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Projeto do novo Código de Processo Penal e a criação da inconstitucional polícia legislativa judiciária

O artigo 753 do projeto do novo Código de Processo Penal é inconstitucional e representa um claro retrocesso ao criar a inusitada e esdrúxula figura da Polícia Legislativa Judiciária, conferindo poderes de polícia judiciária à polícia legislativa.

O projeto do novo Código de Processo Penal (Projeto de Lei do Senado nº 156/2009) encontra-se atualmente em discussão na Câmara dos Deputados e tem, supostamente, a finalidade de modernizar a persecução penal no Brasil. No entanto, observa-se que o projeto em comento caminha em sentido totalmente oposto, ao estabelecer, por exemplo, no seu artigo 753, a inusitada e esdrúxula figura da “Polícia Legislativa Judiciária”, ao conferir poderes de polícia judiciária à polícia legislativa. Para melhor compreensão do tema em análise, eis o disposto no art. 753 do projeto do novo CPP: [1]

Art. 753. A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, no exercício do seu poder de polícia, que abrange a apuração de crimes praticados nas dependências de responsabilidade da respectiva instituição, poderão instaurar inquérito policial a ser presidido por servidor no desempenho de atividade típica de polícia, bacharel em Direito, conforme os regulamentos expedidos no âmbito de cada Casa legislativa, observando-se, ainda, subsidiariamente, as disposições deste Código.

Inicialmente, cumpre destacar que a segurança pública está disciplinada no Título V, Capítulo III, da Constituição Federal, e os órgãos que a compõem estão previstos nos incisos do art. 144, caput: [2]

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I – polícia federal;

II – polícia rodoviária federal;

III – polícia ferroviária federal;

IV – polícias civis;

V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.

Entre esses órgãos, está dividido o exercício da função de polícia, cabendo às Polícias Militares a polícia de segurança ou de preservação da ordem pública, de caráter preventivo, ao passo que a polícia judiciária ou de investigação, que possui caráter repressivo, é atribuída à Polícia Federal e às Polícias Civis. Estas têm atribuição residual na apuração das infrações penais, nos termos do art. 144, §4º, da CF, enquanto as atribuições da Polícia Federal estão fixadas, detalhadamente, no art. 144, §1º: [3]

§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

 I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;

III – exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras;

IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.

Diante desses dispositivos constitucionais, infere-se que a atividade de investigação somente pode ser realizada por autoridades policiais encarregadas da função de polícia judiciária.

Ou seja, somente a Constituição Federal pode disciplinar quais são as autoridades que possuem competência para a realização de investigações criminais.

Nesse sentido, o art. 58, §3º, da CF, foi claro ao estabelecer que as comissões parlamentares de inquérito terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais.

Verifica-se, portanto, que é possível que outras autoridades administrativas efetuem investigação, mas estas devem estar autorizadas expressamente pela Constituição Federal. Caso contrário, há violação direta ao disposto no art. 144 da Constituição Federal.

Nesse ponto, é oportuno tecer alguns comentários sobre o disposto no art. 4º, parágrafo único, do atual Código de Processo Penal, que assim dispõe:[4]

Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria

Parágrafo único.  A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.  

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NUCCI (2014), infelizmente, não enfrenta a não recepção do disposto no parágrafo único do art. 4º do CPP, e menciona que qualquer autoridade administrativa poderá realizar investigação criminal, desde que autorizada por lei.[5]

Ora, o art. 4º, parágrafo único, do Código de Processo Penal em vigor tem que ser interpretado à luz do que estabelece o disposto no art. 144, §1º, IV, da CF/88. Caso contrário, ao prevalecer o entendimento de que qualquer lei ou código poderia estabelecer “autoridades administrativas” com capacidade de realização de investigação criminal, por certo, estaria completamente esvaziado de conteúdo o disposto no art. 144, §1º, I e IV, da Carta Magna. [6]

Com relação ao Senado Federal, no art. 52, inciso XIII, da CF, prevê-se que é sua competência privativa “dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias”. [7]

No que concerne à Câmara dos Deputados, o art. 51, inciso IV, assim estabelece: “IV – dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços, e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias”. [8]

Ora, o termo “polícia”, nesses dois artigos, deve ser interpretado em conjunto com outros dispositivos constitucionais, especialmente o art. 144 da Carta Magna. Como as Polícias do Senado e da Câmara dos Deputados não estão previstas como Órgãos de Segurança Pública, seja como polícia de segurança ou polícia judiciária, e considerando também que a função de polícia judiciária da União compete, com exclusividade, à Polícia Federal, conclui-se que a correta interpretação é a de que aquele termo “polícia” se refere à “polícia de manutenção” da ordem exclusivamente nas dependências das citadas Casas Legislativas. Em outras palavras, como na Constituição Federal se prevê que a função de polícia judiciária da União é exclusiva da Polícia Federal e, ao mesmo tempo, confere-se às duas Casas do Congresso Nacional a autonomia para dispor sobre suas polícias, infere-se que elas estão autorizadas a regular somente as suas polícias de preservação da ordem, as quais atuarão apenas nas dependências do Senado e da Câmara dos Deputados.

Atribui-se, dessa forma, aos mencionados arts. 51, inciso IV, 52, inciso XIII, e art. 144 da CF/88, a interpretação que confere unidade ao texto constitucional e evita contradição entre suas normas, seguindo-se, assim, os ensinamentos de José Joaquim Gomes Canotilho quando discorre sobre os princípios e regras interpretativas das normas constitucionais.

As Polícias do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, portanto, têm poderes para preservar a ordem pública nas dependências das Casas Legislativas, mas não têm poderes de investigação.

Em análise do ato normativo que criou a Polícia do Senado Federal, observa-se que no art. 2º, §1º, da Resolução nº 59/2002 assim dispõe: “§ 1º São consideradas atividades típicas de Polícia do Senado Federal (...)IV – o policiamento nas dependências do Senado Federal; (...) VI – as de revista, busca e apreensão; VII – as de inteligência; VIII – as de registro e de administração inerentes à Polícia; IX – as de investigação e de inquérito”. [9]

Com relação à Polícia da Câmara dos Deputados, foi instituída pela Resolução nº 18/2003, dispondo-se que: “Art. 3º São consideradas atividades típicas de Polícia da Câmara dos Deputados: (...) IV - o policiamento nas dependências da Câmara dos Deputados; V - o apoio à Corregedoria da Câmara dos Deputados; VI – a revista, a busca e a apreensão; VII – as de registro e de administração inerentes à Polícia; VIII – a investigação e a formação de inquérito”. [10]

 É certo que nessas resoluções está previsto que ambas as Polícias têm poderes de investigação e de inquérito, o que, contudo, é inconstitucional porque viola as normas contidas no art. 144 da CF/88. Reforce-se, mais uma vez, que a função de polícia judiciária da União é exclusiva da Polícia Federal e, dessa forma, crimes cometidos em prejuízo do Congresso Nacional, poder componente da União, devem ser investigados somente pela Polícia Federal.

Nessa situação, cabe ao intérprete conferir às Resoluções nº 59/2002 e 18/2003 a interpretação que garanta a conformidade desses atos normativos com a Constituição Federal, ou seja, as resoluções são constitucionais quanto aos dispositivos que atribuem às respectivas Polícias somente o poder de polícia de segurança ou de preservação da ordem pública nas dependências das Casas Legislativas.

 Dessa forma, considerando que as Polícias do Senado Federal e da Câmara dos Deputados não têm poder de investigação expresso na Constituição Federal ou em lei, tais órgãos não podem, em nenhuma situação, realizar atos próprios de polícia judiciária.

Assim sendo, os crimes cometidos em prejuízo do Congresso Nacional devem ser apurados pela Polícia Federal, a qual exerce, com exclusividade, a função de polícia judiciária da União.

Nem se diga que a Súmula 397 do Supremo Tribunal Federal assim estabelece: “O poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito”. [11]

Ora, é preciso destacar, porém, que tal súmula foi editada em 1964, quando estava em vigor a Constituição de 1946. Ademais, essa súmula teve origem no julgamento do Habeas Corpus nº 40.400, em que se fala sobre a possibilidade de a Mesa do Senado ou da Câmara dos Deputados lavrar auto de prisão em flagrante de delito ocorrido nas dependências das Casas Legislativas. Verifica-se, portanto, que essa súmula não se refere, nem se aplica às Polícias do Senado e da Câmara dos Deputados.[12]

Por todo o exposto, sem a menor pretensão de se esgotar o tema em análise, conclui-se que:

  1. A atribuição de investigação e de instauração de inquérito policial é estranha à Polícia Legislativa, que se destina apenas à manutenção da ordem nas dependências do Senado Federal e da Câmara dos Deputados (polícia administrativa);
  2. A apuração e investigação de crimes ocorridos nas dependências do Congresso Nacional, em detrimento de bens, serviços e interesses da União, deve ser feita exclusivamente pela Polícia Federal, por força do disposto no art. 144, §1º, I, da CF/88, que assim dispõe: “§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: (...) I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei”;
  3. A Constituição Federal de 1988 não legitima a atuação da polícia legislativa como polícia judiciária. As polícias legislativas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados não estão previstas no art. 144 da CF/88 como órgãos de segurança pública;
  4. O art. 753 do projeto do novo CPP viola claramente o disposto no art. 144, §1º, I e IV, da CF/88, pois compete exclusivamente à Polícia Federal a apuração de crimes ocorridos em detrimento de bens, serviços e interesses da União, não podendo nenhuma outra polícia, nas esferas federal e estadual, realizar esse tipo de apuração;
  5. O artigo 753 do projeto do novo Código de Processo Penal é inconstitucional e representa um claro retrocesso ao criar a inusitada e esdrúxula figura da “Polícia Legislativa Judiciária”, ao conferir poderes de polícia judiciária à polícia legislativa (de natureza meramente administrativa).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. BRASIL. Câmara Federal. Resolução nº 18/2003. Dispõe sobre o Departamento de Polícia Legislativa, a reestruturação dos cargos de Analista Legislativo - atribuição Inspetor de Segurança Legislativa e Técnico Legislativo - atribuição Agente de Segurança Legislativa, e dá outras providências. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/transparencia/concursos/download/arquivos/resolucoes/resolucao18de2003.pdf>. Acesso em: 16 mai. 2016.
  2. BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 16 mai. 2016.
  3. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 16 mai. 2016.
  4. BRASIL. Projeto do Novo Código de Processo Penal. Redação final do Projeto de Lei do Senado nº 156, de 2009.  Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=85509&tp=1>. Acesso em: 16 mai. 2016.
  5. BRASIL Senado federal. Resolução nº 59/2002. Dispõe sobre o poder de polícia no Senado Federal. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/pdf/Resolucoes/2002.pdf>. Acesso em: 16 mai. 2016.
  6. BRASIL. Supremo Tribunal Federal.  Habeas Corpus nº 40.400. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=40400&classe=HC&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 16 mai. 2016.
  7. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 397. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=sumula_301_400> Acesso em: 16 mai. 2016.
  8. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. Rio de Janeiro: Forense, 13ª Ed, 2014.

NOTAS:

[1] BRASIL. Projeto do Novo Código de Processo Penal. Redação final do Projeto de Lei do Senado nº 156, de 2009.  Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=85509&tp=1 >. Acesso em: 16 mai. 2016.

[2]BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 16 mai. 2016.

[3] BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 16 mai. 2016.

[4] BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 16 mai. 2016.

[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. Rio de Janeiro: Forense, 13ª Ed, 2014, p. 50-56.

[6] BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 16 mai. 2016.

[7] BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 16 mai. 2016.

[8] BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 16 mai. 2016.

[9] BRASIL Senado federal Resolução nº 59/2002. Dispõe sobre o poder de polícia no Senado Federal. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/pdf/Resolucoes/2002.pdf>. Acesso em: 16 mai. 2016.

[10] BRASIL. Câmara Federal. Resolução nº 18/2003. Dispõe sobre o Departamento de Polícia Legislativa, a reestruturação dos cargos de Analista Legislativo - atribuição Inspetor de Segurança Legislativa e Técnico Legislativo - atribuição Agente de Segurança Legislativa, e dá outras providências. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/transparencia/concursos/download/arquivos/resolucoes/resolucao18de2003.pdf>. Acesso em: 16 mai. 2016.

[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 397. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=sumula_301_400>. Acesso em: 16 mai. 2016.

[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal.  Habeas Corpus nº 40.400. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=40400&classe=HC&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 16 mai. 2016.

Sobre os autores
Bruno Fontenele Cabral

Delegado de Polícia Federal. Mestre em Administração Pública pela UnB. Professor do Curso Ênfase e do Grancursos Online. Autor de 129 artigos e 12 livros.

Anny Karliene Praciano Cavalcante Fontenele

Delegada de Polícia Federal lotada em Brasília/DF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABRAL, Bruno Fontenele; FONTENELE, Anny Karliene Praciano Cavalcante. Projeto do novo Código de Processo Penal e a criação da inconstitucional polícia legislativa judiciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4709, 23 mai. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49031. Acesso em: 22 nov. 2024.

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