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Direito subjetivo e sua histórica relação com a Administração Pública

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Agenda 22/03/2016 às 11:23

4. REFLEXÕES ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE O DIREITO SUBJETIVO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Esclarecidos em pormenores os detalhes ocorridos no nascedouro do direito administrativo atual, apenas por equívoco histórico é que se poderá afirmar que a sua gênese estaria ligada à ideia de liberdade e de submissão da Administração Pública aos ditames da vontade geral. Antes, se vincula este ramo do direito às atávicas ideias de autoridade e de poder, reproduzindo, bem por isso, a fórmula anteriormente vislumbrada à época do Antigo Regime.

Baseado numa interpretação tortuosa do princípio da separação dos poderes, assim como assentado em uma duvidosa legalidade, curiosamente moldada aos dissabores da jurisprudência de um Tribunal Administrativo vinculado ao Poder Executivo, é que o Direito Administrativo nasce.

E nasce, repita-se, cheio de prerrogativas especiais. Prerrogativas estas que, como bem relembrou Otero (2008, p. 271), com base na própria análise da jurisprudência do Conselho de Estado francês à época, chegaram a ser eleitas como a “causa e a medida da independência do Direito Administrativo, ou seja, este ramo do direito começou por ser um Direito de prerrogativas especiais da Administração”.

E foi em meio a todos esses resquícios de autoridade que a maioria dos conceitos que hoje trabalhamos surgiu, como bem relata Binenbojm (2008, p. 15):

Nesse contexto, as categorias básicas do direito administrativo, como a discricionariedade e sua insindicabilidade perante os órgãos contenciosos, a supremacia do interesse público e as prerrogativas jurídicas da Administração, são tributárias deste pecado original consistente no estigma de suspeita de parcialidade de um sistema normativo criado pela Administração Pública em proveito próprio, e que ainda se arroga o poder de dirimir em caráter definitivo, e em causa própria, seus litígios com os administrados.

A luta ao longo do tempo, assim, não será o fortalecimento das garantias advindas dos ideais revolucionários, mas da limitação própria dos poderes que foram concedidos à Administração Pública de quando elaborado o direito Administrativo na Europa Continental e que foi importado em quase sua totalidade no Brasil (BINENBOJM 2008, p. 17)[10]. Procura-se afastar, e não consolidar, gradativamente, a vinculação da conduta do Poder Público ao ordenamento jurídico[11].

Ao nosso sentir, o atual cenário do direito administrativo não nos parece tão distante dos debates inicialmente travados na original concepção do direito administrativo elaborado pelo Conselho de Estado francês. Até hoje os manuais de direito administrativo são fartos em elencar as “prerrogativas especiais da Administração Pública”, as “cláusulas exorbitantes” estipuladas em seu favor nos contratos administrativos, com o que se garantem espaços de livre atividade e decisão em prol da Administração Pública e em desfavor de determinados particulares.

Acontece que todas estas expressões se originaram em sua maioria no século XIX, e, por mais que recebam diversas ressalvas pelos juristas que o tratam[12], inelutavelmente ainda guardam o autoritarismo que lhe é inerente, dificultando a correta compreensão de diversas situações jurídicas ocorridas no trato com a Administração Pública.

É preciso notar, também como resultado deste processo histórico de consolidação do direito administrativo, a própria impregnação da linguagem utilizada na matéria, que difere substancialmente de todas as outras áreas do estudo do direito. Direito Administrativo é contrabalancear prerrogativas da Administração e garantias do administrado. Não se utiliza em seu linguajar, normalmente, duas expressões simples e que muitas vezes refletem com fidelidade fenômenos ocorridos ao redor da Administração Pública, quais sejam: direito e dever. À Administração, repita-se, não são concedidos direitos, e sim prerrogativas, faculdades, poderes. E o particular é mero detentor de garantias, e não propriamente de direitos prontos para o seu exercício.

Remanesce claro, portanto, que em um contexto como esse, ao contrário da facilidade inicialmente apontada por aqueles que veem no início do direito administrativo a história da concessão de poder e/ou faculdade ao cidadão, o direito subjetivo não só é matéria cara, como certas vezes estranha a este ramo da ciência jurídica. Esta última expressão tem de conviver ao lado de pomposas outras como: “cláusulas exorbitantes”, “prerrogativas especiais do poder público”, “discricionariedade administrativa”, que, em uma percepção aligeirada e errônea do fenômeno – como adiante se evidenciará -, poderiam ser utilizadas a qualquer tempo em detrimento de um direito do particular, e com base no raso fundamento de que o interesse público deve prevalecer a priori em face do particular[13].

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O resultado disso tudo, certamente, é um enfraquecimento e sempre uma relutância no reconhecimento de qualquer situação ativa em favor do particular em que, correlatamente, esteja o Poder Público no lado passivo da relação. É difícil imaginar que este, detentor de tantas faculdades e poderes, possa sofrer os efeitos da limitação que o direito subjetivo, como acima rememorado, produz.

Mas tudo isso não nos ilude. Sobretudo após a promulgação da Constituição de 1988[14], não hesitamos em afirmar que existem, sim, situações ativas em favor do cidadão e que a Administração Pública deve respeitar o seu exercício, sob pena de ser exigido este perante um órgão judicial. E, ao revés do que se pode pensar, estas situações são muitas e merecem o devido obséquio e estudo.


5 CONCLUSÕES

Diante de todo o exposto, passa-se a apresentar o pensamento proposto neste breve estudo sobre a histórica relação entre direito subjetivo e a Administração Pública:

  1. Em um primeiro momento, concebemos, com base em uma análise histórica, os traços essenciais do direito subjetivo. Realçamos o seu surgimento como efeito decorrente da incidência de uma norma a um determinado suporte fático, ou seja, o analisamos no plano da eficácia jurídica;
  2. Complementamos o raciocínio evidenciado a situação ativa que o mesmo gera em favor de um determinado particular, e que faz surgir, também e como consequência lógica, uma sujeição passiva do outro polo da relação jurídica, terminando por limitar a conduta deste último;
  3. Ainda, traçamos um paralelo entre o direito subjetivo e a história do Direito Administrativo. Restou reconhecido, por sua vez, a ilusão garantística de gênese (OTERO, 2007, p. 129) deste ramo da ciência jurídica, o que sobreleva a criação da maioria dos conceitos que trabalhamos hoje em dia sob o signo da autoridade e do poder irrestrito;
  4. Por fim, reconhecemos que a gênese do Direito Administrativo está, dia a pós dia, dificultando que se reconheçam direitos subjetivos em seu desfavor. No entanto, com o advento da Constituição Federal, e a irradiação de seus efeitos é a base necessária para que este panorama, tão tranquilamente, reverberado pela doutrina, comece a mudar.


6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. Discricionariedade administrativa, realização adequada dos fins legais e observância dos princípios constitucionais. Direito Subjetivo à prorrogação de contrato de concessão para exploração de gás e petróleo. In: Temas de Direito ConstitucionaL – Tomo Il. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2003.

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

ENTERRÍA, Eduardo García de. La lengua de los Derechos. La formación del derecho público europeo trás La revolución francesa. 2ª ed. Madrid: Civitas, 2001.

MEIRELLES, Hely Lopes. Curso de Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1994.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 21ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2006.

______. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. 18ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2011.

MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo V. Campinas: Bookseller, 2000.

________. História e prática do “habeas corpus”. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1955.

OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública: O sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2007.


Notas

[1] Ou seja, rejeitamos que o surgimento da idéia de direito subjetivo tenha ocorrido no Direito Romano. Aqui, adere-se ao posicionamento inicialmente esposado por VILLEY (apud ENTERRÍA, 2001, p. 51), segundo o qual o termo ius se referia à parte justa, e não a um direito subjetivo. Precisamente, e somente em período ulterior da história do Direito Romano é que se vai conceber o termo ius como faculdade. O que se tem por certo, todavia, é que em qualquer caso, interpretar ius como direito subjetivo “no sentido que o dará a pandectística do século XIX, como conceito técnico rigoroso, seria uma transposição completamente anti-histórica do termo. O mínimo que se pode dizer [...] é que o conceito não tem papel decisivo no Direito Romano (ao contrário do que ocorre em nossos sistemas jurídicos desde o século XIX)” (ENTERRÍA, 2001, p. 51).

[2] Em que pese, como nota Orestano, ter esta mesma escola servido de supedâneo para o absolutismo prevalecente no Antigo Regime (apud ENTERRÍA, 2001, p. 57).

[3] Em que pese o nome Pandectística, como demonstra fielmente COSTA (2011, p. 72), advir do trabalho de Puchta, discípulo maior de Savingy, mentor do projeto de sistema conceitual abstrato chamado de genealogia dos conceitos, publicado em sua Pandectas (Pandekten, em alemão).  

[4] Os quais, certamente, até hoje encontram numerosos adeptos. Exemplo de seguidor é o próprio Enterría, que assumidamente declara que esta escola cria “um novo método da ciência jurídica, na qual substancialmente estamos e que terminou por se impor em toda Europa continental”. Inclusive, difícil achar outro jurista tão entusiasta da época e desse modo de encarar o direito (ENTERRÍA, 2001, p. 92, tradução nossa).

[5] Este frase muito se assemelha à idéia de isenção de responsabilidade civil do Estado propagadas em sede norte-americana e inglesa: the king can do no wrong. (BINENBOJM, 2008, p. 16).

[6] Enterría cita o exemplo de Dumat, em seu Les lois civiles dans leur ordre naturel, em capítulo nominado de Droit Public cujas palavras iniciais são as seguintes: “Para tratar ao fundo o Direito Público em sua extensão e tal como está em uso no vosso Reino é preciso começar pelos fundamentos da autoridade e do poder que Deus pôs na pessoa sacrossanta de vossa Majestade para governá-lo, dos direitos ligados a este poder, da veneração, da obediência e da fidelidade que lhes devem seus súditos e a todas as suas ordens.” (apud ENTERRÍA, 2001, p. 99)

[7] A expressão “milagre” para evidenciar o ocorrido com a Administração Pública foi utilizada por Prosper Weil, em seu livro O Direito Administrativo, de 1977, verbis: “A própria existência de um direito administrativo é em alguma medida fruto de um milagre. O direito que rege a actividade dos particulares é imposto a estes de fora e o respeito pelos direitos e obrigações que ele comporta encontra-se colocado sob a autoridade e a sanção de um poder exterior e superior: o do Estado. Mas causa admiração que o próprio Estado se considere ligado (vinculado) pelo direito. [...] Não esqueçamos, aliás, as lições da história: a conquista do Estado pelo direito é relativamente recente e não está ainda terminada por toda a parte. [...] Fruto de um milagre, o direito administrativo só subsiste, de resto, por um prodígio a cada dia renovado. [...] Para que o milagre se realize e se prolongue, devem ser preenchidas diversas condições que dependem da forma do Estado, do prestígio do direito e dos juízes, do espírito do tempo” (apud BINENBOJM, 2008, p. 9/10).

[8] Essa situação só veio a mudar a partir da lei de 24 de maio de 1872, que extinguiu a necessidade de atuação do Chefe do Poder Executivo em toda decisão. Mantinha-se, no entanto, o seu poder de revisá-las. (MELLO, 2006, p. 41)

[9] E, para piorar, como bem lembrou Otero (2008, p. 280), esse controle era sempre exercido a posteriori, ou seja, atuava a Administração Pública na maioria das vezes sem respaldo legal, e as teorias justificativas criadas pelo Conselho do Estado legitimavam a eventual conduta até então tida como arbitrária em face da análise do direito comum.

[10] Nas palavras do novel e não menos renomado administrativista: “No Brasil, o modelo de administração implantado a reboque da colonização de exploração, somado ao patrimonialismo da Coroa portuguesa que se tornou nota característica da cultura política brasileira, encontrou no figurino francês do direito administrativo material farto para se institucionalizar e legitimar. Como se pretende demonstrar ao longo do texto, as peculiaridades da Administração Pública brasileira apenas aguçaram as em suas prerrogativas, no âmbito do direito de cunho público, o ente agora busca se livrar de suas prerrogativas que se veem adstritas a diversas vinculações, por meio da aplicação da liberdade verificada no âmbito do direito privado. É a tão chamada “fuga da Administração Pública para o Direito Privado” (OTERO, 2008, p. 284), que encontra fundamento, quase sempre, nos argumentos de eficiência.

[10] Expressão maior do condicionamento do dever ao poder que é a teoria dos “deveres-poderes”, cuja expressão maior vemos em Mello (2006, p. 95)

[10] Para aprofundar em uma crítica a respeito do conceito do princípio da supremacia do interesse público sugerimos a leitura de Binembojm (2008, p.  81 e ss.).contradições intrínsecas que o modelo jusadministrativista europeu continental trazia desde a sua gênese.” (BINENBOJM, 2008. p. 17).

[11] E o aumento paulatino das vinculações à Administração Pública tem gerado o movimento inverso daquele inicialmente verificado na gênese do Direito Administrativo. Ao invés de procurar se refugiar em suas prerrogativas, no âmbito do direito de cunho público, o ente agora busca se livrar de suas prerrogativas que se vêem adstritas a diversas vinculações, por meio da aplicação da liberdade verificada no âmbito do direito privado. É a tão chamada “fuga da Administração Pública para o Direito Privado” (OTERO, 2008, p. 284), que encontra fundamento, quase sempre, nos argumentos de eficiência.

[12] Expressão maior do condicionamento do dever ao poder que é a teoria dos “deveres-poderes”, cuja expressão maior vemos em Mello (2006, p. 95)

[13] Para aprofundar em uma crítica a respeito do conceito do princípio da supremacia do interesse público sugerimos a leitura de Binembojm (2008, p.  81 e ss.).

[14] É interessante observar que é apenas no século XXI que tímida, porém relevante doutrina brasileira vem a estabelecer como fundamento último do Direito Administrativo, não a superioridade do interesse público perante o particular, nos tradicionalíssimos contornos da proposta de Mello (2006, p. 77), mas à realização dos direitos fundamentais previstos na Carta Magna, verbis: “O direito administrativo é o conjunto de normas jurídicas de direito público que disciplinam as atividades administrativas necessárias à realização dos direitos fundamentais e a organização e o funcionamento das estruturas estatais  e não estatais encarregadas de seu desempenho.” (JUSTEN FILHO, 2011, p. 63)

Sobre o autor
Fernando Araújo

Graduado pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Graduado em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Fernando. Direito subjetivo e sua histórica relação com a Administração Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4647, 22 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47191. Acesso em: 22 dez. 2024.

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