A CONTRIBUIÇÃO DOS SOFISTAS PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DO PODER POLÍTICO NA GRÉCIA CLÁSSICA
Durante todo o século VI e parte do século V a.C. prevaleceu a filosofia da natureza (physis) que tinha como escopo encontrar o princípio de todas as coisas. A água em Tales, o ar em Anaxímenes ou o ápeíron em Anaximandro foram tentativas de se estabelecer uma compreensão racional do cosmo. A verdade é que o surgimento da filosofia da physis foi um passo gigantesco na evolução da humanidade, porém, ela se perdeu em suas próprias contradições3 e descuidou do mais importante: o ser humano.
A maior contribuição dos sofistas foi, certamente, utilizarem-se da razão para ajudar a colocar o ser humano em seu devido lugar, ou seja, no centro das atenções. “De fato, no âmbito da na filosofia da physis, não se atribuía ao homem lugar privilegiado, ou melhor, não se compreendia nem se justificava esse lugar privilegiado” (REALE, 2009, p. 11).
A sofística veio, exatamente, resgatar o ser humano das sombras da filosofia da physis e colocá-lo em total evidência.
Para os sofistas o homem e suas criações espirituais estão no centro da reflexão. Também para eles vale aquilo que Cícero diz de Sócrates: ’Ele fez descer a filosofia do céu sobre a terra e introduziu-a nas cidades e nas casas e obrigou-a a refletir sobre a vida e os costumes, sobre o bem e o mal’. Para o homem como ente individual e como membro da sociedade é que se volta a atenção da sofística. E por isso compreende-se que os temas dominantes da especulação sofística tenham se tornado a ética, a política, a retórica, a arte, a língua, a religião, a educação, tudo aquilo que nós hoje chamamos de cultura humanística. Com os sofistas, em suma, começa aquele que, com expressão correta, foi chamado de período humanista da filosofia antiga (NESTLE apud REALE, 2009, p. 26, grifos no original).
Por humanismo não se deve entender, entretanto, algo contrário ao “naturalismo” ou à filosofia da natureza, como acontece no pensamento platônico, mas um entendimento que conecta estreitamente os termos natureza e cultura (CASERTANO, 2010). Também Jaeger (2013, p. 351) esclarece que o termo humanismo não pode ser usado apenas como um exemplo histórico meramente aproximado, mas como “plena reflexão, para designarmos o ideal de formação humana que com a sofística penetra nas profundezas da evolução do espírito grego e no seu sentido mais essencial”.
Essa guinada em direção ao homem se deve em grande medida ao espírito pan-helênico dos sofistas. Ao contrário da maioria – para não dizer a totalidade – dos cidadãos gregos que estavam intimamente ligados à sua cidade, os sofistas não se sentiam aprisionados aos limites das polis e se consideravam cidadãos do mundo. “Não tinham cidadania fixa, devido à sua vida constantemente andarilha [...] Os seus contemporâneos tinham razão, quando os consideravam autênticos representantes do espírito do tempo” (JAEGER, 2013 p. 347).
Destarte, tornaram-se verdadeiros enciclopedistas, pois, conheciam a fundo o que existia de bom e de ruim dentro dos muros das cidades por onde passavam; as formas de governo, as leis, os assuntos da guerra, da religião, da educação, enfim, de todas as questões que estavam intimamente ligadas ao cotidiano das pessoas. De cidade em cidade esses andarilhos do saber exerciam sua atividade educativa ensinando seu ofício sempre vinculado à prática política.
Esse interesse cada vez maior da filosofia pelos problemas do homem se deve em parte, também, à lenta e implacável crise da aristocracia grega em geral e à ateniense em particular. Os valores e tradições que essa classe sempre prezou foram colocados em xeque por outros seguimentos da sociedade que a cada dia ganhavam mais espaço nas decisões políticas das poleis.
A nova classe emergente queria participar ativamente das deliberações que se apresentavam perante os tribunais e às assembléias, ampliando, assim, os limites democráticos da cidade. Para se ter uma ideia, Casertano (2010, p 35) citando Morgan, enfatiza que em Atenas, por exemplo:
A “democracia” dizia respeito apenas a um fechado grupo de pessoas, aquelas que desfrutavam da plena cidadania, e elas constituíam exígua minoria. Calcula-se que no tempo de seu máximo florescimento, a livre cidadania ateniense (incluída mulheres e crianças, mas que não participavam da vida política) se compusesse de mais ou menos 90.000 pessoas, ao lado das quais havia cerca de 365.000 escravos de ambos os sexos e 45.000 “protegidos”, isto é, estrangeiros e escravos libertos (aspas no original).
Percebe-se, portanto, que a democracia ateniense estava apoiada sobre a escravidão e que não era, nem de longe, um regime comandado pelas massas. Além disso, a velha aristocracia – que mantinha rigidamente o princípio da raça – era a detentora do poder político, sobrando assim, pouco espaço para os demais cidadãos.
Fica claro, por conseguinte, que os aristocratas não aceitariam de bom grado repartir o poder com a classe de cidadãos emergentes e para isso tentavam argumentar de todas as formas contra essa possibilidade. Para eles, desde os tempos homéricos, a areté4 estava acessível apenas às linhagens nobres, deste modo, somente a nobreza poderia exercer os altos cargos nas assembleias e nos tribunais.
Segundo Jaeger (2013), para a aristocracia, o ideal de areté sempre esteve ligado à questão educativa e, por essa razão, a sua transmissão estava restrita às pessoas de sangue nobre. Os demais cidadãos não estavam capacitados a absorver esses ensinamentos e, portanto, não estavam qualificados para exercer o poder nas mais altas instâncias.
Nesse sentido:
A nova sociedade civil e urbana tinha uma grande desvantagem em relação à aristocracia, porque, embora possuísse um ideal de Homem e cidadão e o julgasse, em princípio, muito superior ao da nobreza, carecia de um sistema superior de educação para atingir aquele ideal. A educação profissional, herdada do pai pelo filho que lhe seguia o ofício ou a indústria, não se podia comparar à educação total de espírito e de corpo do nobre, baseada numa concepção total do Homem. Cedo se fez sentir a necessidade de uma nova educação capaz de satisfazer os ideais do homem da polis (JAEGER, 2013, p. 336).
Ao longo do século V a.C., destarte, sugiram diversas condições históricas, sociais, econômicas, culturais, filosóficas e políticas que propiciaram o aparecimento da sofística. Os sofistas estavam preparados para responder a essas novas questões e contradições surgidas no seio da sociedade grega de então. Uma sociedade economicamente mais forte, mais esclarecida intelectualmente e que almejava ampliar seu espaço também na política. A educação sofística nasceu, portanto, de uma necessidade prática.
Os altos cargos diretivos da pólis restritos apenas a algumas pessoas de determinadas linhagens de sangue causavam inquietação em uma classe emergente que ambicionava o poder. E essa classe viu na educação a melhor maneira de se obter o poder. Bastava, para isso, que seus membros adquirissem a areté política. Segundo Jaeger (2013, p. 337), a finalidade da nova pedagogia grega era “a superação dos privilégios da antiga educação para a qual a areté só era acessível aos que tinham sangue divino”.
A areté política5 ou excelência política, antes limitada aos aristocratas, poderia agora ser adquirida pelos demais cidadãos com o auxílio dos sofistas. Os grandes mestres da sofística (Protágoras, Górgias, entre outros) surgiram exatamente para suprir essa demanda cada vez mais crescente de jovens (especialmente atenienses) que desejam ardentemente o conhecimento da virtude política para alcançarem o poder diretivo da pólis.
Mas, o que vem a ser a ‘virtude política’? Para melhor entendimento deste termo faz-se necessário, de início, tecer alguns comentários sobre outro tema bastante caro aos sofistas e que certamente irá contribuir para a compreensão do movimento sofístico. Esse tema é a retórica.
Em primeiro lugar é bom deixar claro que o conceito sofístico de virtude não deve ser entendido aqui como o conceito cristão de virtude, mas como habilidade e astúcia6. Ora, essa virtude ou astúcia é principalmente a habilidade de falar em público nas assembleias e nos tribunais (REALE, 2009).
De acordo com Kerferd (2003), o poder da retórica não foi uma descoberta dos sofistas, pois, sua importância já era conhecida desde os tempos homéricos. Porém, essa arte foi, em grande parte, desenvolvida pelos sofistas.
Nesse sentido Protágoras, na obra homônima de Platão, afirma que o que ele ensina é:
Ter bom discernimento e bem deliberar seja nos assuntos privados, mostrando como administrar com excelência os negócios domésticos, seja nos assuntos do Estado, mostrando como pode exercer máxima influência nos negócios públicos tanto através do discurso quanto através da ação (PLATÃO, 2007, p. 263).
Também Górgias destaca o poder da palavra para tratar dos assuntos relacionados às questões particulares e do Estado. Para ele, a retórica é a arte de explorar vastamente as nuances da palavra, por isso ela deve ser entendida como a arte da persuasão.
Isso pode ser claramente compreendido através deste excerto no diálogo ‘Górgias’ de Platão (2007, p. 50), em que o sofista tece considerações sobre o que vem a ser a retórica: “Refiro-me à capacidade de persuadir mediante discursos juízes nos Tribunais, políticos nas reuniões do Conselho, o povo na Assembleia ou um auditório em qualquer outra reunião política que possa realizar-se para tratar de assuntos públicos”.
Em seu ‘Tratado sobre o não-ser’ Górgias afirma, como visto anteriormente, que não existe verdade (nem absoluta, nem relativa). Se a verdade não existe a palavra passa a ter um poder quase infinito, pois, tudo pode ser afirmado ou negado através do discurso. Na douta lição de Jaeger (2013, p. 340) a palavra na Idade Clássica “não tinha o sentido puramente formal que mais tarde adquiriu, mas abrangia também o próprio conteúdo. Entendia-se sem mais que o conteúdo dos discursos era o Estado e os seus assuntos”.
Isso fica ainda mais evidente, por conseguinte, nos assuntos relativos à coisa pública, pois, para que o discurso de um cidadão (nas assembleias, nos tribunais, nos conselhos) fosse realmente persuasivo e pudesse convencer os demais seria necessário que esse indivíduo possuísse o poder da retórica.
A esse respeito Reale (2009, p. 51) ressalta o seguinte:
O significado e a importância desta arte são claros: mais do que nunca na Atenas do século V a.C., nos tribunais e nas assembleias, a retórica podia garantir, a quem a possuísse, o sucesso; ela devia até mesmo se tornar, como justamente se disse, “o verdadeiro timão nas mãos do homem de Estado” (aspas no original).
Em grande medida isso explica a proeminência alcançada pelos sofistas entre aqueles que almejavam o poder político nas cidades gregas. Pois, a retórica ensinada por esses sábios era um instrumento imprescindível para a persuasão e domínio das pessoas. Logo, aqueles que dominassem a arte da retórica certamente teriam muito mais chances de terem sucesso em suas carreiras profissionais.
Por essa razão não faltavam aqueles que desejavam fazer mau uso da palavra e transformar a arte da retórica em um elemento de opressão dos demais cidadãos. Tanto Górgias quanto Protágoras, entretanto, censuravam aqueles discípulos que se utilizavam da retórica apenas para seus interesses pessoais e desconsideravam os valores éticos e morais tão caros à sociedade grega.
Nesse sentido, esclarece Górgias na obra homônima de Platão (2007, p. 57):
É minha opinião que se alguém se torna um orador e passa a usar injustamente essa arte e o poder dela advindo, não devemos voltar ódio ao seu mestre e expulsá-lo de nossos Estados. Ele distribui sua arte para ser empregada com plena justiça, ao passo que esse indivíduo, seu discípulo, a emprega da maneira oposta. A conclusão é que quem merece ser odiado, expulso e punido com a morte é ele que a usa incorretamente e não seu mestre.
Percebe-se disso que, para os sofistas (da primeira geração), a retórica deve ser usada sempre objetivando o bem da coletividade e nunca para interesses escusos. A virtude política, portanto, deve estar intimamente ligada ao que é bom e útil para a pólis. Se o homem, como afirma Protágoras, é a medida de todas as coisas, também o é do que é útil e inútil. Assim como o agricultor sabe o que é útil para as plantas e o médico sabe o que é útil para os pacientes, o governante precisa saber o que é útil para a pólis.
Logo, se um agricultor pode ser ensinado na virtude (habilidade, astúcia) de como lidar com as plantas e o médico de como lidar com seus pacientes, também o governante pode ser ensinado em como administrar uma cidade, seja através do discurso, seja através da ação. “Que a ‘virtude’ se podia ensinar era a base da pretensão dos sofistas [...] e sua justificação se acha na estreita conexão no pensamento grego entre areté e as especiais habilidades e perícias (technai)” (GUTHRIE, 2007, p. 237, grifos no original).
É essencialmente essa, portanto, a missão do sofista: ensinar a areté política. Ao ensinar a areté política o sofista não está interessado em saber o que é a verdade em si ou o que é o bem em si, mas o que é melhor e mais útil para a pólis. A filosofia sofística, destarte, é uma verdadeira filosofia da praxe política. Afirma Jaeger (2013, p. 345): “A exigência que eles [os sofistas] vêm satisfazer não é de ordem teórica e científica, mas sim de ordem estritamente prática”.
Nesse sentido enfatiza Casertano (2010, p. 79 e 80):
Bem e útil são conceitos certamente relativos, porque não existe o bem nem o útil, mas aquilo que pode ser bem para alguns pode também ser mal para outros: assim, os discursos que os homens fazem, contrapostos uns com os outros, são também eles relativos, pois não existe um discurso mais verdadeiro que o outro. Mas um discurso mais útil, sim: se cada indivíduo, ou cada grupo de indivíduos tem a sua verdade, nem todas as verdades, são, porém, úteis do mesmo modo à vida associada. O “discurso melhor”, pois, não é o discurso lógico, mas o político, que se demonstra mais idôneo a um entendimento, a um pacto de aceitação por parte da coletividade, porque melhor que os outros consegue considerar – embora provisoriamente, ou seja, até que não apareça e se afirme um outro discurso ainda melhor – uma pluralidade de aspectos úteis à cidade: o discurso melhor é o nomos, a lei, a realização dinâmica de um consenso humano procurado e imposto com a persuasão à cidade pelo sábio, pelo sofista, que é como o médico da sociedade. Ao sofista cabe, portanto, uma alta tarefa, a de realizar um estado de civilização que ponha em ato a “sociedade” do homem, isto é, harmonizar as diferentes e irredutíveis individualidades num “corpo” social que seja o melhor possível (grifos e aspas no original).
Para harmonizar essas diferentes individualidades no melhor corpo social possível é preciso que o indivíduo esteja bem preparado. Por essa razão Protágoras dá tanta ênfase ao processo educativo, pois, segundo ele, esta é a melhor maneira dos discursos individuais serem expressos, compreendidos e assimilados pelos demais membros da sociedade. Esse sofista acredita, portanto, que a educação é a chave para todos os problemas sociais e políticos da cidade (KERFERD, 2003). “Segundo Protágoras, a educação para o Estado significa educação para a justiça” (JAEGER, 2013, p. 374).
Protágoras propõe, assim, um novo modelo pedagógico. Isto é, o antigo modelo educativo que privilegiava a formação do guerreiro, belo e corajoso deve ser substituído pelo novo modelo educativo que privilegia a formação do bom cidadão e do bom governante da pólis. “É na política e na ética que mergulham as raízes dessa forma de educação sofística” (JAEGER, 2013, p. 342).
O escopo desse sofista, por conseguinte, é mostrar que através do processo educativo e de algumas técnicas específicas – tais como a retórica – é possível ensinar alguém a ser bom e justo e que isso não é exclusividade apenas de uma elite aristocrática. Significa dizer que a areté política não depende de nascimento nobre e que todos os cidadãos que quiserem adquiri-la poderão fazê-lo. Ou seja, Protágoras concorda que nem todos os homens têm igual mérito, porém, o mérito não deve estar relacionado com a linhagem de sangue nobre.
Corroborando esta afirmação enfatiza Reale (2003, p. 24) que:
Os aristocratas em particular não perdoaram os sofistas por terem contribuído para sua perda de poder e por terem dado forte incentivo à formação de uma nova classe, que não se valia mais da nobreza de nascimento, mas dos dotes e habilidades pessoais, e que era, justamente, aquela classe que os sofistas pretendiam criar, ou pelo menos, educar sistematicamente.
Dessa forma os sofistas estabelecem um novo paradigma para a representação democrática. Agora todos os cidadãos, na medida de suas capacidades, poderão dar a sua parcela de contribuição para o aprimoramento da vida política da cidade. E o princípio fundamental da democracia se assenta exatamente na possibilidade que todos os cidadãos têm de deliberar e de agir sobre as questões da pólis (JAEGER, 2013).
O que Protágoras (em particular) e os demais sofistas da primeira geração (em geral) fazem é ampliar significativamente o leque de opções antes restrito à classe aristocrática. Assim, o que se deve levar em consideração ao escolher os governantes da pólis não é o bom berço, mas a habilidade/astúcia no trato da coisa pública. A sociedade ideal para Protágoras, portanto, deverá ser guiada sempre pelos mais sábios na arte da política, isto é, o sophos político.
Enquanto seus rivais intelectuais – especialmente Platão e Xenofonte – representavam a velha política aristocrática ateniense, os sofistas representavam o novo modelo democrático onde todos os cidadãos tinham o direito de opinarem sobre todos os assuntos relativos à pólis. Percebe-se, destarte, que com o auxílio dos sofistas os cidadãos gregos puderam ampliar significativa e democraticamente seu poder político passando a ser julgados e avaliados não por sua origem nobre, mas por seu mérito individual.