DA ABERTURA DE CRÉDITOS SUPLEMENTARES
Sobre os decretos ilegais de abertura de créditos suplementares, a denúncia imputa à Presidente da República os crimes de responsabilidade tipificados na Lei 1079/1950, artigo 10, itens 4, 5 e 6, por ter editado decretos não numerados para abrir créditos suplementares sem autorização legal, da ordem de R$ 18 bilhões.
As condutas descritas foram apuradas, constatadas e reconhecidas como ilegais pelo Tribunal de Contas da União, em decisão tomada na sessão de 7 de outubro de 2015 (acórdão 2461/2015 — Plenário), na qual a Egrégia Corte emitiu parecer pela rejeição das contas de governo referentes ao exercício de 2014.
Considerando que os fatos repudiados pelo TCU se repetiram em 2015, conforme descreve a denúncia, os esclarecimentos a seguir são feitos com base neste último ano. A lei orçamentária contém a previsão de receitas e a autorização de gastos, que, em face de alterações nas circunstâncias de fato ocorridas na execução orçamentária, podem ser modificadas, desde que exista autorização legal.
A lei orçamentária federal de 2015 (Lei 13.115, de 20/4/2015), em seu artigo 7º[3], concedeu autorização prévia para que o Poder Executivo editasse decretos abrindo créditos suplementares, mas condicionados à observância dos requisitos fixados, entre os quais está a necessidade de compatibilização com as metas de resultado primário
O artigo 10, item 6, da Lei n. 1079/50[4] prevê que a abertura de crédito suplementar sem autorização da lei orçamentária é crime de responsabilidade passível de gerar o impeachment do Presidente da República. Portanto, se essa acusação for verdadeira, seja por força da Constituição ou pela Lei do Impeachment, haveria motivo jurídico para a aplicação do impeachment. Não nos cabe julgar se a Constituição e a lei devem ou não ser aplicadas. Há um consenso no sentido de que negar a aplicação da Constituição e da lei é que pode configurar um golpe.
A peça acusatória imputa à Presidente a abertura de crédito suplementar sem base na lei orçamentária porque, segundo as leis orçamentárias de 2014 (artigo 4 da Lei n. 12.925/14) e 2015 (artigo 7º Lei n. 13.115/15), não poderia ser aberto crédito suplementar se os valores autorizados fossem incompatíveis com a meta de superávit prevista para tais exercícios. Dito de outra forma, se o governo queria gastar mais, precisaria tirar esse dinheiro da quantia que economizou a priori. A lei prescreve que a prerrogativa de suprimir a autorização legal só pode ser confirmada mediante a comprovação de que o governo alcançou o resultado primário previsto.
A rigor, quando os decretos mencionados na acusação foram editados, já se sabia que a meta do superávit não seria alcançada. E não há como o governo escusar-se do prévio conhecimento desta realidade, na medida em que já havia enviado ao Congresso projetos de leis para a alteração da meta. Em 27 de julho de 2015, o governo determinou a abertura de crédito suplementar de R$ 36.759.382.520,00 para fazer frente a despesas do Tesouro. É importante que se diga que a quantia de R$ 36.048.917.463 foi obtida com a anulação de outras despesas. Até o limite do referido importe, o que se tem é uma descentralização ou mero remanejamento. Entretanto, para que a conta feche, faltam aproximadamente R$ 710.465.057,00. Como o governo conseguiu auferir essa diferença?
Segundo um dos decretos editados pela Presidente Dilma, R$ 703.465.057,00 viriam do superávit primário de 2014. Ora, já se sabe que esse superávit era ao fim e ao cabo uma grande ilusão, tendo em vista que essa pretensa “economia” foi fruto de pedaladas. As contas já estão rejeitadas e quanto a estes fatos não remanescem quaisquer dúvidas. De toda forma, é preciso explicar um desfalque de aproximadamente sete milhões de reais. Pasmem os leitores, essa importância foi retirada do "excesso de arrecadação de doações 2015".
Ora, se o governo alega "excesso", é porque o Tesouro disporia, na época em que aberto o crédito, de um superávit, ou seja, uma sobra. Em suma, a Presidente Dilma afirmou que teria superávit em julho de 2015, de modo que, aparentemente, o decreto estaria de acordo com a Lei nº 13.115/15. No entanto, ao mesmo tempo em que o normativo falava em "excesso de arrecadação", o mesmo governo mandava um projeto de lei para alterar a meta do superávit (PLN 05/15). Em síntese, o alegado superávit, ao nosso entender, era um dado falso, uma mentira.
Sob a nossa perspectiva, o governo violou intencionalmente o comando constante do artigo 7º da Lei nº 13.115/15. Isso porque teria ocorrido a abertura de um crédito suplementar sem autorização na lei orçamentária. E o pior: a supressão da participação legislativa se deu mediante um dado que o governo tinha certeza de que não era verdadeiro. Não temos dúvidas quanto a configuração de fato jurídico apto a ensejar o impeachment, porquanto consolidada a materialidade prevista no artigo 185, V, da Constituição Federal e o artigo 10, item 6, da Lei 1079/50. Vale ressaltar que a conduta descrita é uma reiteração do quanto já ocorrido durante o exercício de 2014, sendo que já há havia relatório do TCU - ainda que pendente de julgamento final - alertando que essa conduta violaria a lei orçamentária.
Os defensores da Presidente afirmam que os decretos não teriam criado despesa nova. Neste ponto, cumpre rememorar que o decreto a pouco mencionado teria criado crédito suplementar de 36.759.382.520,00 e anulado uma despesa de 36.048.917.463,00. O governo insiste em justificar-se afirmando que uma dotação anula a outra. Isso é parcialmente verdade. Entretanto, é preciso justificar os setecentos milhões “desaparecidos”. E isso ninguém explica. Segundo Ricardo Lodi, professor escolhido para defender a Presidente em sessão da Comissão Especial, não haveria necessidade para justificar essa diferença. Isso porque tal importância deixaria de ser formalmente considerada após a revisão da meta. A aprovação do PLN 5 funcionaria como uma redentora convalidação de todas as irregularidades cometidas durante o exercício orçamentário.
A pretensa convalidação é a confirmação de que não é necessário guardar o mínimo de responsabilidade fiscal durante o exercício, dado que todos os equívocos podem ser solenemente ignorados no final do ano. O que importa é a realização da meta tão somente após a sua revisão. Obviamente, não podemos compactuar com essa conclusão. A primeira razão é que o decreto impugnado abriu o crédito quando já estava frustrada a previsão de meta constante da lei orçamentária. O ato surgiu para o ordenamento em manifesta incompatibilidade com a lei que previa a meta de resultado primário. Uma norma infralegal que nasce ilegal não pode ser convalidada por uma lei posterior. O vício congênito causado pela inconformidade com norma superior que configura seu pressuposto de validade não pode ser sanado. Esse é um princípio básico da hierarquia das normas.
A rigor, não se pode considerar de menor importância o fato de a Presidente valer-se de dados falsos no momento de editar um dado decreto. Ora, se quando o decreto em alusão foi editado não havia superávit, por óbvio não havia excesso de arrecadação. Ora, se tal fato era de amplo conhecimento, considerada a iniciativa voltada a alterar a meta, temos de reconhecer que o governo inseriu, voluntariamente, um dado falso em um ato normativo. Cumpre-nos reconhecer que a revisão da meta de superávit não tem o condão de reconstruir o passado, já que a Presidente faltou com a verdade no preciso momento em que o Decreto foi criado.
Mantendo as vênias de estilo, afigura-nos insustentável o argumento do Professor Ricardo Lodi ao proclamar o saneamento das irregularidades pela aprovação do PLN 05. Segundo o artigo 9º da Lei 101/00, Lei de Responsabilidade Fiscal, se no final do bimestre o governo percebe que não vai cumprir a meta de superávit, fica obrigado a limitar empenho. Limitar empenho significa reduzir despesas, parar de gastar. É justamente a conduta contrária ao que se fez quando da solicitação de abertura de crédito suplementar.
Estamos convencidos de que o cumprimento da meta é algo que deve ser feito ao longo do ano. O exercício orçamentário não se resume ao dia 31 de dezembro. Isso tanto é verdade que o artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal exige um esforço bimestral do governo, esforço, esse, que foi descumprido ao se pedir abertura de crédito suplementar, sem que o resultado primário estivesse alcançado.
Por fim, é comum deparar-se com o argumento de que o descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, embora seja grave, não chega a consubstanciar um crime de responsabilidade. A partir dessa tipologia constitucional estrita, monocular, seria forçoso reconhecer que, não prevendo a Constituição Federal a possibilidade de crime de responsabilidade em face da violação da lei de responsabilidade fiscal, mas tão somente da lei de orçamento, não há que se falar em crime de responsabilidade pela violação ao artigo 35 da Lei Complementar nº 101/00.
Os fluxos de caixa entre a União e os bancos públicos, ainda que não se revistam em operações de crédito, o que, vimos, não é o caso, não violam propriamente a Lei Orçamentária Anual (LOA), que constitui o bem jurídico tutelado em todos os tipos legais do referido dispositivo sancionador dos crimes de responsabilidade, mas, supostamente, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que com ela não se confunde. Cumpre observar que os defensores desta tese simplesmente "esquecem" que o artigo 85 da Constituição Federal não tem apenas o inciso V. Cumpre ressaltar o inciso VI, que trata de "improbidade administrativa", e o inciso VII, que fala do descumprimento das leis em geral. Também é digno de registro que nosso texto trabalhou com o exemplo de apenas um decreto. Nossa breve análise ficou circunscrita a sete milhões. Entretanto, não se pode esquecer que o Professor Miguel Reale Jr. aponta que o total dessa diferença alcança a soma R$ 2,5 bilhões de reais.
Notas
[1] Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade. § 4º O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.
[2] Afirmação constante à página 40 do relatório do Ministro Augusto Nardes
[3] “Fica o Poder Executivo autorizado a abrir créditos suplementares, observados os limites e condições estabelecidos neste artigo, desde que as alterações promovidas na programação orçamentária sejam compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida para o exercício de 2015 (...).”
[4] Art. 10 – item 6 - ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal; (Incluído pela Lei nº 10.028, de 2000)