RESUMO: Embora não se discuta o papel do STF na guarda da Constituição Federal, o ordenamento pátrio não admite um sistema fechado de interpretação constitucional, no qual caberia a um único órgão a palavra final sobre determinada controvérsia. Do contrário, nosso sistema de tutela à Magna Carta é baseado no mútuo diálogo e na reavaliação constante, sendo possível que o Legislativo, mediante a sua função típica de legislar, revise a jurisprudência do STF, obedecidos apenas os limites decorrentes do princípio da separação dos poderes.
PALAVRAS-CHAVE: Hierarquia das normas. Controle de constitucionalidade. STF. Efeito vinculante. Poder legislativo. Revisão legislativa. Reversão jurisprudencial.
01. INTRODUÇÃO
As normas que governam nossa sociedade não ostentam a mesma normatividade quando comparadas entre si, uma vez que é esperado o surgimento de conflitos naturais entre os seus preceitos, razão pela qual o próprio Direito, capaz de auto regulação, estabelece critérios para fazer prevalecer certa norma em detrimento de outra. Assim, sendo possível que uma regra jurídica deixe de existir por colidir com outra considerada superior, afigura-se possível escalonar todo o ordenamento em graus hierárquicos, nos quais as normas de menor grau buscarão seu fundamento de validade naquelas de maior grau, que lhes determinarão limites de conteúdo e seu processo de elaboração.
Quando o conflito envolver regra prescrita na Constituição Federal, incidirá o mecanismo do controle de constitucionalidade, que privilegia a unidade e a supremacia da Carta Constitucional. Qualquer juiz ou Tribunal, nos litígios sub judice, poderá reconhecer a inconstitucionalidade de uma norma, nos limites do caso concreto. Já em âmbito nacional, com eficácia contra todos e efeito vinculante, somente o Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, é competente para efetivar o controle abstrato-concentrado. Suas decisões, no entanto, não vinculam o próprio plenário da Corte, que promove constante reavaliação de seus julgados, desde que provocado, com vistas a evitar o engessamento da Constituição. Por outro lado, também o Poder Legislativo não é definitivamente vinculado pelos julgamentos, podendo, através da sua função típica de legislar, reagir às decisões da Corte com a edição de atos normativos em sentido contrário à coisa julgada constitucional. Essa prerrogativa, in primis, é legítima e faz parte do saudável diálogo que mantém a harmonia entre os Poderes, inexistindo, em nosso ordenamento jurídico, um único órgão capaz de dar a palavra final em termos de interpretação constitucional. Do contrário, tem-se um sistema aberto de constante releitura das regras da Constituição, adaptando-a à mudança das condições fáticas e sociais decorrentes do transcurso do tempo. Registre-se, enfim, que o Legislativo não é completamente livre, havendo limites que resguardam a própria autoridade e papel institucional do STF.
02. A HIERARQUIA DAS NORMAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO
Antes de falar em controle de normas, é preciso fixar como premissa os critérios de hierarquia entre os diferentes comandos legais em nosso sistema jurídico, afinal não há controle sem a delimitação do parâmetro controlador e do objeto controlado. De fato, o Direito tem essa peculiaridade de regular a si próprio, podendo uma norma determinar não apenas o processo pelo qual outra norma é produzida, mas também o conteúdo da norma a produzir. Nessa linha, conforme o esquema de supra-infra-ordenação, traçado por Hans Kelsen, a norma superior regula a forma de produção da norma inferior, atribuindo-lhe validade, desde que obedecida a forma prescrita por aquela, que consubstancia seu fundamento imediato de validade. Certa norma será superior a outra, portanto, quando determinar-lhe seu processo de criação. Ainda assim, indagar-se-ia os casos de normas cuja criação é autorizada por parâmetros distintos, ou ainda de normas diferentes que obedecem ao mesmo regramento de formação. Nesse casos, a superioridade estará caracterizada quando, havendo conflito entre duas normas, considera-se válida a primeira e não a segunda. Nas palavras de Marcelo Novelino:
“Na classificação proposta haverá hierarquia toda vez que a forma de elaboração ou o conteúdo de uma norma forem determinados por outra. Para ser considerada válida, a norma deverá ser elaborada em conformidade com o seu fundamento de validade. A subordinação jurídica implica a prevalência da norma superior sobre a inferior sempre que houver um conflito entre elas”.[1]
A hierarquia entre as normas pode ser estudada sob os diferentes níveis federativos. No âmbito federal, a Constituição Federal ocupa o ápice do sistema, sendo pacífico que não existe qualquer hierarquia jurídica entre normas constitucionais, sejam essas originárias ou derivadas. Equiparados às emendas constitucionais, tem-se os tratados e convenções internacionais de direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos de votação por três quintos dos respectivos membros, a teor do § 3º do art. 5º da CF/88. Em nível abaixo, localizam-se os atos que encontram supedâneo direto na Constituição, chamados de atos normativos primários, quais sejam, leis ordinárias, leis complementares, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções da Câmara, do Senado e do Congresso Nacional. Nesse mesmo nível também estão os tratados e convenções internacionais que não versem sobre direitos humanos (status de lei ordinária)[2]. No nível inferior, localizam-se os decretos regulamentares emitidos pelo Poder Executivo para facilitar o cumprimento e execução das leis, sendo conhecidos como atos normativos secundários, por obter seu fundamento de validade direto das próprias leis que buscam regulamentar, às quais estão materialmente subordinados, sendo ainda indiretamente fundamentados pela Constituição Federal.
Já no âmbito estadual, tem-se que as Constituições Estaduais estão localizadas abaixo da Constituição da República, por se submeterem aos princípios e normas de observância obrigatória nela consignados, mas acima das leis estaduais e municipais do respectivo Estado. Já no comparativo entre a Constituição Estadual e a lei orgânica municipal, há quem defenda, em homenagem à autonomia dos entes federativos, igual posição hierárquica. A doutrina majoritária, contudo, orienta-se no sentido de que a lei orgânica deve obediência aos princípios da Constituição do respectivo Estado, havendo, portanto, subordinação material que justifica a hierarquia entre os dois diplomas normativos. Por fim, no âmbito municipal, verifica-se, abaixo da Constituição da República e abaixo da Constituição Estadual, a lei orgânica do Município, que prevalece hierarquicamente sobre as leis municipais ordinárias e complementares, por lhes determinar o conteúdo e forma de elaboração. Frise-se que, havendo conflito entre a lei orgânica e outra lei municipal, não se falará em controle de constitucionalidade, mas sim mero controle de legalidade.
Por ser a própria Constituição Federal o fundamento imediato da validade das leis federais, estaduais, distritais e municipais, não se verifica hierarquia entre as normas dos três níveis federativos. A Carta Maior estabeleceu um sistema de repartição horizontal de competências, sendo que qualquer usurpação de competência legislativa de um entre por outro ensejará transgressão constitucional, não importando que o ente usurpador seja maior que o ente usurpado. Como bem explica Rafael Arrieiro Continentino:
“Todos os Entes Políticos brasileiros são servos do texto constitucional, devendo, assim, atuar em conformidade à rígida distribuição de competências. Um não pode se aventurar em searas normativa e administrativa reservadas constitucionalmente ao outro Ente. Um não pode usurpar do outro sua competência constitucional. Daí, a conclusão é simples e de clareza solar: não é pelo fato de uma lei emanar do Órgão legislativo da União Federal (Congresso Nacional) que gozará de supremacia sobre uma lei confeccionada pelo Órgão legislativo municipal (Câmara de Vereadores). Se o legislador federal invadir o campo de competência legislativa reservado constitucionalmente à atuação do legislador municipal, a lei federal será inconstitucional (inconstitucionalidade formal orgânica), ou seja, inválida em nosso ordenamento jurídico”.[3]
Verificado conflito normativo, é de se notar que apenas a determinados órgãos compete anular normas editadas sem obediência ao prescrito por outras de nível superior, ou com o conteúdo em desacato ao delas. Em se tratando de conflito com a Constituição, qualquer juiz ou tribunal poderá reconhecer a inconstitucionalidade por intermédio do controle difuso, caso em que o tal reconhecimento será válido, apenas, para o caso concreto objeto da decisão. Já a competência para declarar a inconstitucionalidade em abstrato da norma, excluindo-a do ordenamento, é restrita ao Supremo Tribunal Federal e aos Tribunais de Justiça, no exercício do controle concentrado de constitucionalidade, federal e estadual, respectivamente.
03. CONCEITO E FORMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
O conceito de controle de constitucionalidade está ligado à supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico e, também, à rigidez constitucional e à proteção dos direitos fundamentais. Em primeiro, é pressuposto necessário à supremacia constitucional o escalonamento das normas jurídicas do ordenamento, afinal, ocupando a Constituição o ápice do sistema, é nela que o legislador ordinário buscará a forma de elaboração legislativa e os limites de conteúdo das normas. Além disso, a rigidez constitucional, ao estabelecer procedimento mais solene e dificultoso para as alterações constitucionais, confere superioridade à norma magna em relação àquelas produzidas pelo Poder Legislativo no exercício da função legiferante ordinária. A interseção entre o controle de constitucionalidade e a rigidez constitucional é tal que no Estado onde inexistir esse controle, a Constituição será flexível, mesmo que se autodenomine rígida, porquanto o poder constituinte derivado estará livre nas mãos do legislador ordinário. Ressaltando as características de rigidez e supremacia da Constituição, o preclaro Alexandre de Moraes relaciona-as à supremacia dos próprios direitos e garantias fundamentais, ensinando:
“O controle de constitucionalidade configura-se, portanto, como garantia de supremacia dos direitos e garantias fundamentais previstos na constituição que, além de configurarem limites ao poder do Estado, são também uma parte da legitimação do próprio Estado, determinando seus deveres e tornando possível o processo democrático em um Estado de Direito”.[4]
Em sede de conceito, controlar a constitucionalidade significa aferir a compatibilidade de certo ato normativo (objeto) com a Constituição (parâmetro), verificando a regularidade de seus requisitos formais e materiais, tarefa própria de órgãos específicos, consoante já antevisto alhures. Assim, esse controle das leis e atos normativos opera-se de variadas formas, por atores diversos e em momentos distintos, cabendo breve exposição sobre as formas de controle.
Quanto ao momento, o controle poderá ser preventivo ou repressivo. Quando preventivo, ocorrerá antes da promulgação do ato normativo, com o fito de evitar lesão à Lei Maior. Será exercido pelo Poder Legislativo, no âmbito das Comissões de Constituição e Justiça; pelo Poder Executivo, através do veto jurídico oposto pelo Presidente da República a projeto de lei considerado inconstitucional; pelo Poder Judiciário, no caso de impetração de mandado de segurança por parlamentar que denuncie a inobservância do processo legislativo constitucional. Nesse último caso, vale aprofundar a análise com o magistério de Pedro Lenza:
“Explicando, a única hipótese de controle preventivo a ser realizado pelo Judiciário sobre projeto de lei em trâmite na Casa Legislativa é para garantir ao parlamentar o devido processo legislativo, vedando a sua participação em procedimento desconforme com as regras da Constituição. Trata-se, como visto, de controle exercido, no caso concreto, pela via de exceção ou defesa, ou seja, de modo incidental.
Portanto, o direito público subjetivo de participar de um processo legislativo hígido (devido processo legislativo) pertence somente aos membros do Poder Legislativo. A jurisprudência do STF consolidou-se no sentido de negar a legitimidade ativa ad causam a terceiros, que não ostentem a condição de parlamentar, ainda que invocando a sua potencial condição de destinatários da futura lei ou emenda à Constituição, sob pena de indevida transformação em controle preventivo de constitucionalidade em abstrato, inexistente em nosso sistema constitucional”.[5]
Já o controle repressivo opera-se depois de concluído definitivamente o processo legislativo, quando já constatada a efetiva lesão aos ditames constitucionais. Será efetivado pelo Poder Legislativo, no exercício da competência do Congresso Nacional de sustar os atos do Poder Executivo que exorbitem os limites da delegação legislativa ou do poder regulamentar, podendo o Parlamento, ainda, rejeitar medida provisória inconstitucional; pelo Poder Executivo, a quem compete negar cumprimento à lei que considere inconstitucional, justificando o motivo da recusa por escrito e promovendo a publicidade do ato; pelo Poder Judiciário, protagonista do controle repressivo, no qual qualquer juiz ou tribunal, no exercício do controle difuso, pode afirmar a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo, enquanto que o controle concentrado, de âmbito nacional, fica reservado ao Supremo Tribunal Federal. Distingue-se, portanto, dentro do controle repressivo, os aspectos de controle concreto e de controle abstrato.
Quando, em sede de processo constitucional subjetivo, analisa-se a constitucionalidade para atender interesse particulares envolvendo direitos subjetivos, denomina-se esta espécie de controle concreto, incidental, por via de defesa ou por via de exceção. Nesse caso, antes de decidir a questão de fato objeto de litígio, precípuo aferir, incidenter tantum, como prejudicial de mérito, a questão de direito envolvendo a compatibilidade entre a lei e o parâmetro constitucional. Logo, a questão constitucional consubstanciará antecedente lógico, temporal e incidental para a formação do juízo de convicção derredor da matéria principal; daí a expressão controle incidental. Por outro lado, o controle abstrato (principal, por via de ação ou por via direta) será exercido em tese, dispensando a existência de um caso concreto a ser levado ao Poder Judiciário, atendo-se ao conflito direto existente entre a norma impugnada e o parâmetro constitucional, consoante critérios não apenas jurídicos, mas também considerados os elementos fáticos da questão. Resguardadas essas diferenças, fato é que ambas as modalidades de controle repressivo apresentam, entre si, muito mais semelhanças, como bem é apontado por Marcelo Novelino:
“No controle dito ‘concreto’ o processo mental de verificação da constitucionalidade é semelhante ao desenvolvido no controle abstrato, com a diferença de que a aferição da constitucionalidade do ato (antecedente) precede a decisão de um caso concreto (consequente). Apesar de se influenciarem reciprocamente, as duas análises, a rigor, são feitas em separado. A primeira envolve uma ‘questão de direito’ consistente na verificação, a partir do problema suscitado, da compatibilidade entre a lei (objeto) e a Constituição (parâmetro). A segunda está relacionada a uma ‘questão de fato’ na qual é analisada especificamente a situação concreta do autor, ou seja, todo e qualquer fato relevante para a aplicação da norma. A análise da questão de direito (constitucionalidade da lei) será um pressuposto para decidir a questão de fato (procedência do pedido)”.[6]
Esclarecido o conceito de controle de constitucionalidade e as formas pelas quais poderá ser exercido, de forma panorâmica, passa-se à análise, em apartado, da eficácia desse controle e de seus efeitos perante os órgãos do Poder Judiciário e da administração pública.