Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Expansão da tutela penal do meio ambiente na sociedade de risco:

crime omisso como concausa dessa expansão

Exibindo página 2 de 3
Agenda 18/05/2016 às 09:22

1.4  O paradigma dos kumulationsdelikte na tutela penal ambiental

A necessidade da antecipação de tutela penal nos casos envolvendo a salvaguarda do meio ambiente ecologicamente equilibrado resultou na elaboração da teoria dos kumulationsdelikte ou delitos por acumulação.

Isso significa dizer que condutas isoladas do ponto de vista de proteção do meio ambiente não teriam a capacidade de lesioná-lo ou colocá-lo em risco, nem mesmo dentro da técnica legislativa dos crimes de perigo abstrato; não obstante, quando praticados em massa – tais condutas passariam a extremamente relevantes, pois que efetivamente degradadoras.

Os kumulationsdelikte ou delitos por acumulação (ou cumulação) nos casos de pequenas infrações ao meio ambiente que, individualmente, seriam insignificantes, tendo em vista não representarem lesividade suficiente para permitir punição ao autor; porém, uma vez somadas, representariam um dano considerável às condições de preservação ambiental (OLIVEIRA, 2013).

Essa teoria de Lothar Kuhlen foi desenvolvida a partir de um caso concreto de Direito Ambiental (§ 324 StGB, delito de contaminação de águas, Gewasserverunreinigung),  consoante explica Ana Carolina Carlos de Oliveira:

Kuhlen desenvolve sua teoria a partir de um caso concreto, segundo o qual pequenas propriedades suinocultoras ao longo de um rio lançavam dejetos em quantidades ligeiramente acima do permitido pelas regras administrativas. Constatou-se, contudo, que apesar da pouca representatividade dos poluentes lançados ao rio por cada uma das propriedades (insuficiente, portanto, para a caracterização do tipo penal de poluição das águas), a soma dos poluentes despejados por todas as propriedades representava uma deterioração grave da qualidade da água. Em vista deste problema, sugere o autor a punição destas condutas, individualmente, com a finalidade de preservação do meio ambiente, enquanto bem jurídico coletivo, a ser desfrutado por toda a sociedade. O delito que fundamentaria a punição seria o de poluição das águas. (OLIVEIRA, 2013)

Por outro lado Silva Sánchez defende posição diametralmente oposta, salientando que a ausência de perigo, na conduta isolada, não justifica a incidência do Direito Penal:

Os resíduos de uma empresa – de apenas uma -, por muito que superem amplamente os graus de concentração de metais pesados estabelecidos na normativa administrativa, não tem como colocar em perigo – por si sós – o equilíbrio dos sistemas naturais. Se somente se tratasse dos resíduos de uma empresa, não existiria problema ambiental. O problema se deriva da generalização de resíduos com certos graus de concentração de metais. Nessa medida, é lógico que sob a perspectiva global do Direito Administrativo sancionador se considerem pertinentes a intervenção e a sanção. Pois o somatório de resíduos teria – aliás, tem – um inadmissível efeito lesivo. Mas, novamente, não se mostra justificável a sanção penal da conduta isolada que, por si só, não coloca realmente em perigo o bem jurídico que se afirma proteger. (SILVA SÁNCHEZ, 2013)

Notório o paradigma na fundamentação teórica desses dois autores, tendo em vista que partem de um mesmo caso concreto (contaminação das águas), porém com conclusões diametralmente opostas acerca da necessidade da aplicação do Direito Penal (ou sua neutralização).

Os delitos de acumulação são uma subespécie dos crimes de perigo abstrato, e, como tal, segundo afirma Silva Sánchez, simplesmente, perigo presumido, perigo estatístico ou – ainda melhor – perigo global, chegando a defender a descriminalização dos delitos de perigo abstrato, nos quais se faz a abstração do perigo, sendo este um dado meramente estatístico.

A teoria da descriminalização dos delitos de perigo abstrato não teve aceitação na legislação brasileira, tendo em vista a Lei de Crimes Ambientais estar baseada nessa técnica legislativa, salvo casos especialíssimos de aplicação do princípio da insignificância.

O fato – é tanto Kuhlen quanto Silva Sanchéz concordam que em determinados casos, a tutela ambiental, seja contemplada por infrações administrativas.

Existe uma tendência doutrinária em aproximar o Direito Penal do Direito Administrativo-sancionador, especialmente na tutela ambiental, com o móbil evidente de descriminalizar condutas, deixando a cargo do direito administrativo apresentar solução, visando coibir o chamado “processo de criminalização”. [1]

Até ser superado o paradigma dos kumulationsdelikte – merece destaque esse conceito, visto que a tutela ambiental, para as presentes e futuras gerações, necessita ir além da busca de apuração de responsabilidades individualizada, para a busca de uma apuração coletiva, como exige a crise ecológica, isso é uma realidade; o desafio é a preservar o princípio da legalidade e garantir o direito de defesa.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

1.5  conclusões:

O Direito Penal é a forma mais gravosa de intervenção na esfera das liberdades individuais; a partir disso, posicionar o Direito Penal na Sociedade Global do Risco – conceito desenvolvido por Ulrich Beck é basilar para entender o desenvolvimento e incidência do delito omissivo com causa de expansão desse Direito.

Acreditava-se na capacidade do homem de prever e controlar os acontecimentos futuros e, portanto, nas relações de causalidade. Sendo assim, mecanismos de contenção de riscos permitiam a sensação mínima de segurança social.

É claro o entendimento do passado de que os sistemas de automação industrial e os contratos de seguros representavam balizamentos de controle aceitáveis à época. Inobstante, esses sistemas de segurança mostraram-se obsoletos, ante a instalação da sociedade da ultra-velocidade, dos mega-riscos, e, dos conglomerados empresariais.

A conjugação do declínio do Estado Social, com os efeitos da globalização, somados ao domínio absoluto das grandes corporações, potencializou o conceito do crime omissivo que passou a ostentar certo protagonismo na teoria geral do crime, ante a incapacidade de controle por parte do Estado.

É o que nos explica Juarez Tavares:

A criação, portanto, de delitos omissivos e sua intensa utilização nas leis penais mais recentes não são produtos de uma tomada de consciência do legislador em torno de necessidades sociais emergentes, como poderá parecer e como querem fazer parecer os meios de comunicação de massa, no sentido de se obter, com isso, um estado de paz social. Sua adoção é uma consequência da falência do Estado social e sua substituição pelos conglomerados, cujas estruturas passam a servir de modelo para todos os demais setores sociais e econômicos, inclusive para as próprias pessoas individuais, essas cada vez mais dependentes do poder de controle das agências e da disponibilidade e arbitrariedade dos prestadores de serviço. Significativa é a subordinação do indivíduo aos planos de fidelidade dessas empresas, que bem retratam sua extensão desmedida às atividades e decisões de todos. Ao introduzir-se o plano de fidelidade, desde os setores mais importantes até os pequenos negócios, se induz o indivíduo a, simbolicamente, se subordinar a suas regras e controles. O plano de fidelidade, que serve de base aos deveres de organização, também constitui o filão simbólico a fundamentar, em outros termos, as infrações por omissão. (...) Vê-se, pois, que a construção de um modelo de delito, a partir de um delito omissivo, que se anuncia como a grande conquista da moderna ciência penal funcionalista, não é um ato politicamente avalorado ou cientificamente neutro. Independentemente dos bons ou maus propósitos da doutrina, a mudança de rumos teóricos no âmbito do delito e a substituição gradativa do modelo comissivo pelo modelo omissivo correspondem ao sedimento ideológico conduzido pelo domínio das corporações. (TAVARES, 2012, p. 24)

A partir disso, os riscos conhecidos começaram a assumir características cada vez mais globais, ameaçando o modelo capitalista que os produziu. Com base na ideia de risco, desenvolveu-se uma racionalidade distinta do modelo de direito penal liberal, o direito penal do risco.

Portanto, o direito penal, sob essa perspectiva, antecipa cada vez mais a punição de comportamentos que antes seriam considerados preparatórios ou absolutamente inofensivos – dando ênfase aos crimes omissivos, e, em especial à tutela ambiental, que outrora foram relegados ao segundo plano (doutrinário e jurisprudencial).

Assim inicia a expansão dos delitos omissivos, explica Juarez Tavares:

Tendo em vista a rudimentariedade de sua incidência prática, o delito omissivo ficou, durante muito tempo, desligado da dogmática. Lançado os olhos sobre a evolução do conceito analítico de delito, pode-se constatar que a omissão não passava, inicialmente, de modalidade secundária da ação. Acolhida a norma incriminadora como manifestação direta da proibição, importante era a identificação da ação positiva, da qual deveria resultar a omissão. Ainda que concebido, legislativamente, em algumas hipóteses como delito autônomo desde o século XIV, seu grande passo dogmático só começa a se manifestar sob um regulamento próprio a partir do século XIX, quando se manifesta a necessidade de uma regra geral da omissão e, em face da diversidade normativa, se procede à distinção entre delitos que resultam da violação da proibição e delitos sedimentados sobre a infração de um comando. Anteriormente, o problema se achava limitado ao exame de casos concretos, relativos aos delitos de homicídio, infanticídio, omissão de socorro ou omissão de comunicação de crime, ou a delitos funcionais subordinados normalmente a deveres especiais de seus sujeitos. Desde essa época, no entanto, se sucedem pronunciamentos acerca da menor ou igual gravidade de tais delitos diante daqueles realizados por comissão, que dizer, a previsão de uma omissão, como ação delituosa, não despertava unicamente um interesse no âmbito da teoria do delito, mas de sua punibilidade. (TAVARES, 2012, p. 31-32)

É crescente a tipificação dos delitos de perigo abstrato como legítimos instrumentos de um Direito Penal direcionado à prevenção dos riscos globais. O estudo sobre os fundamentos da incriminação desses delitos é um passo importante para compreender o novo paradigma do Direito Penal nos dias hodiernos.

Para tanto sustenta D’Avila:

O direito penal ambiental, entretanto, parece tomar uma outra direção. Impulsionado, de um lado, pela pretensão de oferecer uma ampla tutela aos bens jurídicos ambientais e, de outro, por dificuldades dogmáticas, muitas vezes insuperáveis, de verificação causal dos danos que, não raramente, se perde na multiplicidade e cumulatividade de fatores, no tempo diferido, na incerteza sobre a própria relação causa-efeito ou em danos transfronteiriços, o direito penal ambiental tem sido marcado por uma forte antecipação da tutela, na qual o demasiado distanciamento entre a conduta e o objeto de proteção da norma tem favorecido, significativamente, a formulação de tipos de ilícito meramente formais, nos quais a violação do dever passa a ocupar o espaço tradicionalmente atribuído à ofensividade. Dai não surpreender o grande número de crimes de perigo abstrato e dos denominados crimes de acumulação, no âmbito do direito penal ambiental. (D’AVILA, 2015)

Filiamos-nos à corrente que entende a necessidade da construção de um novo paradigma jurídico-penal para a tutela ambiental; pois, mesmo contrariando a posição dominante do Direito Penal (clássico), tendo em vista a necessidade premente de proteção integral do meio ambiente, sob pena de perecimento da própria humanidade.

Portanto, a expansão do direito penal para a tutela do meio ambiente ecologicamente equilibrado se faz necessária e salutar, tendo em vista o poderio econômico dos conglomerados de empresas, a nova criminalidade e, sobretudo os novos riscos da sociedade pós-industrial.

Em resumo conclusivo, o crime omissivo na tutela do meio ambiente ecologicamente equilibrado não é um colocado (legislação), e sim um construído (desenvolvimento dogmático), que deverá ser estudado, planejado e estruturado para que possa funcionar atendendo aos anseios do meio ambiente ecologicamente equilibrado; todavia, sem desnaturar os princípios basilares do direito penal.

Sobre o autor
Henrique Perez Esteves

Advogado Criminalista com atuação no Tribunal do Júri. Mestre em Direito Público, Pós-graduado em Processo em Processo Penal. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Prática Penal Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ESTEVES, Henrique Perez. Expansão da tutela penal do meio ambiente na sociedade de risco:: crime omisso como concausa dessa expansão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4704, 18 mai. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48829. Acesso em: 22 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!