Meditando sobre o buraco em que o Brasil foi jogado em razão da ambição doentia de um vice-presidente capaz de trair o país (Michel Temer agiu como espião da Embaixada dos EUA) e de uma maioria parlamentar mafiosa comandada por um bandido procurado pela Justiça (Eduardo Cunha corre o risco de apodrecer no presídio da Papuda) desci do ônibus e segui para minha residência alheio ao que ocorria em volta. Fui novamente resgatado para a realidade por suas mulheres que atravessaram a rua, vindo em direção a mim. Elas davam piruetas, pulavam e conversavam alto.
Uma delas disse “Jesus é rico, muito rico, e hoje ele vai visitar minha casa”. A outra, igualmente eufórica completou “Jesus é imensamente rico sim, mas ele não é sovina como os homens ricos.” Em seguida elas entraram numa rua lateral e eu segui em frente até chegar ao prédio onde moro. Parei de pensar no país e comecei a refletir sobre a conduta de ambas.
O estado alterado das mulheres era evidente e realmente chamou minha atenção. Não fosse pela conversa religiosa, elas poderiam ser consideradas malucas ou drogadas. As referências ao “Jesus rico” me fizeram concluir que elas eram evangélicas e haviam saído de um culto. Ao contrário dos católicos, que reverenciam a divindade do menino pobrezinho que nasceu numa manjedoura e foi crucificado ao lado de dois ladrões após ser cruelmente espancado e humilhado pelo poder romano (símbolo do poder e da injustiça na teologia católica), os evangélicos acreditam numa teologia altamente monetizada.
É curiosa e contratual relação dos evangélicos com sua versão de Jesus. Eles cumprem suas obrigações (frequentar o culto e, principalmente, pagar o pastor) e em troca tem acesso a um maravilhoso banqueiro neoliberal divino. O deus daquelas mulheres parece ser capaz de distribuir dinheiro sem exigir garantias fiduciárias e sem se preocupar com o pagamento da dívida. Suponho que o Jesus evangélico tenha o mesmo poder que os banqueiros norte-americanos: ele transformar dívidas ruins e não pagas em títulos de crédito que podem ser lançados com lucro exorbitante em algum mercado distante.
No curto espaço de tempo em que os nossos caminhos se cruzaram e pude ver as piruetas delas e escutar o que elas falavam, lembrei-me do capítulo da biografia de Maquiavel em que Maurizio Viroli narra rapidamente a ascensão e queda de Girolamo Savanarola.
Diz o biógrafo de Maquiavel, que:
“Nicolau, na época com pouco mais de vinte anos, certamente escutou as pregações de Savanarola. Mas ao contrário da maioria de seus conterrâneos, não se deixou levar pela sua eloquencia. A idéia de que o pecado dos italianos fosse a causa de todos os males da Itália não o convencia, e muito menos acreditava que ao jejuar, pregar e abster-se dos prazeres da carne, dos jogos e das festas, os florentinos aplacariam a cólera de Deus, reencontrando a paz e a concórdia.” (O sorriso de Nicolau, Maurizio Viroli, Estação Liberdade, 2002, p. 34)
Minha atitude em relação às duas mulheres foi, portanto, maquiavélica. A alienação delas me pareceu evidente e deliberadamente produzida por um pregador tão inflamado quanto Savanarola. Considerei a situação bastante perigosa. Eu as ouvi e, apesar de todas as objeções que poderia fazer, fiquei calado. Pessoas excitadas daquela maneira não podem ser resgatadas do delírio histérico em que foram mergulhadas sem que esbocem algum tipo de reação violenta.
O que eu presenciei na rua está, sem dúvida, relacionado ao golpe de estado arquitetado pelo pastor Eduardo Cunha. Tanto isto é verdade que após assumir a presidência Michel Temer nomeou vários ministros evangélicos e estes, por sua vez, certamente indicarão apenas evangélicos para ocupar os cargos de segundo e terceiro escalão. O poder que Eduardo Cunha e seus homens conquistaram certamente irá lhes garantir o prestígio e a riqueza prometida pelo “Jesus rico” referido pelas duas mulheres que quase me atropelaram ao atravessar a rua dando piruetas.
Ao chegar no meu apartamento, olhei desanimado para a pilha de livros sobre a ditadura de 1964-1988 que juntei (vide http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/quando-abriremos-enfim-a-caixa-preta-de-todos-os-golpes-de-estado). Ocorre-me então uma pergunta dolorosa: Um fenômeno religioso semelhante ao que eu havia acabado de presenciar ocorreu durante a ditadura militar? Abro uma das sacolas de livros ao acaso e topo com uma obra de Hélio Bicudo (Meu Depoimento sobre o Esquadrão da Morte, 2a edição, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1976). Os membros dos Esquadrões da Morte combatidos pelo autor da petição que resultou no novo golpe de estado agiam sob algum tipo de inspiração religiosa?
Futuros plausíveis começam a se delinear. Embalados pela partilha do poder após o golpe de estado que derrubou Dilma Rousseff, os evangélicos se organizam, estruturam e juntam recursos humanos, políticos e financeiros para controlar todo Estado. Conseguindo o que desejam, eles começam a implantar sua própria teocracia (o projeto deles já é vendido aos fiéis que compram e usam camisetas com os dizeres “Bíblia sim, Constituição não”). A reação, qualquer que seja sua origem, só poderá ser demonizada e combatida de maneira violenta por milícias evangélicas ou pelas PM reeducadas. Converta-se, pague o dízimo ou morra!
A reação dos bispos católicos ao golpe de estado de 2016 é evidente e tem sido abertamente proclamada. Isto não me parece menos ligado à suposta devoção deles ao PT (de fato, há vários bispos que criticam abertamente alguns aspectos dos governos petistas). A reação dos católicos ao assalto do poder pela minoria evangélica tem um fundo religioso. Além da diferença teológica fundamental (que foi por mim esboçada aqui), a Igreja Católica certamente não quer perder seu prestígio, tampouco deseja ser submetida por pastores que instigam seus fiéis a destruir imagens e a agredir as pessoas de outras religiões.
Talvez, e eu digo só talvez, os bispos católicos tenham acordado para uma possibilidade terrível. Eles serão isolados, humilhados e eventualmente até presos caso as seitas evangélicas, cada vez mais ricas e politicamente influentes, consigam implantar uma teocracia no Brasil. O catolicismo aprendeu a conviver com as outras religiões. Excitados por falastrões como o pastor Malafaia, os evangélicos destroem terreiros de umbanda, quebram imagens católicas e agridem pessoas que não acreditam nas mesmas coisas que eles. Nos países em que minorias sunitas controlam Estados em que vivem maiorias xiitas, os xiitas comem o pão que Alá não amassou.
A religião, creio, é um elemento que tende a complicar e a aprofundar a crise política. Destruir o governo do PT com ajuda da imprensa foi uma tarefa fácil para os evangélicos. Agora os pastores terão que enfrentar os verdadeiros obstáculos à construção de sua teocracia de mil anos: os bispos católicos.
Como os príncipes da Igreja Católica reagirão às ambições teológico-políticas dos evangélicos? Entraremos em breve num ciclo de conflitos violentos de matriz religiosa? Milícias Evangélicas começarão a agir contra católicos em razão da resistência deles à implantação da teocracia comandada pelos pastores? Os católicos organizarão os seus próprios Esquadrões da Morte de Evangélicos? As Forças Armadas se dividirão entre evangélicos e católicos como sugeriu Jair Bolsonaro?
Em breve os brasileiros começarão a sentir saudades do tempo em que o país foi governado por petistas laicos e tolerantes. Mal ou bem, Lula e Dilma conseguiam evitar o pior. Agora que o PT foi removido do poder não há mais espaço para política. O país está fadado a se transformar numa terra devastada entre partidos religiosos antagônicos, irreconciliáveis e que se tornarão mais e mais belicosos. A mim só resta sorrir como o Nicolau.