04. EFEITOS E EFICÁCIA DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Quanto aos efeitos, diferem as modalidades concreta e abstrata do controle repressivo de constitucionalidade. No caso do controle concreto-difuso, que tem lugar no âmago de processo judicial subjetivo, que interessa apenas às partes, o órgão jurisdicional não declarará a inconstitucionalidade da norma impugnada no dispositivo da decisão, mas, tão somente, reconhecerá o vício e afastará sua aplicação no caso concreto sub judice. No universo dos Tribunais, todavia, para que o órgão fracionário possa inaplicar a norma por havê-la por inconstitucional, mister se faz a existência anterior de declaração expressa de invalidade desse norma, seja pelo próprio tribunal – por intermédio de seu Pleno ou órgão especial – seja pelo STF. Em ambos os casos, o reconhecimento da inconstitucionalidade produz efeito apenas entre as partes envolvidas na lide, não alcançando terceiros estranhos à relação processual, com eficácia retroativa, isto é, ex tunc.
Passando-se ao controle abstrato-concentrado, o art. 102, § 2º, da CF/88 é claro ao atribuir máxima abrangência à decisão do STF, produzindo eficácia erga omnes e efeito vinculante em relação ao Poder Judiciário e aos órgãos da administração pública direta e indireta de todos os entes federativos. Transcreva-se a redação do dispositivo legal:
Art. 102, § 2º, CF/88 – “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”.[7]
A eficácia erga omnes, corolário do processo objetivo, no qual inexistem partes formais, alcança indistintamente a todos, tanto particulares quanto poderes públicos, que serão atingidos pelo dispositivo do julgado. Já o efeito vinculante é mais restrito, alcançando apenas os órgãos do Poder Judiciário e da administração pública direta e indireta nacional, nunca atingindo particulares senão apenas reflexamente, nas suas interações com aqueles órgãos. Trata-se de instituto semelhante ao stare decisis do direito norte-americano, característico do sistema do common law, onde os órgãos judiciais devem hirta obediência a seus precedentes. Trata, o stare decisis, de uma decisão judicial paradigmática que produzirá o binding effect, o qual consiste no efeito vinculante aos órgãos e membros do Executivo e do Judiciário. Sobre esse instituto, assim dispõe Marcelo Novelino:
“Em sentido horizontal, este sistema impõe o respeito aos precedentes produzidos internamente pelo próprio tribunal. Em sentido vertical, determina a vinculação dos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública. No direito norte-americano, as decisões proferidas pela Suprema Corte em matéria constitucional vinculam, além dos próprios membros, todos os demais órgãos do Poder Judiciário (binding effect)”. [8]
Por óbvio, apesar de servir como leading case a ser observado pelos relatores e turmas do Supremo Tribunal Federal, essas decisões não vinculam o plenário da própria Corte, que tem ampla liberdade para revisitar e rever os seus julgados, desde que provocado. Também não é vinculado o Poder Legislativo, em sua função típica de legislar, razão pela qual, em tese, o legislador poderá elaborar uma nova lei contrariando a tese jurídica considerada inconstitucional pelo Tribunal, em função da relação de equilíbrio existente entre os poderes. Diz-se em tese porque, embora correto o raciocínio acima, toda vez que o Parlamento edita uma norma colidente com entendimento sedimentado do STF, verifica-se verdadeiro atrito entre os dois poderes envolvidos, fato que, em caso de abuso, pode engendrar transgressões aos papéis constitucionais de ambos.
05. A REVERSÃO JURISPRUDENCIAL POR REAÇÃO LEGISLATIVA
Como dito acima, conquanto as decisões do Pretório Excelso, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, sejam dotadas de eficácia erga omnes e efeito vinculante, não está o Poder Legislativo proibido de editar leis ou emendas constitucionais em sentido contrário ao que a Corte já decidiu, inexistindo vedação prévia a tais atos normativos, que promoverão a superação da jurisprudência. Trata-se de uma reação legislativa à decisão da Corte Constitucional com o objetivo de reversão jurisprudencial. Analisando o tema, Pedro Lenza entende que eventual proibição ao Poder Legislativo de contrariar a jurisprudência do STF significaria inconcebível fenômeno de fossilização da Constituição. Em sua dicção:
“O Legislativo, assim, poderá, inclusive, legislar em sentido diverso da decisão dada pelo STF, ou mesmo contrário a ela, sob pena, em sendo vedada essa atividade, de significar inegável petrificação da evolução social. Isso porque o valor segurança jurídica, materializado com a ampliação dos efeitos erga omnes e vinculante, sacrificaria o valor justiça da decisão, já que impediria a constante atualização das constituições e dos textos normativos por obra do Poder Legislativo”.
Por outro lado, essa reação do Parlamento com o desiderato de suplantar a autoridade das decisões da Corte Suprema pode-se revelar abusiva quando transbordar os limites da função constitucional do Poder Legislativo para desconstituir atuação legítima do Poder Judiciário, a fim de atender interesse escusos, com evidente violação ao princípio da separação dos poderes. Verifica-se, nesses casos, que, diante da insatisfação do parlamento com certa declaração de inconstitucionalidade da Suprema Corte – sendo esta declaração legítima – em vez de se curvar ao Guardião da Constituição, procura o Parlamento via oblíqua para fazer prevalecer a sua vontade, qual seja, a edição de ato normativo que atropele a decisão judicial, fazendo sucumbir a autoridade do Judiciário. Essa situação, por óbvio, merece ser rechaçada com veemência, razão pela qual traçou-se certos limites à prerrogativa de reação legislativa, com vistas a preservar a harmonia entre os poderes.
Em decisão plenária na ADI n. 5.105/DF, de relatoria do Min. Luiz Fux, julgada em 01 de outubro de 2015, com divulgação no informativo de jurisprudência n. 801, o Supremo Tribunal Federal apreciou a matéria e fixou limites à atuação congressual. Tratando-se de revisão legislativa proposta por meio de emenda constitucional, a invalidação somente ocorrerá nas estritas hipóteses de violação ao art. 60 e §§ da CF/88. Logo, caso o Congresso Nacional edite emenda destinada a alterar a interpretação dada pelo STF para determinado tema, essa emenda somente poderá ser declarada inconstitucional se ofender cláusula pétrea ou o processo legislativo para edição de emendas. Isso porque, nessa hipótese, opera-se verdadeira mudança no paradigma de controle que subsidiou o entendimento da corte julgadora, sendo impossível a subsistência do julgado, já que a premissa em que este se fundava – norma constitucional objeto de alteração – deixou de existiu no ordenamento pátrio.
Diferente é a situação da reversão jurisprudencial proposta por lei ordinária, a qual colidirá frontalmente com a jurisprudência do STF, nascendo, portanto, com presunção relativa de inconstitucionalidade. Nesse caso, caberá ao legislador o ônus de demonstrar, argumentativamente, que a correção do precedente se afigura legítima; para ser considerada válida, o Congresso Nacional deverá comprovar que as premissas fáticas e jurídicas sobre as quais se fundou a decisão do STF no passado não mais subsistem. Estará o Poder Legislativo, portanto, promovendo verdadeira hipótese de mutação constitucional pela via legislativa, a qual não exclui a inafastável prerrogativa do STF de reapreciar a matéria em contenda sob a ótica do novel diploma legal, considerados, ainda, os argumentos congressuais que justifiquem a mudança do entendimento pretérito da Corte pela via da legislação ordinária. Trata-se de um diálogo permanentemente aberto, em que as mudanças no contexto social justificam as mutações constitucionais, ora por iniciativa do Judiciário, ora pelo Legislativo, mantendo ambos os poderes o mútuo controle que confere equilíbrio e harmonia a todo o sistema, fomentando também uma dinâmica jurídica que busca acompanhar a dinâmica social. Sobre o tema, lapidar a lição de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto:
“(...) não é salutar atribuir a um único órgão qualquer a prerrogativa de dar a última palavra sobre o sentido da Constituição. (...). É preferível adotar-se um modelo que não atribua a nenhuma instituição – nem do Judiciário, nem do Legislativo – o “direito de errar por último”, abrindo-se a permanente possibilidade de correções recíprocas no campo da hermenêutica constitucional, com base na ideia de diálogo, em lugar da visão tradicional, que concede a última palavra nessa área ao STF. (...)
As decisões do STF em matéria constitucional são insuscetíveis de invalidação pelas instâncias políticas. Isso, porém, não impede que seja editada uma nova lei, com conteúdo similar àquela que foi declarada inconstitucional. Essa posição pode ser derivada do próprio texto constitucional, que não estendeu ao Poder Legislativo os efeitos vinculantes das decisões proferidas pelo STF no controle de constitucionalidade (art. 102, § 2º, e art. 103-A, da Constituição). Se o fato ocorrer, é muito provável que a nova lei seja também declarada inconstitucional. Mas o resultado pode ser diferente. O STF pode e deve refletir sobre os argumentos adicionais fornecidos pelo Parlamento ou debatidos pela opinião pública para dar suporte ao novo ato normativo, e não ignorá-los, tomando a nova medida legislativa como afronta à sua autoridade. Nesse ínterim, além da possibilidade de alteração de posicionamento de alguns ministros, pode haver também a mudança na composição da Corte, com reflexões no resultado do julgamento.”[9]
06. ANÁLISE DO CASO CONCRETO – ADIs 4430, 4795 e 5051.
Para melhor ilustrar o tema, interessante detalhar as minúcias do caso concreto que deu azo à consolidação do entendimento sob debate. Em junho de 2012, o Plenário do STF, ao julgar as ADIs 4430 e 4795, declarou inconstitucionais determinados dispositivos da Lei nº 9.504/97, a Lei das Eleições. Inconformado com tal declaração, o Congresso Nacional, em outubro de 2013, editou a Lei nº 12.875/2013, que alterou novamente a Lei nº 9.504/97 para reestabelecer algumas regras bem semelhantes àquelas que já haviam sido declaradas inconstitucionais pelo STF no julgamento das ADIs 4430 e 4795. Destarte, a Lei nº 12.875/2013 foi uma reação legislativa à decisão do STF, uma forma de o Parlamento superar a interpretação legislativa dada pela Corte Suprema ao tema. Contudo, não tardou a ser proposta ADI contra a novel Lei nº 12.875/2013, tombada sob o n. 5.105, abrindo espaço, então, para a regulação da temática pelo STF. O eminente relator, Min. Luiz Fux, antes de adentrar ao mérito da demanda, procedeu à revisão dos precedentes e julgados da corte derredor da matéria, sintetizando:
“Da análise dos retromencionados arestos, e da postura institucional adotada pelo Supremo Tribunal Federal em cada um deles, pode-se concluir, sem incorrer em equívocos, que (i) o Tribunal não subtrai ex ante a faculdade de correção legislativa pelo constituinte reformador ou legislador ordinário, (ii) no caso de reversão jurisprudencial via emenda constitucional, a invalidação somente ocorrerá, nas hipóteses estritas, de ultraje aos limites preconizados pelo art. 60, e seus §§, da Constituição, e (iii) no caso de reversão jurisprudencial por lei ordinária, excetuadas as situações de ofensa chapada ao texto magno, a Corte tem adotado um comportamento de autorrestrição e de maior deferência às opções políticas do legislador. Destarte, inexiste, descritivamente, qualquer supremacia judicial nesta acepção mais forte.”[10]
Trazendo o raciocínio para o caso dos autos, o relator verificou não ser legítima a hipótese de revisão legislativa, uma vez que os argumentos justificadores da nova Lei, constantes de seu respectivo projeto, não passavam de temos genéricos, distantes de ser capazes de elidir as premissas fixadas pelo STF na seara do controle concentrado de constitucionalidade, motivo pelo qual restou evidente o desrespeito legislativo à decisão da Corte. Faltou, ao Parlamento, demonstrar o desacerto do entendimento judicial, pautado em mudanças fáticas ou axiológicas, ou mesmo em error in judicando. Nos termos do julgado:
“Consoante afirmado, não se afigura legítima a edição de leis ordinárias que colidam frontalmente com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal Federal (leis in your face), sem que o legislador se desincumba do ônus de trazer aos autos novos argumentos, bem como de demonstrar o desacerto do posicionamento da Corte em razão de mudanças fáticas ou axiológicas, tomando como parâmetro, por óbvio, a mesma norma constitucional.
(...)
In casu, a situação de inconstitucionalidade se agrava porquanto a decisão se ancorou em sólida construção argumentativa calcada em cláusulas pétreas (e.g., pluralismo político, liberdade de criação de partidos políticos, tutela das minorias partidárias etc.). Ora, se o exame de validade da lei superadora se submete, prima facie, a escrutínio severo e estrito de constitucionalidade, de forma a exigir do legislador a demonstração de inadequação do precedente à luz das circunstâncias fáticas e jurídicas, este ônus é imposto, a fortiori, nas hipóteses em que o Supremo Tribunal Federal assenta a inconstitucionalidade com espeque em cláusulas pétreas”.[11]
Diante da robustez das conclusões apresentadas, não restou senão o deferimento integral dos pedidos da ADI 5.105/DF para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 1º e 2º da Lei nº 12.875/2013, representando essa procedência, além de importantíssimo leading case para a matéria, verdadeira resposta do Judiciário aos abusos cometidos pelo Poder Legislativo no sagrado ofício da edição de atos normativos, com fomento à harmonia entre os poderes e a garantia, à sociedade civil, da higidez na observância dos preceitos constitucionais, que, em ultima ratio, não deixam de representar direitos subjetivos da coletividade. Para arrematar, vale transcrever a conclusão do julgado na ADI 5.105/DF:
“Por esses motivos, entendo que a reação jurisprudencial, materializada na Lei nº 12.875/2013, ao subtrair dos partidos novos, criados no curso da legislatura, o direito de antena e os recursos do fundo partidário, remanesce eivada do vício de inconstitucionalidade, na medida em que, além de o legislador não ter logrado trazer novos e consistentes argumentos para infirmar o pronunciamento da Corte, referido diploma inviabiliza, no curto prazo, o funcionamento e o desenvolvimento de minorias político-partidárias, em flagrante ofensa aos postulados fundamentais do pluralismo político, e da liberdade partidária, insculpidos no art. 17, caput, e § 3º, da Constituição de 1988. Ex positis, voto pela procedência total dos pedidos deduzidos, a fim de declarar a inconstitucionalidade dos artigos 1º e 2º, da Lei nº 12.875/2013”.[12]