4. APROXIMAÇÕES ENTRE A TEORIA PURA DO DIREITO E A TEORIA DA RECEPÇÃO DAS NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS
Percebe-se que, em um ponto crucial, há convergência entre a estrutura escalonada da ordem jurídica, defendida por Kelsen, e a teoria da recepção adotada pelo direito brasileiro: em ambos os casos, defende-se que a norma infraconstitucional retira validade da Constituição.
Nesse sentido, como mencionado por Luís Roberto Barroso, a norma infraconstitucional, anterior à nova ordem constitucional e que seja com ela compatível, retira o seu fundamento de validade da nova Constituição.
Ressalte-se que Hans Kelsen chegou a abordar expressamente o problema da recepção no sentido posteriormente defendido por Luís Roberto Barroso, destacando que o conteúdo das normas anteriores continua o mesmo, mas seu fundamento de validade é alterado. A recepção, então, deveria ser encarada como uma forma de produção de direito, uma vez que as normas anteriores teriam o seu fundamento de validade modificado50.
Esse detalhe é importante para se compreender um efeito importante da teoria da recepção: o mecanismo de alteração da espécie normativa da norma infraconstitucional anterior à nova constituição. Antes de se enfrentar este tema à luz do direito brasileiro, é preciso analisar a estrutura escalonada do ordenamento jurídico feita pela CF/88.
Como é peculiar às Constituições, a CF/88 determinou o método de produção do direito infraconstitucional, além de fixar, em seu art. 59, sete espécies normativas oriundas do processo legislativo: a) emendas à constituição; b) leis complementares; c) leis ordinárias; d) leis delegadas; e) medidas provisórias; f) decretos legislativos; g) resoluções.
Como este artigo é focado nas normas infraconstitucionais, são desnecessárias considerações acerca das emendas constitucionais.
De forma semelhante, não se dará maior atenção aos decretos legislativos e às resoluções, pois se destinam a regular matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional, independentemente de sanção ou veto. Ressalvadas algumas exceções, as espécies se diferenciam na medida em que os decretos legislativos são voltados às matérias com efeitos externos e as resoluções, às que tenham efeitos internos, como o regimento de cada uma das Casas51.
As medidas provisórias, além de não serem propriamente produto de processo legislativo, como bem aponta José Afonso da Silva52, acabam resultando, caso aprovadas, em leis ordinárias, frente à vedação do art. 62, III, da CF. Por isso, para fins de análise da teoria da recepção, não se justifica um estudo pormenorizado das medidas provisórias.
De forma semelhante, as leis delegadas divergem das leis ordinárias apenas quanto ao procedimento, já que as delegadas não podem tratar de matérias sujeitas aos decretos legislativos, às resoluções (atos privativos do Congresso Nacional) e às leis complementares (art. 68, §1º). Assim, quanto a determinadas matérias, há concorrência entre a possibilidade de lei ordinária e lei delegada regularem o tema. Desta forma, mostra-se suficiente discorrer apenas sobre as leis ordinárias.
Chega-se, então, ao ponto crucial quando se estuda a recepção das normas infraconstitucionais anteriores à CF/88: as diferenças entre as leis ordinárias e as complementares.
Quanto ao quórum de aprovação, há uma diferença básica: enquanto as leis ordinárias são aprovadas por maioria simples, desde que presente maioria absoluta (art. 47, CF), as leis complementares só são aprovadas por maioria absoluta (art. 68, CF).
Há, ainda, outra diferença: as leis complementares estão reservadas a certas matérias, expressamente mencionadas na CF, como o feito nos arts. 79, parágrafo único, 93, caput, 121, caput, 128, §5º, 131, caput, 134, §1º, 142, §1º, 146, 169, caput, e 184, §3º, por exemplo.
Não há hierarquia entre essas duas espécies normativas, mas apenas delimitação de matérias que podem ser tratadas por uma ou outra. Assim, se uma lei ordinária trata de tema reservado à complementar, ela é inconstitucional não por ser hierarquicamente inferior à outra, mas por tratar de matéria alheia ao seu âmbito normativo53.
Analisando o tema à luz da Teoria Pura do Direito, pode-se afirmar, então, que as normas jurídicas infraconstitucionais relacionadas às matérias reservadas às leis complementares, para serem consideradas válidas, devem extrair a sua validade da norma superior – CF/88. Para que tal aconteça, estas normas jurídicas devem ser leis complementares.
Assim, as normas jurídicas infraconstitucionais posteriores à CF/88 só podem validamente regular as matérias reservadas às leis complementares se leis complementares efetivamente forem. Caso se sujeitem ao procedimento legislativo das leis ordinárias, há invalidade da norma jurídica.
Pelo mesmo motivo, qualquer alteração na legislação vigente sobre as matérias reservadas à lei complementar também só pode ser feita por meio desta espécie normativa. Repita-se: a norma infraconstitucional deve extrair validade da constituição e a CF/88, quanto a determinados temas, condicionou a validade à observância do procedimento legislativo das leis complementares.
É neste ponto que a Teoria Pura do Direito parece sustentar a teoria da recepção das normas infraconstitucionais anteriores à nova ordem constitucional.
A ideia de que as normas infraconstitucionais recepcionadas gozam do mesmo “status jurídico” reservado à matéria que regulam é justificada pelo fato de a CF/88 só atribuir validade às normas jurídicas daquela espécie para que tal regulação (criem, revoguem ou modifiquem normas anteriores).
Dê-se um exemplo para tornar a premissa mais clara: uma lei ordinária anterior à CF/88 foi recepcionada como lei complementar porque ela não pode mais ser alterada ou revogada por lei ordinária, mas só por complementar. Se ela só pode ser influenciada por lei complementar, ela tem o mesmo “status jurídico” desta última.
Ao se estudar a recepção das normas infraconstitucionais anteriores à nova constituição, defende-se justamente que, desde que materialmente compatíveis, elas são recepcionadas e permanecem válidas, procedendo-se às devidas alterações de “ordem formal”, que dizem respeito justamente ao “status jurídico” da norma54.
O CTN (Lei n. 5.172/1966) é o exemplo mais claro desta alteração formal.
Na área tributária, as leis complementares desempenham duas funções: a) complementar as disposições constitucionais sobre a matéria, dispondo, por exemplo, sobre os conflitos de competência entre os entes federativos (art. 146, I, da CF) e acerca das limitações do poder de tributar (art. 146, II, da CF); b) fixar normas gerais de direito tributário (art. 146, III, da CF), aumentando o grau de detalhamento dos modelos tributários já criados genericamente pela CF55.
A Lei n. 5.172/1966 foi inicialmente designada como “Lei do Sistema Tributário Nacional”, tendo caráter de lei ordinária. Destaque-se que a Constituição de 1946, vigente à época, sequer previa a lei complementar como espécie normativa56.
Com a vigência da Constituição de 1967, a lei complementar passou a figurar no ordenamento jurídico brasileiro e a ela foi reservada a regulamentação das matérias tratadas pela Lei n. 5.172/1966, que já então se chamava de Código Tributário Nacional57.
A partir de então, passou a ser discutida a sobrevivência do CTN, o que foi resolvido a partir da teoria da recepção. Como o CTN nasceu formalmente válido (na vigência da Constituição de 1946) e era materialmente compatível com a Constituição de 1967, ele foi recepcionado, de modo que o CTN estaria no mesmo nível de eficácia das leis complementares58.
Percebe-se, mais uma vez, a aproximação entre a Teoria Pura do Direito e a teoria da recepção. Como o defendido neste trabalho, as ideias de Hans Kelsen servem de fundamento para se defender que ao CTN deve ser tratado como lei complementar: como só terá validade constitucional a alteração do CTN que se der por lei complementar, ele tem natureza jurídica de lei complementar59.
De forma semelhante, o Código Penal foi instituído pelo Decreto-Lei n. 1.848/1940, espécie normativa não prevista na CF. Como a matéria afeita à legislação penal é residualmente deixada a cargo das leis ordinárias, o Código Penal, atualmente, tem natureza jurídica de lei ordinária. Isso se vê, por exemplo, das sucessivas alterações pelas quais ele passou, todas oriundas de leis ordinárias, tais como: a Lei n. 13.104/2015, a Lei n. 12.978/2014, a Lei n. 12.850/2013, a Lei n. 12.720/2012 e a Lei n. 12.015/2009.
A mesma alteração sofreu o Código de Processo Penal, criado pelo Decreto-Lei n. 3.689/1941. Após a vigência da CF/88, que não prevê esta espécie normativa, o CPP foi modificado por diversas leis ordinárias, como a Lei n. 13.257/2016, a Lei n. 12.736/2012, a Lei n. 12.694/2012 e a Lei n. 12.403/2011.
Podem ser mencionados outros exemplos, como o Decreto-Lei n. 4.657/1942, que atualmente é denominado de “Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro” e que já foi alterado por leis ordinárias, como a Lei n. 12.376/2010, e o Decreto-Lei n. 911/1969, que trata de aspectos processuais relevantes sobre a alienação fiduciária e que já foi modificado por leis ordinárias posteriores à CF/88, como a Lei n. 13.043/2014.
O STF enfrentou este tema, ainda que forma lateral, no julgamento do HC 74.675/PA, sob a relatoria do ministro Sydney Sanches. Tratava-se de habeas corpus impetrado em favor de ex-prefeito da cidade de Marabá/PA, impugnando acórdão do TJPA que havia recebido denúncia por crimes previstos no Decreto-Lei n. 201/67. Uma das teses suscitadas no HC era a de que a CF não havia previsto o Decreto-Lei como espécie normativa, de modo que a legislação que baseou a denúncia não produziria mais efeitos. O voto do relator, que indeferiu o HC, afirmou que “embora a Constituição de 1988 não inclua o ‘Decreto-Lei’ como forma de processo legislativo, nem por isso revogou o Decreto-Lei nº 201, de 27.02.1967, que regula a responsabilidade penal dos Prefeitos e Vereadores”60.
Percebe-se, portanto, a aproximação existente entre as ideias postas na Teoria Pura do Direito, especialmente naquilo que diz respeito à norma inferior retirar validade da superior, e a teoria da recepção adotada pelo direito brasileiro. Em resumo: pode-se defender que a Teoria Pura do Direito fundamenta a ideia de recepção da norma anterior com uma nova natureza jurídica, já que as normas posteriores, para tratar de tais matérias, devem ser aprovadas pelo procedimento previsto para as espécies dessa “outra natureza jurídica”.
5. CONCLUSÃO
Após as considerações sobre a Teoria Pura do Direito, conclui-se que uma norma jurídica é considerada válida quando encontra fundamento nas normas que lhes são superiores, até que se chegue à sua compatibilidade com a norma fundamental. Esta validade pode ser ligada a aspectos formais ou materiais, fixados na norma superior.
Em seguida, verificou-se que, segundo a teoria da recepção, as normas infraconstitucionais anteriores à nova constituição são consideradas recepcionadas desde que materialmente compatíveis com a nova ordem constitucional, desprezando-se eventuais alterações formais. Após a alteração constitucional, a norma infraconstitucional passa a retirar a sua validade da nova constituição.
Mais à frente, demonstrou-se que, no ordenamento brasileiro, a recepção da norma infraconstitucional pode provocar alteração na sua natureza jurídica, nas hipóteses em que a nova constituição fixa que determinada espécie normativa deve reger a matéria.
Assim, chegou-se ao objetivo deste trabalho: demonstrar que a Teoria Pura do Direito, ao indicar que a norma jurídica deve extrair validade da norma superior, como a legislação infraconstitucional o faz com relação à Constituição, é capaz de justificar a alteração da espécie normativa mencionada acima.
Isto se dá da seguinte forma: se há a recepção da norma infraconstitucional e a nova constituição fixa que determinada espécie normativa é que deve regular a hipótese, a alteração do “status jurídico” da norma anterior decorre do fato de que a norma jurídica posterior deve extrair validade da Constituição, inclusive quanto a aspectos formais. Se somente por lei complementar pode-se se dispor sobre certo tema, por exemplo, a norma anterior passa a ter esta natureza porque somente serão válidas as modificações feitas por meio de leis complementares, não por leis ordinárias.
Desta forma, conclui-se que a Teoria Pura do Direito é plenamente compatível com a teoria da recepção das normas infraconstitucionais e lhe serve perfeitamente de fundamento, especialmente quando se tem em mente o desenvolvimento do tema no direito brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
______. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
CUNHA Júnior, Dirley da. Curso de direito constitucional. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2009.
______. Curso de direito constitucional. 5ª ed. Salvador: Juspodivm, 2011.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 7ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. João Baptista Machado (trad.). 8ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
NERY Junior, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada e legislação constitucional. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 38ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015.