Você sabe o que é um escracho?
A Academia Argentina de Letras descreve "escracho" em seu Dicionário da Fala dos Argentinos como uma "denúncia popular contra pessoas acusadas de violação aos direitos humanos ou de corrupção, que se realiza mediante atos como sentar, cantar e pintar em frente à residência dos denunciados ou em lugares públicos". Na década de 1990, esta manifestação surgiu com o hábito de repreender coletivamente indivíduos apontados como algozes nos tempos da ditadura argentina.
Aqui, no Brasil, o termo assume a conotação de manifestação de desprezo público por alguém cujo comportamento não se revela “adequado, lícito ou moral”. Uma exposição da vergonha alheia.
Em regra, pelo direito de liberdade de expressão, não há nada errado com isso. O ímpeto social e a vontade popular de que indivíduos apontados como perpetradores de ações criminosas hediondas, como tortura, machismo, genocídio etc., une uma coletividade em busca da “justiça social”, aquela justiça além dos muros dos tribunais, pela qual clama uma sociedade por se sentir vítima da impunidade institucional.
Nesse rompante por justiça reside o maior dos problemas do escracho. Movimentos também populares, sob o pretexto de buscar justiça, quando excedidos os limites legais que cabe a cada um de nós cidadão, recebe outro nome: linchamento. Essa prática, com vastos estudos de origem norte-americana, tem como referência a “lei de Lynch”, segundo a qual é possível à coletividade supostamente injustiçada julgar e aplicar a sanção que lhe convém a determinado sujeito, quando as instituições públicas não o houverem punido. Charles Lynch era fazendeiro da Virgínia, estado dos E.U.A., e, na época da Revolução Americana, organizava bandos para julgar e punir os que ele apontava como bandidos.
Muito longe de justiça, a prática constitui mais um “justiçamento”: justiça às avessas, uma forma incipiente e contrária aos objetivos democráticos de uma sociedade pluralista de ideias e que, se minimamente organizada e educada, deve se pautar sempre pela aplicação do Direito como forma primeira e última de concretização da Justiça.
Todos nós sabemos os males que um linchamento pode causar na vida da vítima dessa manifestação, sendo nosso país um recordista nesse tipo de protesto popular criminoso. Mas, quando manifestações idênticas são apelidas de “escracho”, as mesmas ações violentas parecem ganhar contornos muito convincentes e oportunistas de legitimidade de expressão.
Tem-se criado a falácia de que “linchamento” é o ato coletivo mal, repugnante, enquanto o “escracho” seria ato coletivo bom, saudável, símbolo do puro direito de expressão.
Pois bem, não foi isso que se verificou recentemente, quando, sob o nome de “escracho”, manifestantes do movimento popular intitulado “Levante da Juventude” atiraram alguns sacos de purpurina na cabeça do deputado Jair Bolsonaro, enquanto este era entrevistado (ver link: http://oglobo.globo.com/brasil/manifestantes-jogam-purpurina-na-cabeca-de-bolsonaro-em-porto-alegre-18547595).
É verdade que o nome do deputado já remete à memória suas conhecidas posições políticas contrárias à diversidade sexual, conservadoras e próprias de um pensamento que não reconhece a autonomia do sujeito para decidir sua identidade de gênero. Também vem à memória o impropério dito pelo mesmo deputado à sua colega política, afirmando que esta “não mereceria ser estuprada”. Enfim, do citado deputado nos vêm muitas lembranças desagradáveis de sua manifestação pública contrária a direitos humanos fundados no respeito e na dignidade.
Todavia, não é a personalidade do político que interessa ao mote do tema. Afinal, ainda que ele fosse o pior dos homens, seu comportamento não se constituiria justificativa suficiente para se admitir que recebesse o que se chamou de escracho, a manifestação popular de desapreço. Como destaca Zaffaroni e Pierangeli (In: Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: RT, 1997. p. 119-120), “não se pode penalizar um homem por ser como escolheu ser, sem que isso violente a sua esfera de autodeterminação.”.
Alguns aqui dirão para suavizar o problema: “mas foi apenas purpurina, não mata ninguém!”.
Entretanto, não é o objeto o ponto fundamental da discussão ou a repercussão na integridade física que ele pode ou não causar. O fato de alguém não atirar pedras, em você leitor, mas simples papel picado, não dá o direito de que você seja alvo de qualquer coisa que seja! A ninguém é dado o dever de assumir o posto de “Judas” junino para saco de pancada alheia.
Mesmo que a purpurina não cause lesões aparentes, o ato de arremessar coisas, mesmo leves, em nada (além do peso do objeto) difere em arremessar pedras, porque o mal está no ato do arremesso de qualquer coisa, uma violência que atravessa, no mínimo, o direito moral do indivíduo ao respeito, à honra e à moral pública.
A manifestação popular, por mais que se funde em desejos de justiça social, quando ataca essa esfera subjetiva da honra de alguém, proporciona danos irreparáveis, tal como qualquer linchamento. E "a honra - sentenciou ARIOSTO - está acima da vida. E a vida - pregou VIEIRA - é um bem imortal: a vida, por larga que seja, tem os dias contados; a fama, por mais que conte anos e séculos, nunca lhe há de achar conto, nem fim, porque os seus são eternos (...). Em suma, a morte mata, ou apressa o fim do que necessariamente há de morrer; a infâmia afronta, afeia, escurece e faz abominável a um ser imortal, menos cruel e mais piedosa se o puder matar " (Antônio Chaves, prefácio de Responsabilidade civil por dano à honra, Aparecida Amarante, Belo Horizonte, Del Rey, 1994).
Quando se fala aqui do dever de respeito ao outro, sequer se leva em conta que o exemplo do fato aqui discutido se dá em torno de alguém investido de autoridade pública. O poderio político não é o que exige o respeito, mas a condição humana por si mesma.
Claro que se compreende todo o grau elevado de irresignação vivida em nossa sociedade brasileira atual diante de atos e palavras de agentes políticos cujo teor não representa os melhores anseios dos direitos humanos. Entretanto, é mais do que necessário que as reivindicações sociais alcancem um grau de maturidade em suas expressões, sob pena de banalizarmos expressões de protestos visivelmente infantis, como o de “jogar purpurina”. Esse grau de maturidade é condição indispensável à formação de uma sociedade capaz de dialogar democraticamente com opiniões diversas.
Tem se tornado, infelizmente, comum aceitarmos que manifestações sociais se transformem em expressões do caos e da barbárie, procedimento que mancha o direito ao protesto. Protestos não devem ser necessariamente selvagens para serem legítimos. Atualmente, “o impasse promovido pela reivindicação da ordem através da desordem, do império do direito através da violência, da legalidade por atos ilegais, parece ser o grande desafio da constituição democrática.” (SINHORETTO, 2009. p. 90).
Claro que nem todo escracho assume as feições que se viu recentemente. Escracho de ótima criatividade foi realizado na cidade de Feira de Santana, na Bahia, quando nomes de placas de logradouros públicos, os quais homenageavam personagens ditadores, foram alterados com simples colação de papel sobre seus nomes. A manifestação propunha a mudança de consciência da Administração Pública, clamando por uma moralidade que impede a homenagem de pessoas reconhecidas pela Comissão da Verdade brasileira como participantes ativas em prol de torturas no período ditatorial.
Ao contrário disso, o arremesso de qualquer que seja o objeto sobre os outros demonstra uma contraditória aula de intolerância oriunda de quem se sente ofendido pela falta de tolerância dos projetos políticos.
O nível de intolerância tem se tornado tão grave em nosso país que a discordância se mostra como uma violação de direito, de modo que nasce uma ideia nefasta de que todos estamos obrigados a compartilhar do mesmo pensamento ou da mesma recepção sobre dada situação.
É preciso que tenhamos a consciência social de que existe o direito de cada pessoa a buscar seu grupo e a se afastar daquele que não o satisfaz, pois “não somos obrigados, por exemplo, a buscar a sua sociedade [da pessoa em desagrado]; temos o direito de evitá-la (embora não para desfilar aquilo que evitamos), pois temos o direito de escolher a sociedade mais aceitável para nós.” (MILL, 2006, p. 111).
Lamentável a circunstância e mais lamentável ainda ver o regozijo dos arremessadores, portando-se como se tivessem salvado a pátria mediante a imolação do escrachado.
As opressões tão repelidas pelos grupos mais vulneráveis continuam acontecendo porque decorrem de uma estrutura social arvorada em raízes históricas e culturais de concepções de inferioridade preconcebidas. A purpurina, e novamente se diz infelizmente, não alterou essa realidade brasileira. O caso do arremesso de purpurina apenas sedimentou a existência de um direito da intolerância: um direito que, segundo seus aplicadores, justifica a demonstração de desapreço e extremismo pela opinião alheia da pior forma possível. Sobre esse direito, Voltaire já se manifestou afirmando o seguinte: “O direito da intolerância é, pois, absurdo, e bárbaro; é o direito dos tigres, e bem mais horrível, pois os tigres só atacam para comer.” (VOLTAIRE, 1993, p. 38).
E onde se aprende esse direito? É de Chateaubriand a resposta: “os tigres não se domesticam na escola dos homens, mas os homens fazem-se ferozes, às vezes, na escola dos tigres.”.
REFERÊNCIAS
CHAVES, A. Responsabilidade civil por dano à honra. Aparecida Amarante, Belo Horizonte, Del Rey, 1994.
MILL, J. S. Ensaio sobre a liberdade. 44.ed. Trad. Rita de Cássia Gondim Neiva. São Paulo: Escala, 2006.
SINHORETTO, J. Linchamentos: insegurança e revolta popular. Revista Brasileira de Segurança Pública. Ano 3, Edição 4, Fev/Mar 2009. (p. 72 – 92).
VOLTAIRE. (François Marie Arouet). Tratado sobre a tolerância. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1993.
ZAFFARONI, R; PIERANGELI, E. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: RT, 1997.