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Dilma, Temer, Lula, Aécio… podem ser condenados por cegueira deliberada?

Em tese, sim. Caso Messi ajuda entender o assunto

Agenda 01/08/2016 às 09:13

Como aplicar a teoria da cegueira deliberada sem violação aos princípios da legalidade e da presunção de inocência?

Dilma disse: “Caixa 2 é coisa do Santana e do PT” (“não sei de nada”). Lula é monocórdio: “eu não sabia de nada”. Temer: “Nenhuma bala perdida vai me atingir; não participei de nada”. Aécio: “Não tenho nada a ver com Furnas”. Cláudia Cruz: “Não sei nada de propina do meu marido [Cunha]”. João Santana e Mônica: “Recebemos o dinheiro, mas não sabíamos das propinas na Petrobras”. Os políticos, em geral, afirmam: “Tudo que recebi declarei para a Justiça, nada sei nada sobre a origem do dinheiro”. “[No mundo da cleptocracia] todas as coisas diabólicas começam com uma inocência” (Ernest Hemingway, escritor americano). Os luciferes discursam como anjos.

Messi (jogador do Barcelona), que não escapou da condenação a mais de dois anos de prisão, por sonegação fiscal, disse o quê?

“Eu apenas me dedicava a jogar futebol; outras pessoas cuidavam dos meus negócios; não tenho conhecimento das regras jurídicas sobre sonegação fiscal; nunca me interessei por esses temas; assinei documentos que meu pai me apresentava; confiava em meus advogados; nunca me inteirei de nada; nego ser autor de crimes fiscais”.

As negativas costumeiras descritas ficaram conhecidas como “desculpe, eu não sabia de nada”. Isso pode ser verdadeiro ou falso. Se falso, pode incidir em algumas situações da teoria da cegueira deliberada, que constitui uma forma de dolo eventual (como veremos).

No mensalão, rios de tinta gastamos para discutir a teoria do domínio do fato (de Claus Roxin). No final, o STF disse que José Dirceu tinha o domínio (o controle) de todos aqueles fatos descritos como “compra” de parlamentares para garantir a governabilidade.

Na Lava Jato e congêneres a polêmica está centrada, em muitos casos, na teoria da cegueira deliberada (também chamada de teoria das instruções de avestruz). Alguns membros das elites dominantes e governantes (políticos, empresários, banqueiros etc.), envolvidos nas roubalheiras hecatômbicas das estatais, podem ter agido com “cegueira deliberada”? A resposta é sim, desde que preenchidas as condições necessárias da teoria.

Uma observação prévia técnica: do ponto de vista do direito penal moderno (que chamamos de 2.0), o criminoso é penalmente responsável quando destrói ou gera risco para a vítima (para sua vida, patrimônio, liberdade sexual, ordem econômica ou financeira etc.) de três formas: (a) total menosprezo: “A” desfere seis tiros na cabeça de “B” e, por vingança, o mata; (b) indiferença, com consciência do fato total: “A”, num racha, diz publicamente que “se alguém morrer, morreu, para mim é indiferente”; (c) descuido (crime culposo de trânsito, numa ultrapassagem não permitida). Tecnicamente temos (na ordem): dolo direto, dolo eventual e culpa.

No direito penal pós-moderno (que estamos chamando de 3.0), agrega-se uma nova modalidade (a quarta) de responsabilidade penal: indiferença (frente ao bem jurídico), com consciência parcial dos fatos (isso é o que acontece na cegueira deliberada), suficiente para assumir o risco de produzir o resultado (trata-se de uma forma de dolo eventual).

Para que a teoria da cegueira deliberada não seja aplicada de forma deliberadamente cega, repito, há uma série de exigências. A doutrina comete equívoco (data vênia) quando se contenta com a simples presunção de que o agente, em razão dos fatos evidentes, agiu com cegueira deliberada.

Quanto a Lula, Dilma, Temer, Aécio etc., “é claro que sabiam de tudo” (essa é uma afirmação corrente, admissível no campo opinativo da política). Essa presunção, no entanto, não vale juridicamente. Para condená-los (eu espero sinceramente que isso aconteça com todos eles o mais breve possível) há uma série de exigências. Nada se presume contra o réu no direito penal.

Afirma-se na doutrina que essa teoria se aplica quando o agente finge não enxergar a ilicitude, com o intuito de auferir vantagens. Não é só isso. A correta aplicação da teoria exige prova de que o agente tenha participado de parte dos fatos. Veja o caso Messi: ele praticou pessoalmente uma série de atos (abriu contas no exterior, assinava documentos, viajava para os países paraísos fiscais etc.).

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Não basta que o agente não tenha querido saber de fatos desagradáveis. Não basta que ele não queira ver a realidade. Só isso não vale. Não basta só se fingir de bobo. É certo que a teoria da cegueira deliberada pretende desmontar negativas como “eu não sabia de nada”, “eu não sei de nada”. Isso é correto. Mas não basta que o autor feche os olhos para o ilícito. Não é correto afirmar (soltamente) que o agente deveria ter procurado saber. A cegueira deliberada não admite nenhum tipo de presunção, ainda que o contexto possa revelar uma óbvia participação do agente. Vamos à essência da teoria.

O Tribunal de Barcelona, ao condenar Lionel Messi (junho/16) por sonegação fiscal, afirmou:

(a) Foi constituído no caso Messi um aparato formidável para ocultar seu dinheiro do fisco;

(b)  Disse ainda o Tribunal: “incorre em responsabilidade penal também quem atua com ignorância ou cegueira deliberada”; “ninguém pode se fazer de tonto quando pratica vários atos de um crime”; de vários atos ele participou ativamente e pessoalmente (e tudo ficou provado):

(1) ele era sócio e administrador único das empresas por onde tramitou o dinheiro desviado do olhar do fisco espanhol; (2) ele assinou uma multidão de contratos; (3) os fatos ocorreram durante vários anos; (4) os seus direitos de imagem eram somente de sua propriedade (o dinheiro nunca foi repartido com ninguém); (5) o dinheiro ocultado do fisco não passou nem pela Espanha nem pela Argentina, mas, sim, por Belize, Uruguai, Reino Unido e Suíça; (6) nunca o dinheiro ficou onde ele trabalha (Espanha) ou mora (Argentina); (7) ele fez incontáveis viagens a esses países (para assinar documentos, regularizar burocracias etc.); (8) era de se estranhar que estivesse viajando para outros países (opacos) para assinar documentos; (9) ninguém é dono de empresa sem sabê-lo; (10) o dinheiro ocultado estava no nome da sua empresa; (11) em 2006 ele cedeu seus direitos autorais para sua mãe, mas em seguida sua mãe transferiu tudo para uma empresa do jogador; (12) litigou com Nike sobre seus direitos autorais (sabia do que se tratava): (13) fez declarações de renda na Espanha com direito de restituição: seu desconhecimento do direito fiscal não o exime de compreender o quanto é desproporcional ter que receber dinheiro e não pagar imposto de renda, sabendo que ganha uma fortuna.

(c) Existe um dever de conhecer que impede fechar os olhos para circunstâncias suspeitosas. Não se pode transmitir para a população a ideia de que “é melhor se inibir – se abster – que preocupar-se com as coisas da vida”. Ninguém pode se fazer de tonto, se participou de atos comprometedores de um delito.

As regras essenciais para a aplicação da teoria da cegueira deliberada, portanto, são as seguintes:

(a) o criminoso (na cegueira deliberada) tem que ter participado efetivamente de alguns atos (Cláudia Cruz, por exemplo, tinha conta bancária em seu nome, movimentava essa conta, usava cartões de créditos etc.). O agente diz não ter consciência do fato todo (do fato inteiro), sim, de parte dele. Ele conta apenas com parcial consciência do fato incriminado na lei;

(b) reitere-se: ele participa efetivamente de alguns atos. Por força da presunção de inocência, obrigatoriamente, a acusação tem que comprovar em juízo sua participação parcial nos fatos (veja quantos fatos foram provados contra Messi);

(c) o criminoso atua com indiferença (frente ao bem jurídico) e assume o risco de estar envolvido em um crime;

(d) ele não tem consciência do fato total, mas sua consciência parcial dos fatos (de que efetivamente participa) funciona como um alerta (acende uma luz amarela);

(e) a partir dessa consciência parcial dos fatos (devidamente comprovados, leia-se, comprovados os fatos e a participação efetiva do criminoso neles), o agente pode se deter (se abster) ou prosseguir. Diante da luz amarela é sempre correto se abster (parar). É correto não avançar (correto jurídica e moralmente);

(f) o criminoso, mesmo diante do sinal amarelo, não se abstém. Não quer saber do todo, do fato inteiro, não quer se inteirar disso, mas nada faz para que o fato se interrompa; o criminoso tem conhecimento suficiente para bloquear o fato, mas prefere se neutralizar;

(g) sabe que o prosseguimento do fato completa o quadro criminoso, mas deliberadamente procura ignorá-lo (se coloca em posição de cegueira deliberada frente ao fato total);

(h) mantém-se nessa ignorância (em relação ao todo), mas tem plena consciência das partes de que participou (e vislumbra algum tipo de benefício ou prazer ou sentimento);

(i) não se trata de casos em que o criminoso prefere não saber (não se envolver), sim, ele prefere não saber mais do que já sabe (em razão de já ter participado de vários atos – no caso da lavagem de dinheiro, já recebeu o dinheiro suspeito, já o depositou em conta bancária etc. – o agente, aqui, só não quis saber a origem precisa; não quis saber “mais”);

(j) na cegueira deliberada o criminoso não se interessa por deixar de fazer o que está fazendo (ou não se desinteressa pelo que já fez); importa-lhe apenas não saber mais do que já sabe;

(k) o que ele já sabe (consciência parcial do fato) é suficiente para assumir o risco “para o que der e vier” (nisso reside o dolo eventual, em que o agente assume o risco de estar produzindo um resultado criminoso);

(l) na cegueira deliberada o criminoso não tem consciência plena e total do fato inteiro (isso acontece no dolo direto); tampouco atua só por mero descuido (isso ocorre no crime culposo, sem intenção);

(m) a diferença entre o dolo eventual e a cegueira deliberada (que é uma espécie de dolo eventual) é a seguinte: no primeiro o criminoso tem consciência do fato inteiro (veja o exemplo do racha) e assume o risco de produzir o resultado; na segunda o criminoso tem consciência parcial do fato e isso é suficiente para assumir o risco de produzir o resultado. Em ambos há dolo eventual (com uma sutil diferença);

(n) na cegueira deliberada o criminoso não só não tem consciência do todo (do fato inteiro) como atua com uma espécie de “cegueira moral” (ele sabe que o todo tem implicações morais e jurídicas sérias, por isso que ele não quer saber disso);

(o) na cegueira deliberada, em suma, o criminoso que só sabe de parte dos fatos tem incerteza em relação ao todo, mas prefere manter-se na dúvida do que tomar consciência inequívoca do fato inteiro;

(p) parece justo que a pena de quem atua com cegueira deliberada (com consciência parcial dos fatos) seja menos intensa que aquela de quem atua com dolo eventual clássico (consciência do fato total).

Reitere-se: o caso Messi é um excelente paradigma para entender a teoria da cegueira deliberada. Note-se que ele efetivamente participou de vários atos. Ele tinha consciência desses fatos (parciais). Não quis tomar ciência do todo, mas sabia muito bem várias partes. Sendo assim, provando-se a participação de Dilma, Lula, Temer, Aécio etc. em parte dos fatos (eu estou torcendo para que isso aconteça), pode ser aplicada a teoria da cegueira deliberada (que vai derrubar suas alegações de que não sabiam de nada). Sem nenhum vínculo fático provado, não se desfaz a presunção de inocência.

Com essas premissas postas penso que a teoria da cegueira deliberada pode ser aplicada sem violação aos princípios da legalidade e da presunção de inocência. Mas o limite é claro: a cegueira deliberada não pode ser aplicada de forma deliberadamente cega.

Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Dilma, Temer, Lula, Aécio… podem ser condenados por cegueira deliberada?: Em tese, sim. Caso Messi ajuda entender o assunto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4779, 1 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51054. Acesso em: 5 nov. 2024.

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