hugo Campitelli Zuan. O interrogatório judicial do acusado: sob a perspectiva do direito ao silêncio e da busca da verdade.: Direito ao silêncio é sinônimo de direito à mentira?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4562, 28 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45339. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Este artigo foi recentemente publicado na Terceira Edição da Revista Jurídica do Ministério Público do Paraná (em 11 de Dezembro de 2015), ao lado de artigos de Gilmar Mendes, Luiz G. Marinoni, Lenio Streck, entre outros.

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