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STF privilegia Renan (Quo usque tandem?)

Agenda 09/02/2016 às 10:13

Renan Calheiros é um emblemático bandoleiro do sistema cleptocrata brasileiro, Estado dominado por agentes públicos e privados que fazem da corrupção endêmica e das pilhagens sistêmicas uma das fontes de acumulação indevida e impune de riqueza.

LEMBRETE aos internautas que queiram nos honrar com a leitura deste artigo: sou do Movimento Contra a Corrupção Eleitoral (MCCE) e recrimino todos os políticos comprovadamente desonestos, assim como sou radicalmente contra a corrupção cleptocrata de todos os agentes públicos (mancomunados com agentes privados) que já governaram ou que governam o País, roubando o dinheiro público. Todos os partidos e agentes inequivocamente envolvidos com a corrupção (PT, PMDB, PSDB, PP, PTB, DEM, Solidariedade, PSB etc.), além de ladrões, foram ou são simbióticos (toma lá dá cá) e ultraconservadores dos interesses das oligarquias bem posicionadas dentro da sociedade e do Estado. Mais: fraudam a confiança dos tolos que cegamente confiam em corruptos e, ainda, imoralmente os defende. 

É imperiosa a obrigação de rompermos com nossa letargia de rebanho (Nietzsche), que tudo teme e tudo espera, por não ser livre (Nikos Kazantsakis). É inadiável a necessidade de entendermos que os Estados, com as mesmas características do Brasil (neocolonialista, fiscalista, patrimonialista, extrativista, racista, escravocrata, patriarcalista e autoritário)[1], constituem o ponto de Arquimedes[2] da cleptocracia, ou seja, da alavancagem impune de fortunas (sem ou com escassos controles administrativos e jurídicos), por meio das pilhagens e roubalheiras promovidas pela união concertada dos interesses mesquinhos e arrogantes dos grupos, setores, frações e corporações das classes dominantes (as elites que detêm o poder econômico e financeiro e que interferem no poder político) com as mazelas, patifarias e excessos das classes reinantes (as elites governam: governantes, políticos, parlamentos, tribunais, altos funcionários etc.).

Sair do rebanho é encontrar-se consigo mesmo (emancipar-se, diria Kant) e se deparar com uma nova vida. É preciso transgredir com a tradição (que vem de tradere, que é o legado que recebemos em um determinado local, tempo e cultura em que vivemos). Rompê-la. Reinventá-la. Muitos supõem que isso seja impossível. Ignoram a história das nações (da transformação ética da Suécia em meados do século XIX, da Inglaterra na passagem do século XIX para o XX, de Singapura e Hong Kong nos anos 50/60).

Os que não querem transgredir o legado abominável são fracos, são covardes, exaurem-se no narcisismo frouxo da pós-modernidade[3], contentam-se com a reprodução das suas imagens nas telinhas tecnológicas. Isso é o suficiente para se encontrarem com o Universo. E, às vezes, até acreditam que são o centro dele. Os cínicos, com os dedos no nariz (deixando o minguinho sobressaltado para sinalizar o infinito da mediocridade), passam a vida se esquivando de sentirem os odores fétidos da cleptocracia reinante (sendo coniventes com ela).

Renan Calheiros é um emblemático bandoleiro desse “sistema” cleptocrata. Um baluarte da cleptocracia brasileira (= Estado dominado e governado por agentes públicos e privados que fazem da corrupção endêmica e das pilhagens sistêmicas uma das fontes de acumulação indevida e impune de riqueza). Nem sequer seu escândalo de 2007 (de 2007!), que o levou a renunciar à presidência do Senado para salvar seu mandato, fulminou sua carreira política.

“Nas favelas, no senado

Sujeira pra todo lado.

Ninguém respeita a constituição.

Mas todos acreditam no futuro da nação.

Que país é esse?” (Legião Urbana, composição de Renato Russo, 1987).

A empreiteira Mendes Júnior, por interpostas pessoas, pagava à jornalista Mônica Veloso, em dinheiro corrente, o valor de uma pensão mensal à filha que o senador tivera com ela num relacionamento extraconjugal.

Num país cleptocrata esse é um exemplo do nível de irresponsabilidade que vigora nessas indecorosas parcerias público-privadas: faça filhos e mande a conta para todos. Toleramos até isso, o pagamento de pensão de filho alheio com o dinheiro público.

Por esses fatos o ex-Procurador-Geral da República (Roberto Gurgel) só ofereceu denúncia contra Renan em 2013 (seis anos depois!), precisamente quando ele foi reeleito para a presidência do Senado (como se ficha limpa fosse). Que país é esse?

A denúncia está no STF há 1.103 dias (3 anos e uma semana). Imputam-se os crimes de peculato, falsidade ideológica e uso de documentos falsos. Ela dorme nos escaninhos, o sonho dos injustos e privilegiados.

Mais do que corrupção endêmica (pública e notória), um país somente se transforma em cleptocracia (como o Brasil), quando todas as instituições (políticas, econômicas, jurídicas e sociais) fracassam em suas funções (destacando-se aí as instituições jurídicas, assim como a sociedade civil, normalmente covarde e tolerante com a desfaçatez).

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Três anos e uma semana depois, em lugar de imperar a lei (que teoricamente foi programada para ser aplicada para todos igualmente), reina um ensurdecedor silêncio, que beira a conivência judicial desavergonhada com a cleptocracia. Os relatores do processo devem explicações para a nação: primeiro foi Lewandowski e, agora, Luiz Fachin.

Se recebida a denúncia, pensamos que o presidente do Senado (a regra, aliás, é a mesma para o presidente da Câmara, assim como para o vice-presidente, o primeiro também com denúncia pendente de apreciação na mesma Corte) deve ser afastado do cargo de direção, porque está na linha sucessória da Presidência da República (CF, art. 86). A regra que vale para o mandatário supremo da nação tem que ser a mesma para todos que estão na sua linha sucessória. Antigo ditado do direito romano diz: Ubi eadem ratio ibi idem jus, ou seja, onde houver a mesma razão, deve prevalecer o mesmo regramento jurídico. Todos, na mesma situação, devem ser tratados da mesma maneira.

É motivo de zombaria, em vários países onde se tem controle da corrupção (Escandinávia, por exemplo), saber que um determinado político profissional desqualificado consegue frequentar, há várias décadas, as manchetes dos jornais, assim como as prateleiras dos tribunais, sem nunca ter tido qualquer tipo de experiência com o “império da lei”.


Risco de prescrição

Os poderosos que atuam como atores da cleptocracia brasileira (que é sinônimo de pilhagens e roubalheiras sistêmicas do patrimônio público) desfrutam, em regra, de uma norma não escrita que lhes assegura a imunidade penal (tudo se faz para que não sejam sequer investigados e muito menos processados).

Quando essa “disfunção do sistema” excepcionalmente acontece, luta-se pela impunidade. Uma das táticas consiste em se valer da morosidade da Justiça. Dezenas de processos prescrevem, frequentemente, no STF (Sarney, Jader, Maluf, Collor etc.). O processo fica parado até chegar a prescrição. Essa é uma das formas de se conseguir a conivência (e tolerância) da Justiça com a corrupção endêmica no País.

Os crimes atribuídos a Renan, se punidos com pena de até quatro anos de prisão, já estão prescritos. Seus crimes datam de 2007. A denúncia vai ser recebida (se recebida) 9 anos depois. O recebimento interrompe a prescrição. Mas todo tempo passado entre o crime e o recebimento da denúncia é computado (nos crimes anteriores a 2010).  As falsidades são punidas de um a cinco anos (a chance de se aplicar pena até quatro anos é de 99,99%). Crimes prescritos, pode-se dizer. O peculato é punido com pena de 2 a 12 anos de reclusão. Somente se a pena for superior a quatro anos, evita-se a prescrição.


Neocolonialismo cleptocrata

Durante o colonialismo (1500-1822), a cleptocracia escravocrata (parcerias público-privadas entre as elites que dominavam e governavam) funcionava à luz do sol. Ninguém dissimulava nada. Contavam com imunidade absoluta. Estavam todos aqui (ou pelo menos a maioria deles) para roubar, sequestrar, escravizar, violar sexualmente as índias e as negras, torturar e exterminar. Não haviam cínicos, somente monstros expostos. Quando a razão dorme, surgem os monstros (Goya).

Foi a partir da independência do Brasil (1822) que os que governam (os que reinam) e dominam (elites dominantes) passaram a nos contar somente metade da história: de que todos estamos sendo sacrificados, que o país precisa ser unificado, que o brasileiro precisa criar uma identidade, que a inflação é igual para todos, que o desemprego só alcança os menos preparados etc. Mais: a maior carga vai para os que mais merecem (se diz). Para o conforto dos acometidos pela cegueira deliberada, os demagogos logo acrescentam: “Mas você não merece”.

Há todo um tipo de cobertura educacional, moral, intelectual e cultural para que se perpetue uma cleptocracia (= Estado governado e dominado por ladrões impunes). Que país é esse? Desde o princípio do século XIX, uma cleptocracia escravocrata, autoritária e parasitária, pouco importando se o mando temporário (visível) é dos saquaremas (Partido Conservador), dos luzias (liberais-MG), dos bem-te-vis (MA), dos guabirus (PE), dos cabanos (AL), dos farrapos (RS), dos balaios (MA), da UDN, do PTB, do PT ou do PSDB.

Nas cleptocracias, os que reinam (governam) o fazem concertadamente com os interesses dos que dominam (oligarquias econômicas e financeiras). Quando há ameaça para os interesses dos que dominam, implanta-se (na cara dura) uma ditadura militar (1889, 1930, 1937, 1945 e 1964); quando a roubalheira e as pilhagens deixam de ser “democráticas” dentro do bloco de poder formado pelas elites e ainda são censuradas pelas classes médias, elimina-se o governante (Collor). Enquanto todo mundo está pilhando e feliz com seu nível de consumo (lulopetismo de 2003-2012), mantém-se o governante. Enquanto os governantes incompetentes e corruptos atendem os interesses de pilhagens das classes dominantes (as que financiam as campanhas eleitorais dos parlamentares), mesmo que as classes médias os reprovem, dificilmente eles caem (essa é a atual situação da presidente Dilma).

Em países cleptocratas, onde poucos (oligarquias e elites reinantes) promovem as pilhagens da nação, qualquer tipo de projeto comum sério em benefício da comunidade (a começar pelo ensino de qualidade para todos, de responsabilidade federal, em período integral, pelo menos até os 17 anos) se transforma em ideia perversa para a liberdade, perigosa para a democracia e inútil para resolver os problemas sociais. É proibido pensar (Kant dizia exatamente o contrário: “Ouse pensar, ouse saber”). Por isso é que não se pode educar.

Toda América Latina contou com Universidades já desde o século XVI. No Brasil, a cleptocracia colonial portuguesa só permitiu faculdades em 1827 (São Paulo e Olinda). Até 1808 estava proibida, aqui, inclusive, a tipografia (de mídia, sobretudo nacional, não se falava). Ensino só existiu para as elites (até a metade do século XX). Daí para cá o ensino de péssima qualidade se universalizou. O resultado disso é que agora temos uma legião de gente (150 milhões de pessoas) que sabe ler, e não entende o que lê, nem sabe fazer operações matemáticas mínimas (analfabeto funcional). Por detrás de toda essa trágica realidade está a cleptocracia (= “sistema” em que o Estado é governado e dominado por quem prioriza a pilhagem em detrimento do bem comum).

Os corsários do escravagismo, das pilhagens e do parasitismo (as elites que detêm o poder político, econômico e financeiro) são vorazes e desavergonhados. É o reino do pensamento reacionário. Pensar é perverso, perigoso e inútil. O dinheiro das elites bem posicionadas dentro do Estado, precisamente as que praticam as pilhagens do patrimônio público, não só compra a força bruta (coerção), como promove a ideologia (convencimento = violência simbólica, na linguagem de Bourdieu). Incontáveis instituições auxiliam nesse papel (mídia, religiões, fábricas, escolas etc.). No Brasil sempre temos a sensação de que existe apenas uma verdade. O resto é populismo, demagogia ou quebra da ordem social. Que país é esse? É o lugar onde

Ninguém respeita a constituição.

Mas todos acreditam no futuro da nação.

 (Legião Urbana, composição de Renato Russo, 1987).


Notas

[1] SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. 3ª edição. Rio de Janeiro: Campos, 1988, na página 14 do seu livro diz: “O autoritarismo brasileiro não é um simples fenômeno passageiro; tem raízes profundas e implicações que não se desfazem por meros rearranjos institucionais. Reconhecer isto não significa supor que o Brasil padece de um estigma congênito, para o qual não existe salvação. Mas significa, isto sim, que este passado e suas consequências presentes têm que ser vistos de frente, para que tenhamos realmente chance de um futuro mais promissor”.

[2] Na história contada pelo escritor grego Plutarco, o genial Arquimedes, ao descobrir as leis das alavancas, teria dito: “Deem-me um ponto de apoio e eu levantarei o mundo”. O Estado, nos países cleptocratas como o nosso, constitui esse ponto de apoio para a prosperidade impune de muitas fortunas arrebatadas concertadamente por setores, frações, grupos ou corporações das elites dominantes e governantes.

[3] Ver PONDÉ, Luiz Felipe. A era do ressentimento. São Paulo: LeYa, 2014, p. 17 e ss.

Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. STF privilegia Renan (Quo usque tandem?). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4605, 9 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46236. Acesso em: 22 nov. 2024.

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