1 – Introdução
Em 1961, na cidade de Panama City, Flórida, Clarence Earl Gideon foi indiciado por invadir um estabelecimento comercial, com intuito de furtar bens de pequeno valor. Pobre e com baixa escolaridade, solicitou ao juiz da causa a presença de um advogado, dada sua inaptidão para exercer a defesa técnica. O pleito foi negado, ao argumento de que, sob as leis da Flórida naquela altura em vigor, a indicação de um defensor público para o acusado, em processos criminais, somente poderia ocorrer em casos sujeitos a pena capital. A despeito da autodefesa realizada, Gideon foi condenado a cinco anos de prisão. Da penitenciária estadual, submeteu pedido de habeas corpus à Suprema Corte da Flórida, requerendo a declaração de nulidade da sentença condenatória. Nova negativa do Judiciário.
Por último, Gideon remeteu uma petição redigida de próprio punho à Suprema Corte dos Estados Unidos, arguindo a violação dos seus direitos constitucionais, decorrente da inexistência de defesa técnica. Neste caso, a nulidade foi reconhecida, tendo o tribunal formado, no ano de 1963, leading case no sentido de que, sob a égide da Sexta Emenda à Constituição, toda pessoa acusada criminalmente possui o direito à indicação de um defensor pelo tribunal. Em seu voto, que marcaria em definitivo a história jurídica norte-americana, enfatizou o Juiz Hugo Black:
O direito a um defensor por parte da pessoa acusada da prática de um crime pode não ser considerado fundamental e essencial para a realização de julgamentos justos em alguns países, mas é no nosso. Desde o início, nossas constituições e leis estaduais e federais têm dado grande ênfase às garantias processuais e materiais, concebidas para assegurar julgamentos justos perante tribunais imparciais, nos quais todo acusado coloca-se em posição de igualdade perante a lei. Este nobre ideal não pode ser cumprido se o réu pobre tem de enfrentar seus acusadores sem um advogado para assistí-lo.[1]
Passados mais de cinquenta anos desde a decisão proferida em Gideon v. Wainwright e da promessa constitucional dela advinda, o serviço de assistência jurídica gratuita nos Estado Unidos tem futuro incerto[2]. Segundo pontua o professor da Universidade da Califórnia Erwin Chemerinsky,
em um sistema de justiça criminal em que quase todas as condenações resultam de acordos processuais com assunção de culpa (guilty pleas) – noventa e sete por cento no âmbito federal e noventa e quatro por cento em cortes estaduais – a presença de um defensor quase sempre faz enorme diferença nos termos do acordo firmado e, consequentemente, na extensão da sentença condenatória.[3]
Em 2015 tivemos a oportunidade de trabalhar lado a lado com Defensores Públicos Federais no Estado do Alabama, podendo extrair da experiência forense ricas informações a respeito do serviço de assistência jurídica gratuita norte-americano. Os dados são reveladores de um mecanismo incipiente e fragmentado de defesa pública, dotado de raros pontos de congruência, em comparação com o sistema brasileiro (expressamente consagrado na Constituição Federal, com indicação de uma instituição permanente de inclusão social).
Para esclarecer sobre o perfil da defesa pública nos Estados Unidos, entrevistamos Christine Freeman, Diretora Executiva da Defensoria Pública Federal no Estado do Alabama, que expôs em detalhes a engrenagem da assistência jurídica gratuita daquele país, com ênfase em seu problema orçamentário, âmbito de incidência do serviço e independência da entidade prestadora. As informações a seguir são provenientes, em sua maior parte, da Defensora Pública norte-americana.
2 – Base normativa da assistência jurídica gratuita dos Estados Unidos
No ano de 1964, o Congresso Americano promulgou o chamado Criminal Justice Act ou “CJA”, para criar um sistema nacional de nomeação e pagamento de advogados para representar réus carentes em processos criminais.
Em 1970 o “CJA” foi alterado para permitir a criação de entidades ou organizações (Offices) incumbidas de prover assistência jurídica gratuita de pessoas financeiramente inaptas para contratar advogado que patrocine sua defesa em processo criminal. O Criminal Justice Act especifica quais são os tipos de processos criminais em que é possível a prestação da assistência jurídica gratuita.
3 – Entidades prestadoras de assistência jurídica gratuita na Justiça Federal
Nos Estados Unidos a assistência jurídica gratuita no âmbito federal é prestada por entidades públicas e privadas e por profissionais liberais. Em resumo, temos o seguinte:
1) Organizações de Defensores Públicos Federais (Federal Public Defenders Organizations ou FDO’s): entidades públicas, com equipes compostas por servidores federais. O Defensor Público Federal Chefe é nomeado pela Corte de Apelação da respectiva circunscrição judiciária (ou “circuito judiciário”), para um mandato de quatro anos. A ele compete o exercício da atividade administrativa e o recrutamento de Defensores Públicos Federais. A elaboração da proposta de orçamento para as FDO’s é responsabilidade do Judiciário Federal;
2) Organizações Comunitárias de Defensores Públicos (Community Defender Organizations ou CDO’s): são entidades privadas de assistência jurídica, sem fins lucrativos, cujos membros são advogados privados que atuam em regime de dedicação exclusiva. Também desempenham suas atividades jurídicas mediante repasse de verba do Judiciário Federal e operam sob a supervisão de um Conselho de Diretores, que escolhe o Diretor Executivo da Organização, dotado de atribuições idênticas às do Defensor Público Federal Chefe e com mandato por tempo indeterminado;
3) Advogados cadastrados no “painel do CJA”: são advogados privados que atuam em caráter subsidiário, prestando assistência jurídica gratuita de forma não exclusiva. Indicados pela Corte Federal de cada Estado a partir de um cadastro prévio, atuam em circunstâncias e casos pontuais, sendo também remunerados pelo Judiciário Federal. Cada Corte Distrital dos EUA possui autonomia para estabelecer critérios específicos para recrutamento destes profissionais.
Indagada acerca da autoridade a quem compete decidir sobre o modelo da entidade prestadora de assistência jurídica em cada Estado norte-americano, Christine Freeman esclareceu:
À Corte de Apelação de cada Circuito Judiciário cabe decidir se, naquela esfera de competência do Tribunal Federal, será estruturada uma Organização de Defensores Públicos Federais (FDO) ou uma Organização Comunitária de Defensores Públicos (CDO). Em todo caso mantem-se um número mínimo de casos direcionados para os advogados cadastrados no ‘painel do CJA’. No que concerne à prestação da assistência jurídica, a atuação de ambas as entidades é idêntica. A diferença se restringe ao regime administrativo ao qual se submetem seus membros.
4 – A relevância jurídica de Gideon v. Wainwright[4]
Conforme ressaltado pela Defensora Pública, Gideon v. Wainwright constitui o marco necessário (judicial landmark) para a implementação e desenvolvimento do serviço de assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos.
Porém, é importante observar: tal afirmação é correta apenas em relação à assistência gratuita em casos criminais no âmbito estadual.
A Suprema Corte dos Estados Unidos já havia decidido que a representação jurídica gratuita de pessoas carentes deveria ser determinada pelo Judiciário, no âmbito da Justiça Federal, no precedente de Johnson v. Zerbst, de 1938[5].
5 – Atuação dos advogados cadastrados no “painel do CJA”
Na hipótese de inexistência de entidades de assistência jurídica gratuita em algum dos quatro distritos do Estado do Alabama, estes profissionais aceitam nomeação judicial em todos os casos que envolvem defesa criminal de pessoas carentes.
Nos distritos em que há uma entidade de assistência jurídica instalada (FDO ou CDO), os profissionais liberais assumem aproximadamente 30 por cento das defesas criminais de carentes.
Em âmbito nacional, Defensores Públicos Federais assumem aproximadamente 60 por cento dos casos criminais de assistência jurídica gratuita. O remanescente fica a cargo dos referidos profissionais com dedicação não exclusiva.[6]
A Defensoria Pública Federal (FDO’s e CDO’s) é responsável por coordenar a seleção e o treinamento dos Advogados cadastrados no “painel do CJA”, além de opinar sobre os casos criminais a eles direcionados, sem envolvimento no seu processo remuneratório. O Tribunal a considera responsável pela qualidade da assistência jurídica prestada pelo “painel do CJA”.
6 – Financiamento do serviço de assistência jurídica gratuita pelo Judiciário
Nos termos do Criminal Justice Act, a despesa para manutenção do serviço público é atribuída a uma agência interna do Judiciário Federal, denominada Administrative Office of the U.S. Courts e incumbida de fornecer às cortes federais suporte legislativo, jurídico, financeiro, tecnológico e administrativo.
Quando o Congresso Nacional aprova a proposta anual de orçamento, ela inclui certo montante destinado ao Judiciário Federal, que é administrado pela referida agência. E, dentro do orçamento do Judiciário, há uma alocação de verba para a assistência jurídica pública criminal. Historicamente, ela é dividida em partes iguais entre as entidades de assistência jurídica e os advogados cadastrados no “painel do CJA”.
Quem decide sobre o montante a ser destinado para cada entidade de defesa pública instalada no país é um comitê ligado ao Judiciário, que fixa o repasse com base na análise estatística de produtividade dos membros de cada “Office” da Defensoria Pública.[7]
No Estado do Alabama, cada corte distrital decide qual sistema de assistência jurídica gratuita será implantado. Existem 67 condados no Estado e quase o mesmo número de órgãos judiciais distritais. Apenas 5 destes órgãos do Judiciário utilizam algum tipo de organização de Defensoria Pública para promover a defesa de pessoas carentes, fato que indica o grau de incipiência do serviço na esfera estadual. Os demais distritos utilizam advogados contratados ou nomeados em casos e circunstâncias pontuais. A verba pública, em todo caso, vem de uma combinação de recursos de cada condado e do Alabama Administrative Office of the Courts (agência ligada ao Judiciário estadual, com função semelhante à Administrative Office of the U.S. Courts, no plano federal).
Sobre a possível subordinação das entidades de Defesa Pública em relação ao Judiciário, pontuou Christine Freeman que
A questão está hoje em foco. Por isso, foi formado um comitê em Washington para estudar o Criminal Justice Act e qual tem sido o impacto decorrente da sua aplicação em âmbito nacional. Uma das questões submetidas ao comitê diz respeito à possível necessidade de os FDO’s e CDO’s se tornarem independentes do Judiciário. Em minha opinião, o Judiciário não defende o orçamento da Defensoria Pública, porque, evidentemente, o que é destinado à defesa pública deixa de ser empregado no aparelhamento dos Tribunais. E há tensão decorrente desta divergência de interesses. Conheço casos pontuais de intromissão administrativa na Defensoria Pública baseada em questões suscitadas no trabalho forense dos Defensores. O profissional muito combativo pode desagradar o Juiz Distrital, que levará sua reclamação para Washington. Tenho a convicção de que independência plena é inalcançável, porém a intromissão do Judiciário em questões internas da Defensoria Pública causa prejuízo e é objeto de crescente preocupação.
7 – Assistência jurídica gratuita em casos cíveis
A Sexta Emenda à Constituição dos Estados Unidos traz os seguintes dizeres:
Em todos os processos criminais, o acusado deve gozar do direito a um julgamento célere e público, realizado por um júri imparcial do Estado e distrito onde o crime foi em tese cometido (...), do direito de ser informado sobre a natureza e a causa da acusação; de ser confrontado com as testemunhas da acusação; de ter um procedimento obrigatório de obtenção de testemunhas em seu favor e de ter a assistência de advogado para sua defesa. [8]
Nota-se, a partir da entrevista promovida e dos dados obtidos na doutrina norte americana, que a Suprema Corte interpreta a Sexta Emenda à Constituição dos Estados Unidos de forma literal, no sentido de que ela tem aplicação apenas para casos criminais e, portanto, não assegura o direito à defesa técnica em casos cíveis. Nesse sentido, conferir Turner v. Rogers, de 2011[9].
Todavia, a despeito do precedente formado em Turner v. Rogers, alguns Estados americanos têm determinado, no âmbito judicial ou legislativo, a nomeação de advogados para exercer a defesa de pessoas carentes em processos civis, nos quais há perspectiva de perda da liberdade. É o que destaca a professora Martha F. Davis:
Rejecting the federal floor set by Turner, some states have judicially or legislatively determined that counsel must be provided in cases of civil contempt where restriction of physical liberty is a possible outcome. In addition, many states provide a right to counsel in at least a subset of mental health commitment cases. Further, some states have used equal protection or due process analyses to extend a right to counsel in civil cases challenging involuntary commitment where legislators failed to provide such rights.[10]
Sendo assim, diante deste vácuo criado pela não atuação da Defensoria Pública, a assistência jurídica gratuita em casos cíveis é prestada por entidades sem fins lucrativos, de natureza privada ou pública. Nesta última hipótese, o exercício da atividade fica a cargo da Legal Services Corporation (LSC), entidade criada no ano de 1974 pelo Congresso Nacional, com apoio da Administração do Presidente Richard Nixon.
Christine Freeman pontua que a atuação da LSC tem rendido polêmicas: o valor do repasse para financiamento da assistência jurídica civil tem oscilado para menor, em prejuízo da sua atividade e há diversas restrições referentes aos tipos de casos cíveis que podem ser patrocinados por meio de fundos da Legal Services Corporation. São exemplos de restrições impostas à atuação cível: instauração e acompanhamento de class actions e atuação em ações civis em benefício de pessoa encarcerada, como autora ou ré, assim como qualquer procedimento administrativo voltado para questionar as condições de encarceramento.
Indagada sobre a possibilidade de a Defensoria Pública Federal processar o Estado pela prisão ilegal de uma pessoa carente ou em razão de maus-tratos sofrido por alguém dentro de um estabelecimento prisional, esclareceu a entrevistada:
Tal atuação é possível, mas não acontece. A razão principal é que não patrocinamos demandas cíveis, com raríssimas exceções. Cito, dentre as exceções, o “lethal injection case”, que pode ser considerado cível[11]. Quando indenizações são possíveis e devem ser buscadas em razão de negligência ou maus tratos praticados por agentes carcerários, nós encaminhamos os interessados para outras organizações de assistência jurídica.
8 – Análise de hipossuficiência para fins de assistência jurídica gratuita
De acordo com o sistema norte-americano, a decisão a respeito de quem pode ser beneficiário da assistência jurídica gratuita não cabe à Defensoria Pública, mas sim ao magistrado. O juiz federal que preside a audiência inicial[12] decide se uma pessoa carece de recursos financeiros para pagar um advogado a partir de uma declaração financeira básica (financial affidavit), que expõe receitas, dívidas e despesas do interessado com seus dependentes. Não há diretriz acerca de um valor específico para constatação da carência.
Ocasionalmente o Tribunal designa a Defensoria Pública para atuar no caso de pessoa com melhores condições financeiras, mas impõe ao assistido, neste caso, pagamentos nominais pelos serviços de assistência jurídica (geralmente US$ 100-300/mês). Esses valores são pagos ao Tribunal Distrital e vão para o Fundo Geral dos Estados Unidos.
Sobre a hipótese de discordância em relação à decisão do magistrado, Christine frisou que:
Já fizemos requerimento ao magistrado para reconsiderar a decisão de não nomear a Defensoria Pública, pois, nestas hipóteses, uma declaração de renda mais detalhada mostrava sérias limitações financeiras do interessado. Eu acredito que mais de 75 por cento dos réus em processos que tramitam na Justiça Federal são beneficiários de serviço de assistência jurídica gratuita.