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A responsabilidade subsidiária da administração pública tomadora de serviços, a ADC 16, o STF, o TST e o ônus da prova

Afinal de contas, o ônus de provar a (ir)regularidade da fiscalização e da contratação é do reclamante ou do ente público?

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Agenda 02/01/2017 às 10:10

Levando em conta aspectos teóricos, a ADC 16 e a jurisprudência do TST/STF, de quem é o ônus de comprovar o (in)adimplemento dos deveres de cautela na escolha e de fiscalização? Da parte reclamante ou do ente público tomador de serviços?

1. INTRODUÇÃO

O Tribunal Superior do Trabalho, por meio da Súmula 3311, buscou pacificar as controvérsias em torno da licitude/ilicitude da terceirização2 e dos critérios de responsabilidade/irresponsabilidade do tomador de serviços pelos créditos dos trabalhadores que prestaram serviço em benefício desta e foram inadimplidos pela empresa prestadora.

A despeito de o verbete, em seus seis itens, ser bastante esclarecedor, fato é que a súmula não abrange algumas outras relevantes questões acerca da temática (possibilidade de responsabilização solidária do tomador de serviços ente público em caso de terceirização ilícita; ônus da prova da prestação do serviço em prol da empresa tomadora etc.).

Importante esclarecer que, no particular, quando utilizamos a expressão “ente público”, estamos nos referindo às Administrações Diretas e Indiretas (autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista), uma vez que sobre todas estas incide o elemento normativo de natureza jurídico-administrativa que gera a necessidade da culpa in vigilando ou in eligendo para a responsabilização subsidiária do tomador de serviços ente público e que suscita as dúvidas em torno do ônus probatório atinente, no caso, o art. 71, §1º, da Lei 8.666/19933. Cumpre destacar que tanto a Administração Direta quanto a Indireta se sujeitam ao regime licitatório de contratações (administrações públicas diretas e indiretas prestadoras de serviços públicos – artigos 22, XXVII4, e 37, XXI5, Constituição Federal; empresas públicas e sociedades de economia mista que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços – art. 173, §1º, III6, Constituição Federal) e, enquanto não editada a lei de que trata o art. 173, §1º, III, CF, tanto uma como a outra são regidas pela Lei 8.666/1993.

Nessa linha, o foco do corrente artigo é analisar - a partir de um enfoque teórico, mas também jurisprudencial - de qual parte (reclamante ou ente público) é o ônus de provar a (ir)regularidade da:

a) Fiscalização, pelo ente público tomador de serviços, do cumprimento, pela empresa prestadora, das obrigações trabalhistas atinentes aos empregados que prestam serviço em prol da tomadora. Ou seja, seria ônus da parte reclamante comprovar a culpa in vigilando do ente público tomador de serviços ou seria deste o encargo de demonstrar que fiscalizou a contento o adimplemento dos haveres trabalhistas?

b) Contratação, pelo ente público tomador de serviços, da empresa prestadora de serviços. Ou seja, seria ônus da parte reclamante comprovar a culpa in eligendo do ente público tomador de serviços ou seria deste o encargo de demonstrar a regularidade do procedimento licitatório que culminou com a contratação da empresa prestadora?

Tais indagações são de fundamental relevância diante do manifesto dissenso jurisprudencial interno no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho e do Supremo Tribunal Federal.

A questão é intrincada, pois o art. 71, §1º, da Lei das Licitações, não trata especificamente sobre ônus probatório, mas acaba influenciando substancialmente no deslinde da cizânia. Somente a análise detalhada do problema pode trazer clareza à controvérsia.


2. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE Nº 16 (ADC 16): O QUE FOI EFETIVAMENTE DECIDIDO?

A antiga redação da Súmula 331, IV, TST, dada pela Resolução TST nº 96/2000 (BRASIL, 2000), possuía o seguinte teor:

IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei nº 8.666, de 21.06.1993).

Diante de tal entendimento jurisprudencial, emergia a compreensão de que a responsabilidade do tomador de serviços ente público era automática, decorrendo apenas do inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte da prestadora. E é exatamente essa a exegese que se faz da literalidade do verbete, a despeito de o precedente gerador de tal texto (Incidente de Uniformização de Jurisprudência em Recurso de Revista nº 297.751/967) dar a entender que a culpa in vigilando do tomador de serviços ente público seria apenas presumida na hipótese de inadimplemento dos créditos trabalhistas pela prestadora – e, nesse contexto, seria possível ao ente público produzir prova em contrário no sentido de que empreendeu todas as diligências fiscalizatórias cabíveis.

O esvaziamento do art. 71, §1º, da Lei 8.666/1993, pela jurisprudência trabalhista – uma vez que era óbvia a intenção do legislador de, a partir de tal norma, eximir o ente público de toda e qualquer responsabilidade -, fez com que o Governador do Distrito Federal propusesse uma Ação Direta de Constitucionalidade (ADC 16/DF) com o fito de consolidar a constitucionalidade do mencionado dispositivo – aparentemente renegado implícita ou transversamente pelo Tribunal Superior do Trabalho - e, por via de consequência, reafirmar a literalidade do texto legal e livrar os entes públicos das rotineiras responsabilizações subsidiárias pelos créditos trabalhistas das prestadoras.

Apreciando o pedido formulado, o julgamento da ADC 16 foi assim ementado/decidido (BRASIL, 2010):

EMENTA: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. Subsidiária. Contrato com a administração pública. Inadimplência negocial do outro contraente. Transferência consequente e automática dos seus encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes da execução do contrato, à administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art., 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666/93. Constitucionalidade reconhecida dessa norma. Ação direta de constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto vencido. É constitucional a norma inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995.

DECISÃO: Após o voto do Senhor Ministro Cezar Peluso (Relator), que não conhecia da ação declaratória de constitucionalidade por não ver o requisito da controvérsia judicial, e o voto do Senhor Ministro Marco Aurélio, que a reconhecia e dava seguimento à ação, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Menezes Direito. Ausentes, justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello e a Senhora Ministra Ellen Gracie. Falaram, pelo requerente, a Dra. Roberta Fragoso Menezes Kaufmann e, pela Advocacia-Geral da União, o Ministro José Antônio Dias Toffoli. Presidência do Senhor Ministro Gilmar Mendes. Plenário, 10.09.2008. Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, Ministro Cezar Peluso (Presidente), julgou procedente a ação, contra o voto do Senhor Ministro Ayres Britto. Impedido o Senhor Ministro Dias Toffoli. Plenário, 24.11.2010. (ADC 16, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 24/11/2010, DJe-173 DIVULG 08-09-2011 PUBLIC 09-09-2011 EMENT VOL-02583-01 PP-00001 RTJ VOL-00219-01 PP-00011)

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Diante desse julgado, a questão que se postou foi a seguinte: o que significou a declaração de constitucionalidade do art. 71, §1º, da Lei 8.666/1993 pelo Supremo Tribunal Federal? A resposta depende de uma profunda reflexão sobre a fundamentação do julgado, uma vez que a mera “declaração de constitucionalidade” do texto normativo não ajudou a apaziguar as inúmeras dúvidas e controvérsias envolvendo o tema em questão.

O voto vencedor foi o do Ministro Cezar Peluso. Este, entretanto, a princípio votou pelo não conhecimento da ADC. Durante os debates ocorridos na sessão de julgamento de 24/11/2010, voltou atrás em tal ponto nas páginas 438 e 559 do inteiro teor do acórdão, para, no mérito, julgar a ação procedente (reconhecendo a constitucionalidade do art. 71, §1º, da Lei 8.666/1993, portanto).

O único voto formal, clara e fundamentadamente apresentado no sentido da constitucionalidade da norma foi o da Ministra Cármen Lúcia (p. 21-37 do acórdão), porém esta, durante os debates (p. 44), manifestou-se no sentido de acompanhar o voto do Ministro Relator Cezar Peluso.

O Ministro Celso de Mello, por sua vez, votou pelo conhecimento da ação e, no mérito, também acompanhou o voto do Ministro Relator Cezar Peluso (p. 56-62).

O ministro Ayres Britto (p. 54) votou pela parcial improcedência da ADC, reconhecendo a inconstitucionalidade da norma no que tange à terceirização de mão de obra.

Os votos e os fundamentos exteriorizados pelos demais ministros foram esparsos e alguns até implícitos, mas todos, superada a admissibilidade da ação, no sentido de procedência da ADC.

Como se percebe, extrair a fundamentação de tal julgado do STF, nesse contexto, não é tarefa nada fácil. A melhor linha, após a leitura da íntegra do acórdão, parece ser a de tentar captar o(s) consenso(s) interpretativo(s) ou a(s) tese(s) majoritária(s) dos Ministros alcançados por meio dos debates ocorridos na sessão de julgamento.

Vejamos as posições de cada ministro ao longo dos debates (valendo salientar que o MINISTRO DIAS TOFFOLI era impedido para atuar no julgamento):

MINISTRO CEZAR PELUSO (relator) - ressaltou, variadas vezes, que a simples declaração de constitucionalidade do art. 71, §1º, da Lei 8.666/1993, não impediria que a Justiça do Trabalho, invocando outros princípios constitucionais e levando em conta outros fatos do processo, reconhecesse a responsabilidade da Administração (p. 43); manifestou-se no sentido de que a “Administração é obrigada a tomar atitude” (referindo-se ao dever de fiscalizar), sob pena de ser configurado inadimplemento de sua parte e restar fundamentada a responsabilidade do ente público (p. 45-46); concordou com a crítica do Ministro Gilmar Mendes às responsabilizações irrestritas realizadas pela Justiça do Trabalho e disse que agora (após o julgamento do STF na mencionada ADC) teriam que ser analisados os fatos (p. 46);

MINISTRO CELSO DE MELLO - a sua única manifestação, quanto ao mérito, foi no sentido de seguir o voto do Ministro Cezar Peluso (como sua votação foi após o debate, presume-se que compactuou com as ponderações orais feitas pelo relator);

MINISTRO MARCO AURÉLIO - defendeu a constitucionalidade da norma, refutando a aplicação da responsabilidade objetiva do estado (art. 37, §6º, CF) e da solidariedade empresarial prevista na legislação trabalhista (art. 2º, §2º, CLT) ao caso; deu a entender que interpreta o art. 71, §1º, da Lei 8.666/1993 como excluindo categoricamente qualquer responsabilidade trabalhista do ente público tomador de serviços (“A entender-se que o Poder Público responde pelos encargos trabalhistas, numa responsabilidade supletiva – seria supletiva, não seria sequer solidária -, ter-se-á que assentar a mesma coisa quanto às obrigações fiscais e comerciais da empresa que terceiriza os serviços” - p. 51);

MINISTRA ELLEN GRACIE - colocou em xeque se a Justiça do Trabalho, à época, estava efetivamente examinando, em concreto, se houve culpa in eligendo ou falta de fiscalização (p. 46); infere-se que, por não ter apresentado contrariedade à pergunta formulada pelo Ministro Cezar Peluso na p. 44 (“Se o Tribunal estiver de acordo, eu proclamo o resultado”), votou pela procedência da ADC, nos termos das manifestações do relator;

MINISTRO GILMAR MENDES - criticou a responsabilização irrestrita (sem critérios) do tomador de serviços ente público (p. 46), mas se manifestou no sentido de que o órgão contratante deve fiscalizar o cumprimento das obrigações trabalhistas por parte da tomadora, sob pena de configuração da culpa in vigilando (p. 45); após diálogo com o Ministro Cezar Peluso em que este disse que agora (após o julgamento do STF na mencionada ADC) teriam que ser analisados os fatos (p. 46), o Ministro Gilmar Mendes nada disse, dando a entender que concordava com a afirmativa do relator;

MINISTRO AYRES BRITTO - votou pela parcial improcedência da ADC, reconhecendo a inconstitucionalidade da norma no que tange à terceirização de mão de obra (p. 54);

MINISTRO JOAQUIM BARBOSA - não consta no acórdão nenhuma manifestação do ministro, apesar de sua presença ter sido registrada no extrato de ata (p. 65); infere-se que, por não ter apresentado contrariedade à pergunta formulada pelo Ministro Cezar Peluso na p. 44 (“Se o Tribunal estiver de acordo, eu proclamo o resultado”), votou pela procedência da ADC, nos termos das manifestações do relator;

MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI - manifestou posição no sentido de que a responsabilidade depende da existência de culpa, o que só pode ser averiguado no caso concreto; citou exemplo de empresas prestadoras que são contratadas pelos entes públicos e, após, desaparecem, deixando um débito trabalhista enorme, contexto no qual se posicionou no sentido de que estaria claramente configurada a culpa in vigilando e in eligendo (p. 44);

MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - defendeu a constitucionalidade da norma em seu voto; alegou que incumbe à entidade pública exigir da empresa contratante o cumprimento das condições de habilitação e fiscalizá-las na execução do contrato (p. 35); sustentou que, pela necessária observância dos princípios da legalidade e da moralidade administrativa, não pode a Administração Pública anuir com o não cumprimento de deveres por entes por ela contratados; argumentou, por outro lado, que o simples descumprimento do dever de fiscalizar não impõe a responsabilidade automática da Administração Pública (p. 36); disse que a necessária observância dos princípios da legalidade e da moralidade administrativa “não importa afirmar que a pessoa da Administração Pública possa ser diretamente chamada em juízo para responder por obrigações trabalhistas devidas por empresas por ela contratadas” e complementou dizendo que entendimento “diverso resultaria em duplo prejuízo ao ente da Administração Pública, que, apesar de ter cumprido regularmente as obrigações previstas no contrato administrativo firmado, veria ameaçada sua execução e ainda teria de arcar com consequência do inadimplemento de obrigações trabalhistas pela empresa contratada” (p. 36-37)10; em resposta ao Ministro Gilmar Mendes, afirmou que a legislação brasileira exige a fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias da empresa prestadora (p. 45); concordou com a afirmação do Ministro Cezar Peluso no sentido de que a “Administração é obrigada a tomar atitude”, sob pena de ser configurado inadimplemento de sua parte (p. 45).

Por meio dos votos e manifestações, podemos extrair as seguintes teses, que não foram expressadas no dispositivo, nem tampouco constaram na ementa do acórdão:

a)Chegou-se a uma tese principal muito clara de que não é possível a responsabilização do ente público tomador de serviços em decorrência do mero inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte da prestadora;

b) Complementarmente, mesmo que de forma não tão sistematizada, foi fixada a tese (encabeçada pelos Ministros Cezar Peluso, Celso de Mello, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e, aparentemente, Cármen Lúcia) de que subsiste a possibilidade de responsabilização do tomador de serviços ente público, porém esta deve ser empreendida em concreto, levando em conta eventual ação ou omissão culposa (culpa in eligendo, in vigilando etc.) do ente público que tenha contribuído para a configuração do dano (inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte da prestadora) sofrido pelo trabalhador terceirizado (a maioria das manifestações dos Ministros deu mais ênfase à culpa in vigilando, porém entendo que o cerne da tese fixada foi no sentido de dever ser apurada alguma culpa da Administração no caso concreto, independentemente da modalidade, tendo a culpa in vigilando sido a mais citada por ser a que possui maior relação de causa e efeito com o inadimplemento das verbas trabalhistas pela prestadora).

O Tribunal Superior do Trabalho, interpretando o julgado do STF na ADC 16 aparentemente no mesmo sentido acima explicitado, acresceu o item V à Súmula 331, por meio da Resolução TST 174/2011 (BRASIL, 2011):

V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV11, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.

Compreendido o teor da decisão do STF e percebendo que o TST condensou no item V da Súmula 331 tanto a tese principal como a tese complementar fixada na ADC 16, agora ficará mais fácil prosseguir no desenvolvimento da discussão necessária para o trato do tema central do corrente artigo (ônus da prova) e para o enfrentamento/crítica de seus desdobramentos em face de tal julgado da Corte Suprema.


3. DEVER DE O ENTE PÚBLICO TOMADOR DE SERVIÇOS ADOTAR AS CAUTELAS LEGAIS PARA CONTRATAR E DEVER DE FISCALIZAR A EXECUÇÃO DO CONTRATO ADMINISTRATIVO FIRMADO: FUNDAMENTOS E CONSEQUÊNCIAS DA INOBSERVÂNCIA

Prosseguindo a trilha do tema, importante frisar que o dever de o ente público adotar medidas que garantam a escolha de empresa idônea e capaz de executar o objeto do contrato administrativo decorre da necessária observância de procedimento licitatório por parte da Administração Pública (artigos 22, XXVII, 37, XXI, e 173, §1º, III, Constituição Federal), mais precisamente das disposições legais que exigem a habilitação jurídica, a qualificação técnica, a qualificação econômico-financeira e a regularidade fiscal e trabalhista da candidata à adjudicação do objeto licitado (artigos 27 a 33 da Lei 8.666/1993).

o dever de o ente público tomador de serviços fiscalizar o cumprimento, pela empresa prestadora, das obrigações trabalhistas atinentes aos empregados desta que prestam(ram) serviço em prol da tomadora decorre:

a)Do Princípio da Legalidade12 (que, por essa vertente, impõe que o Poder Público preze pela observância da legislação trabalhista por parte da empresa contratada - conforme raciocínio apontado no voto escrito da Ministra Cármen Lúcia na ADC 16, proferido antes de sua manifestação no sentido de que seguiria o voto do Ministro Cezar Peluso;

b)Do Princípio da Moralidade Administrativa13 (a exigência de fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas decorrentes da execução do contrato administrativo é necessária para garantir que o Poder Público não esteja, por exemplo, beneficiando-se da mão de obra de trabalhadores terceirizados que estão laborando sem receber salários, que não contam com equipamentos de proteção individual, que estão sem receber o pagamento de horas extras etc.; isso porque tal contexto catastrófico certamente afrontaria qualquer noção de ética e de adequação social do meio escolhido pela Administração para atingir a sua finalidade pública);

c)Dos artigos 55, XIII14, 58, III15, e 67, caput e §1º16, da Lei 8.666/1993.

A observância de tais deveres17 garante a escolha de empresa que, em tese, respeita e respeitará a legislação trabalhista e, ao mesmo tempo, assegura efetivamente – ou, na maior medida possível, tenta assegurar - a observância das normas trabalhistas por parte da empresa prestadora. Em última instância, tais deveres servem para proteger o valor social do trabalho (artigos 1º, IV, 170, caput, e 193, Constituição Federal) e, em concreto, os trabalhadores que prestam seus serviços em benefício do ente público por intermédio da contratada.

Nesse sentido, considerando, conforme já visto, que tais deveres integram a formação/execução do contrato administrativo e que visam proteger o trabalhador terceirizado, e levando em conta que o descumprimento de tais deveres, na linha preconizada pelo STF na ADC 16, configura inadimplemento da Administração Pública, conclui-se que, por uma interpretação sistemática, a responsabilidade subsidiária do ente público decorre do próprio art. 71, §1º, da Lei. 8.666/1993.

Isso porque tal dispositivo, ao exonerar o ente público tomador de qualquer responsabilidade, parte do pressuposto de que o inadimplemento da empresa prestadora não decorreu de ou foi possibilitado por qualquer ação ou omissão da Administração Pública. Ou seja, a norma exoneradora de responsabilidade parte do pressuposto de que o ente público teria cumprido e estaria cumprindo regularmente todas as obrigações e deveres atinentes ao contrato administrativo, de modo que, quando esse cenário hipotético não fosse verdadeiro, seria a Administração Pública passível de responsabilização pelos encargos trabalhistas, desde que sua conduta guardasse nexo com a inadimplência dos haveres trabalhistas por parte da prestadora. Afinal, não faria sentido a imposição de deveres com finalidades tão nobres sem que houvesse a devida e razoável sanção jurídica, sendo essa compreensão a que mais se harmoniza com os fins sociais e as exigências do bem comum, em obediência ao art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

Dentro desse contexto, o parágrafo 1º do art. 71 da Lei das Licitações poderia ser reescrito do seguinte modo, a fim de melhor explicitar o entendimento ora propugnado (que atualmente é implícito e decorrente de toda uma harmonização do ordenamento jurídico):

A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis, desde que o ente público esteja cumprindo e tenha cumprido regularmente todas as obrigações e deveres atinentes ao contrato administrativo firmado. (acrescei o trecho grifado)

Mister ressaltar que o não cumprimento regular dos deveres de cautela na escolha e de fiscalização implica em conduta presumidamente dolosa/culposa da Administração Pública, pois tal postura implica em inadimplemento, conforme inclusive salientado pelo Ministro Cezar Peluso no julgado da ADC 16 pelo STF. E, justamente por se tratar de inadimplemento, este somente poderia ser considerado escusável na hipótese de caso fortuito ou força maior (art. 393, Código Civil, aplicável subsidiariamente aos contratos administrativos por força do art. 54 da Lei 8.666/1993). Ou seja, descumpridos os deveres de cautela na escolha e de fiscalização restam configuradas, respectivamente, as chamadas “culpa in eligendo” e “culpa in vigilando”.

Frise-se que o raciocínio desenvolvido parece se adequar com precisão aos fundamentos, externalizados ao longo dos debates, adotados pelo Ministro Cezar Peluso (voto vencedor) no julgamento ADC 16.

Elucidada a “fonte” da responsabilidade estatal, avancemos, finalmente, para o ônus probatório, principal aspecto processual do problema.

Sobre o autor
Charles da Costa Bruxel

Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Mestre em Direito na área de concentração de Constituição, Sociedade e Pensamento Jurídico pela Universidade Federal do Ceará (2021). Especialista em Direito Processual Civil pela Damásio Educacional (2018). Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Gama Filho (2013). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2016). Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Ceará (2011). Analista Judiciário - Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região (CE), exercendo atualmente a função de Assistente em Gabinete de Desembargador. Explora pesquisas principalmente o Direito Processual do Trabalho, Direito do Trabalho, Direito Processual Civil e Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRUXEL, Charles Costa. A responsabilidade subsidiária da administração pública tomadora de serviços, a ADC 16, o STF, o TST e o ônus da prova: Afinal de contas, o ônus de provar a (ir)regularidade da fiscalização e da contratação é do reclamante ou do ente público?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4933, 2 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51484. Acesso em: 22 dez. 2024.

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