2. Releitura contemporânea do conceito e a atividade legislativa do Executivo
Com efeito, das considerações assinaladas anteriormente, alguns pontos merecem destaque. Primeiramente quanto à interpretação e incorporação da teoria de tripartição dos poderes proposta por Montesquieu nos modelos constitucionais. Da interpretação de suas ideias principais restou o que Louis Althusser denominou mito da separação dos poderes[7], resultante de uma interpretação jurídica isolada da teoria de Montesquieu, formulando-se o modelo doutrinário no qual “existiriam três poderes com exatas esferas de competência, não se vendo como possível qualquer intromissão de um deles no que originariamente se reserva a outro” (SAMPAIO, 2007, p. 28).
Conforme asseveram Damous e Dino, “referida doutrina não deve ser concebida como verdade científica e norma a priori de um imaginado direito natural” (2005, p. 40). Tal visão se, incorporada, como cânone incontestável do constitucionalismo contemporâneo, revela-se equivocada uma vez que “que faz patente o anacronismo que é essência de seu transporte direto da época da Revolução Francesa para a do Estado contemporâneo, que se pretende garantidor, inclusive, de direitos sociais” (SAMPAIO, 2007, p. 34).
A própria teoria da separação dos poderes foi construída a partir da ideia de limitação e eficiência do poder político, não podendo ser compreendida senão dentro de um cenário possível das relações políticas. E por isso mesmo, modificadas a época e forma das relações políticas, modifica-se a forma de interpretação do que era a sua tradução jurídica. A ligação entre a realidade do jogo político e a sua forma possível ante os ditames constitucionais deve ser trazida à tona para que o discurso jurídico seja mais concreto e menos isolado da realidade atual. (SAMPAIO, 2007, p. 20).
Em segundo lugar, é necessário considerar o caráter transformador experimentado pelo princípio da separação dos poderes na conjuntura político-social contemporânea. Muito embora as teorias desenvolvidas até o século XVIII tenham a preocupação comum de que deve haver controle do poder na correlação de forças presentes dentro de uma sociedade, esta estava associada à busca pelo equilíbrio e contenção de mudanças[8], noção incompatível com a conformação que tomou o Estado a partir do declínio do Estado Liberal com o surgimento do Estado Social.
De fato, um novo olhar deve ser dirigido à teoria da separação dos poderes a partir do século XVIII, não podendo mais ser vista “como um sistema que funcione apenas para frear a tirania, mas é preciso considerar, como um elemento tão importante quanto o combate ao arbítrio, a necessidade de que este freio não gere imobilismo e possibilite o avanço da sociedade.” (ABRAMOVAY, 2010, p. 20).
A partir do contexto das revoluções do proletariado, com o redimensionamento do engendramento estatal, no início do século XX, concebe-se “mecanismos institucionais que pudessem limitar o poder, [...] ao mesmo tempo em que propiciasse a abertura para o futuro de que fala Luhmann[9], ou a própria ideia de mudança social.” (ABRAMOVAY, 2010, p. 23).
É neste quadro, portanto, que deve ser lida a separação de poderes no Estado contemporâneo. Não mais na postura reverencial do século XVIII, na qual a distribuição de poderes a diferentes estamentos da sociedade da época possibilitaria a estabilidade política do Estado, mas sim deve ser concebida “como técnica e princípio de organização dos poderes do Estado”[10] (DAMOUS; DINO, 2005, p.45), que, “definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre estes mesmo órgãos” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 136), propicie a abertura para transformações sociais. Isto porque a sociedade atual politicamente ativa é bem mais complexa do que à época de Montesquieu, reclamando pronta ação do Estado na efetivação de direitos e negação do status quo (SAMPAIO, 2007, p. 35).
Nessa leitura atualizada da separação dos poderes como técnica de organização do Estado, a relação entre os Poderes se dá de forma cooperativa, não podendo ser vista como fruto de uma dinâmica estática, com atribuições expressas, pré-definidas e impermeáveis (ABRAMOVAY, 2010, p. 36).
Em que pese a cada Poder ser dado um núcleo essencial de atuação “a independência recíproca dos poderes [...] não significa a inexistência de pontos de contato entre eles, no desempenho de suas funções” não excluindo “que os poderes, no desempenho harmônico de suas funções específicas, colaborem entre si relativamente ao exercício de uma delas [...] assim como “não impede que eles secundariamente, pratiquem certos atos que em teoria não pertenceriam à sua esfera de competência.” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 137).
Em terceiro lugar, cumpre destacar que a necessidade do Legislativo e Executivo em exercer a função legislativa conjuntamente é “pois, um imperativo de nossa época, desde que o façam em conformidade com o balizamento constitucional estabelecido.” (DAMOUS; DINO, 2005, p. 9).
Conforme demonstrado, o Parlamento gradativamente mostrou-se incapaz de atender às necessidades legislativas do Estado contemporâneo, seja pela natural morosidade do processo legislativo parlamentar, seja pelo seu funcionamento descontínuo, seja pela irremissível e constante carência de meios técnicos em seus quadros, seja pela sua tendência a dedicar-se, predominantemente, ao controle do Poder Executivo. (AMARAL JÚNIOR, 2012, p. 35).
[...] o reordenamento do Estado, a partir do século XIX, engendrou, do ponto de vista jurídico-institucional, a quebra do monopólio da função legislativa exercida pelo Parlamento e a consequente ascensão do Executivo ao comando governamental, detentor, inclusive, de poder normativo. A nova organização estatal punha em questão a própria lei, dotada de abstração e generalidade, voltada para o futuro, imprópria, por isso mesmo, a regular as relações sociojurídicas moldadas pela política econômica emergente, produtora de necessidades rotineiras e concretas, a exigir uma atividade legislativa ágil e flexível. (DAMOUS; DINO, 2005, p. 5,).
Nesse contexto, a paralisia dos Parlamentos conduziu-os a abdicar de sua preeminência na produção da lei, concretizando-se mais nitidamente na delegação do poder de legislar em favor do Executivo. (FERREIRA FILHO, 2012, p. 145).
Surgem, assim, instrumentos legislativos próprios atribuídos diretamente ao Poder Executivo em face da projeção da condução dos negócios públicos, bem como da necessidade “do intervencionismo estatal e da conexa exigência de uma produção normativa sempre mais ampla, rápida e rica de conteúdos técnicos, deriva como é claro, a amplificação dos poderes normativos do governo no ‘estado social’” (AMARAL JÚNIOR, 2012, p. 37). O instituto da medida provisória em comento se trata, justamente, de uma modalidade desta legislação governamental.
Legislação esta que, nas feições contemporâneas, assume papel de instrumento de política de Estado. Conforme assevera Sampaio, além de afirmar que o Estado Social é causador de intervenção pública no campo econômico, deve-se aclarar a ideia de que a lei não decorre mais da clássica teoria do primado do Legislativo, decorrente do paradigma do direito natural. A lei, pois é, atualmente, instrumento indispensável à atuação estatal, perdendo o sentido de garantia do status quo. Se, por um lado, permanece o cânone garantidor da legalidade como modo de atuação estatal, de outro o conceito clássico de lei formal, editada apenas pelo Parlamento é enfraquecido. Lei é, portanto, o que a Constituição dita como vinculante, colocando instrumentos como a medida provisória em posição central na estratégia de atuação estatal, ao lado de outros meios que permanecem como manifestação coletiva da vontade do Legislativo. (SAMPAIO, 2007, p. 35).
Enfim, no mencionado exercício cooperativo das funções estatais, de grande valia é teoria da construção coordenada do Direito, formulada pelo norte-americano Louis Fisher[11] a partir de seus estudos sobre o sistema político norte-americano. Conforme destaca Sampaio, Louis Fisher dirige fortes críticas à visão ampla de que a verdade judicial seria incontestável, ressaltando a importância que se deve dar à construção prática do Direito Constitucional, ao passo que refuta o entendimento comum de que o Direito seja desvinculado da política. (SAMPAIO, 2007, p. 67).
Nenhuma instituição única, incluindo o Judiciário, tem a palavra final sobre o significado da Constituição. Um complexo processo de barganha e o respeito mútuo entre os Poderes permite que o Tribunal não eleito funcione de forma segura e efetiva em uma sociedade democrática. Um processo aberto permite que as instituições políticas e os cidadãos exponham suas deficiências, contenham os excessos pelos mecanismos de controle e construam um senso comum que possa comandar o apoio público. Um processo aberto leva à participação do público e ao respeito à Constituição, dando-lhe uma legitimidade e vitalidade que não poderia ser alcançada sob um sistema de supremacia judicial. (FISHER, 2008, p.5, tradução livre).[12]
Na concepção de Fisher, os Poderes estão inseridos em um cenário de permanente diálogo constitucional, no qual o Direito Constitucional “não é monopólio do Judiciário. É um processo no qual os três poderes convergem e interagem com suas interpretações separadas.” (SAMPAIO, 2007, p. 67).
Na doutrina da ‘construção coordenada’, tanto o Presidente quanto os membros do Congresso têm autoridade e competência para se engajarem na interpretação constitucional, não somente antes da decisão das cortes, mas após elas também. Todos os três Poderes têm uma valorosa, ampla e contínua função de ajudar a formar o sentido da Constituição. (SAMPAIO, 2007, p. 68).
Fisher chama atenção, por exemplo, para as decisões judiciais que reconhecem os efeitos jurídicos de construções teóricas resultantes da prática política, afirmando que “geralmente a Suprema Corte decide por ratificar costumes e acomodações introduzidos pelos outros dois Poderes. [...] Nenhuma decisão da Suprema Corte é final, se a nação remanesce discorde e seriamente dividida sobre um tema constitucional.” (FISHER, 1988 apud SAMPAIO, 2007, p. 68).
Desse modo, além de teoria, a construção coordenada do conteúdo e sentido da Constituição é uma necessidade advinda das interações e acomodações políticas resultantes, na prática, “da intersecção dos Poderes ínsita à ideia dos checks and balances, inclusive para que o controle entre os Poderes seja efetivo.” (SAMPAIO, 2007, p. 68).
Em um cenário de diálogo constitucional - entendido como as constantes interações entre os Poderes dentro do cenário político, tendo como objeto a definição de suas prerrogativas e relações recíprocas -, possibilita-se um processo político de construção dinâmica do sentido da Constituição, inserido em uma experiência constitucional concreta, que traduz “sua vida a partir das forças exteriores ao Direito, a partir dos costumes, sociedade e de constante diálogo entre as instituições políticas.” (SAMPAIO, 2007, p. 105).
A partir de uma prática constitucional vivenciada, até porque as próprias instituições - neste caso, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário - não são “definições acabadas e perfeitas, que dispensem qualquer evolução pela prática de vivência política.” (SAMPAIO, 2007, p. 69), ganha força a ideia de que o Direito Constitucional não é de propriedade exclusiva das Cortes ou mesmo “produto de interpretação apenas de texto que contém a constituição, não sendo tarefa de sua identificação, portanto, exercício que leva em conta o paradigma eminentemente positivista”[13] (SAMPAIO, 2007, p. 101). É sim interação entre os Poderes, na própria sistemática de separação mútua, para definição dos seus respectivos âmbitos de atuação e de suas competências.