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A titularidade de direitos fundamentais pelas pessoas jurídicas de direito público

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Agenda 06/10/2016 às 15:35

4. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E AS ENTIDADES PÚBLICAS

4.1 O ESTADO E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS PESSOAS JURÍDICAS

Apesar de os direitos fundamentais terem surgidos inicialmente apenas para as pessoas humanas, entende-se que as pessoas jurídicas, em alguns casos, podem ser titulares de direitos fundamentais. A Constituição da República Portuguesa, em seu art. 12º, n. 2[75], e a Constituição Alemã, em seu art. 19, inc. III,[76] dispuseram que as pessoas jurídicas podem ser titulares de direitos fundamentais, desde que compatíveis com a sua natureza (Constituição da República Portuguesa) e/ou essência (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha).

Vieira de Andrade nega o caráter de fundamentalidade aos direitos dos entes coletivos previstos na Constituição, por não se conformarem com a ideia de homem e sua dignidade nem consagrarem posição jurídica subjetiva individual. Dessa forma, com base no princípio da especialidade,[77] entende que as pessoas jurídicas não podem ser titulares de direitos fundamentais, salvo em caráter instrumental, quando for uma decorrência dos direitos fundamentais das pessoas naturais.

Conforme J. J. Gomes Canotilho,[78] a expressão “compatíveis com a sua natureza” deve ser analisada sob dois aspectos: tanto em relação à natureza dos direitos fundamentais quanto à natureza das pessoas jurídicas em causa. A natureza dos direitos fundamentais decorre da sua própria fundamentalidade material, mais especificamente uma concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, a partir de um processo histórico pautado em três bases: a) a ordem axiológica judaico-cristã e as decorrências da Doutrina Social da Igreja; b) a filosofia kantiana, no qual o homem é um fim em si mesmo; c) a influência da filosofia existencialista.

Nesse sentido, a qualificação natureza dos direitos fundamentais tem de observar os seguintes aspectos: a) é inerente aos direitos fundamentais uma relação de poder vertical; b) a finalidade geral desses direitos é proteger e preservar os direitos dos cidadãos contra o abuso do poder; c) a sua finalidade específica é a defesa e a instrumentalização.

A Constituição Federal Brasileira de 1988, por sua vez, não têm dispositivo específico como a Constituição Portuguesa e a Alemã. A Carta Magna faz referência expressa as pessoas jurídicas como titulares de direitos fundamentais em alguns casos, especificamente o art. 5º, inc. XXI, art. 8º, inc. III, art. 17, parágrafo 1º e 3º, art. 170, inc. IX e art. 207.[79]

Pontes de Miranda afirma que os direitos dispostos no art. 5º da CF/88 destinavam-se exclusivamente às pessoas físicas, individualmente, com exceção do princípio da igualdade perante a lei (isonomia) e do direito de propriedade, eis que aplicáveis às pessoas coletivas ou jurídicas. Entretanto, o direito de propriedade, neste caso, seria uma garantia institucional.

No entanto, apesar da ausência de dispositivo expresso na Constituição Federal Brasileira quanto à possibilidade de as pessoas jurídicas serem titulares de direitos fundamentais, essa proteção pode ser extraída da “cláusula aberta”, prevista no art. 5º, parágrafo 2º, da CFB/88. Conforme esta cláusula, os direitos expressos nessa Constituição, “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”. De outra forma, podemos entender que a Constituição Federal Brasileira consagra os direitos fundamentais das pessoas jurídicas, desde que compatíveis com a natureza (fundamentalidade material) dos direitos fundamentais, que deve ser observado caso a caso.

Ingo Sarlet[80] afirma que não devemos nos esquecer que a finalidade precípua da extensão da titularidade dos direitos fundamentais às pessoas jurídicas é proteger os direitos fundamentais das pessoas físicas, além de que, muitas vezes, é através da tutela das pessoas jurídicas que se realiza uma maior proteção dos indivíduos.

Nesse sentido, o constitucionalista argentino Bidart Campos entende que o reconhecimento da titularidade dos direitos fundamentais às pessoas jurídicas decorre do entendimento de que essas entidades são formadas e existem para homens que se agrupam nelas; sendo, portanto, uma decorrência destes.

Nesse sentido, devem ser garantidos às pessoas jurídicas de direito privado os direitos fundamentais compatíveis com a sua natureza, tal como o direito de propriedade, o sigilo de correspondência, a inviabilidade de domicílio, o da não interferência estatal no funcionamento da associação, o de não serem compulsoriamente dissolvidas, bem como as consequências do princípio da igualdade, nem o direito de resposta etc.[81]

Conforme parte da doutrina,[82] os direitos à honra e a imagem, com a reparação pecuniária caso haja dano, também podem ser titularizados pela pessoa jurídica. A Súmula 227 do Superior Tribunal de Justiça confirmaria a possibilidade de as pessoas jurídicas de direito privado serem titulares de direitos fundamentais, especificamente do direito fundamental à honra e à imagem. Essa súmula dispõe que “a pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.[83] No caso em questão, parte-se da diferenciação entre o dano moral subjetivo e o dano moral objetivo para chegar ao entendimento que a pessoa jurídica de direito privado pode sofrer dano moral objetivo, em razão das influências financeiras negativas que a má reputação podem lhes causar.

Não obstante a importância do julgado, é necessário diferenciar direito fundamental de direito da personalidade. Caso entenda-se essa diferenciação tal como o faz Canotilho, no sentido de que há uma interdependência ou inter-relação entre esses direitos, poderíamos falar que essa súmula confirma a possibilidade de as pessoas jurídicas de direito privado serem titulares de direitos fundamentais.  

Por outro lado, caso o entendimento seja conforme a diferenciação exposta por Jorge Miranda, não estamos a falar propriamente de direito fundamental, senão de direito da personalidade. A influência financeira que uma propaganda negativa pode causar a uma empresa privada é uma relação horizontal, de incidência puramente privatística, ou seja, de direito civil. Dessa forma, não haveria no caso em questão uma relação de poder (vertical), publicística, que é inerente para caracterizarmos um direito como fundamental.

Cabe observar, ainda, que estamos a falar das pessoas jurídicas de direito privado, seja da iniciativa privada seja da Administração Pública. Apesar de as pessoas jurídicas de direito privado da Administração Pública indireta não visarem o lucro, podemos falar em honra objetiva, segundo a Súmula 227 do STJ, em razão do princípio da igualdade e do princípio da concorrência (art. 170, inc. IV, c/c art. 173, § 1°, inc. II, CF/88). Ao concorrer com as demais pessoas do mesmo ramo, há a observância do regime jurídico de direito privado, especificamente, neste caso, o direito civil, conforme preceitua o art. 173, § 1°, inc. II, CF/88. E como afirmamos no parágrafo anterior, a súmula diz respeito a um direito de personalidade, incidência puramente civilista, privatística. 

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Entendimento diferente deve ser aplicado às empresas jurídicas de direito privado que prestam serviços públicos em regime de monopólio. Estas empresas, embora constituídas como pessoas jurídicas de direito privado, tem uma incidência maior do regime de direito público. E neste caso, por não incidir nem o princípio da igualdade nem o princípio da concorrência, haja vista o serviço ser exclusivamente prestado pela União (artigo 20, inciso X, CF/88), não há que se falar em influências financeiras negativas ocasionadas em razão da má honra objetiva.

Não obstante a discussão acima, a qual de certa forma há uma aceitação unânime na doutrina e jurisprudência, com discussões apenas pontuais, a possibilidade de as pessoas jurídicas de direito público serem titulares de direitos fundamentais é bastante polêmica.

Ao analisar a Constituição da República Portuguesa, Vital Moreira entende ser admissível às entidades coletivas públicas serem titulares de direitos fundamentais. Conforme o doutrinador português, a razão decorre (a) da não distinção da Constituição entre pessoas coletivas privadas e públicas, no art. 12º, n.º 2, o que impediria o intérprete de fazê-la; (b) a titularidade aceita é mais de acordo com a concepção plural da organização constitucional, baseada na descentralização e autonomia; e (c) dar às entidades públicas apenas um estatuto de direito público, negando-lhes, porém, a titularidade seria tirar-lhes a capacidade de gozo dos direitos fundamentais por mero ato de poder.

Canotilho,[84] de modo similar a Vital Moreira, entende que não se deve distinguir entre as pessoas jurídicas de direito privado e as de direito público, haja vista o legislador constituinte não feito essa diferenciação no art. 12º/2 da Constituição da República Portuguesa. Para o constitucionalista português, a relevância saber se o direito fundamental em questão é ou não compatível com a natureza da pessoa coletiva. E a compatibilidade com a natureza dessas pessoas deve ser observada a cada caso, devendo levar em consideração que na Constituição de 1976 as pessoas jurídicas de direito público perseguem interesses protegidos por direitos fundamentais específicos, além de poder estar em típica situação de sujeição.

Não obstante tais considerações, J. J. Gomes Canotilho[85] acaba por admitir a possibilidade de essas pessoas jurídicas de direito público serem titulares de direitos fundamentais, desde que tais direitos sejam compatíveis com a sua natureza, bem como com a natureza dos direitos fundamentais, além da a necessidade de essas pessoas estarem, na situação em concreto, em uma posição de sujeição em relação ao poder estatal (conflito vertical).

A doutrina adversa à possibilidade de as pessoas jurídicas de direito público serem titulares de direitos fundamentais se pautam em dois argumentos: (a) argumento da natureza dos direitos fundamentais: os direitos fundamentais possuem uma determinada natureza, decorrente de sua evolução histórica que resulta na sua fundamentalidade material; não sendo, portanto, possível as pessoas jurídicas de direito público gozarem da titularidade de direitos fundamentais no exercício das tarefas públicas; (b) argumento de identidade ou da confusão: é inconcebível considerar o Estado como titular e destinatários dos direitos fundamentais, ao mesmo tempo. Dessa forma, caso haja uma lesão de direitos de uma entidade pública por parte de uma outra entidade pública, estaríamos perante um conflito de competências, e não perante lesões a direitos fundamentais de pessoas jurídicas de direito público.

Quanto à natureza dos direitos fundamentais, é necessário observar que a sua fundamentalidade material está pautada na seguinte ideia: em uma relação vertical, no qual se busca proteger e preservar a esfera de uns contra o abuso de poder, com base na dignidade da pessoa humana, de forma a atuar como meio de defesa e instrumentalização.

Dessa forma Vieira de Andrade nega que as pessoas jurídicas de direito público possam ser titulares de direitos fundamentais, em razão de não consagrarem posição jurídica subjetiva individual, sem conformar-se com a ideia comum de homem e sua dignidade.

O constitucionalista argentino Bidart Campos,[86] ao entender que a titularidade de direitos fundamentais as pessoas jurídicas decorre do entendimento de que essas entidades são uma extensão do homem, afirma que esse fundamento não pode ser aplicado ao Estado para atribuir-lhe direitos fundamentais. 

Fica difícil compreender as pessoas jurídicas de direito público como titulares de direitos fundamentais, pois lhes falta a fundamentalidade material, mais especificamente, não há como afirmar que há direitos fundamentais (sob o aspecto material) compatíveis com a sua natureza, salvo casos extremamente pontuais.

Os votos dos Ministros do Tribunal Constitucional Espanhol Luis Maria Diez-Picazo, Ponce de Leon, Truyol Serra, Miguel Rodriguez Pinero e Bravo-Ferrer, no julgado n.º 64/1998,  afirmaram que “O Estado possui poderes e competências, mas de nenhum modo direitos fundamentais”. Neste mesmo julgado, o Tribunal Constitucional Espanhol afirma, no que se refere as pessoas jurídicas, que estas

só possam pleitear direitos fundamentais quando receban para si mismas âmbitos de libertad, de los que deben disfrutar sus membros, o la generalidade de los ciudadanos, como puede ocurrir singularmente respecto de los derechos reconocidos em el articulo 20, cuando los ejercitan corporaciones de derecho público.

O Tribunal Constitucional Espanhol tem negado o reconhecimento de as pessoas jurídicas de direito público serem titulares de direitos fundamentais, verbi gratia, STC 135/1985 – F.J. 3º; STC 237/2000 – F.J. 2º, ATC 205/1990 – F.J. 3º; STC 239/2001 e STC 69/2002. No entanto, tem reconhecido, de forma excepcional, verbi gratia os julgados STC 19/1983 – F.J. 2º, STC 129/2001 – F.J. 3º, STC 175/2001 – F.J. 8º, STC 173/2002 – F.J. 4º, a possibilidade de as pessoas jurídicas de direito público serem titulares de direitos fundamentais no referente à tutela judicial, das garantias processuais, consagrados no art. 24 da Constituição Espanhola,[87] especificamente a tutela jurisdicional efetiva, especificamente a ampla defesa e o acesso aos tribunais.

A doutrina contrária à titularidade de direitos fundamentais pelas pessoas jurídicas de direito público tende a admitir que estas pessoas gozam de direitos processuais fundamentais. Gilmar Mendes afirma essas pessoas gozam de direitos fundamentais do tipo processual, como o direito do juiz legal e o direito de ser ouvido. O Supremo Tribunal Federal brasileiro, por sua vez, no HC n.º 70.514/1997, reconhece a constitucionalidade de a defensoria pública usufruir do prazo em dobro para recorrer, conforme o disposto no § 5 do art. 1 da Lei n 1.060 , de 05.02.1950, acrescentado pela Lei n 7.871 , de 08.11.1989. Gilmar Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco (p. 350), ao discorrer sobre esse julgado, afirma que foi reconhecida a “igualdade de armas” na acusação pública, entre a defensoria pública e o Ministério Público.

O Poder Público (especificamente a Fazenda Pública[88] e o Ministério Público), em questões processuais, tem uma série de privilégios, que não são extensíveis às pessoas naturais ou pessoas jurídicas de direito privado, como, verbi gratia, o prazo em quádruplo para recorrer e em dobro para contestar (art. 188 do Código de Processo Civil). No HC n.º 70.514/1997, o STF reconhece uma “igualdade de armas” entre a defensoria pública e o Ministério Público. No entanto, caso o polo passivo figurasse um cidadão, não haveria igualdade de armas, mas sim uma posição de privilégio do Ministério Público em relação ao cidadão. Isso porque em razão da natureza do Estado e da sua extensa gama de atividades e, por conseguinte, ações judiciais, é necessário alguns privilégios para não haver prejuízo para sociedade.

Dessa forma, não há como compreendermos esses “privilégios” processuais do ente político como direitos fundamentais, senão como garantias institucionais, as quais objetiva tutelar determinadas instituições, devido a sua importância. Ademais, carece, nestes direitos fundamentais processuais, de fundamentalidade material necessário para a caracterização como direito fundamental.

Além do mais, não se pode confundir a noção de direitos fundamentais e de garantias fundamentais. Estas, apesar de constituírem direitos-garantias, não são nem possuem a mesma natureza que os direitos fundamentais. Conforme afirmamos acima, as garantias fundamentais têm natureza instrumental, como meios de proteção dos direitos ou contra violação de outras garantias. Ou seja, se alguns privilégios processuais têm natureza de garantias institucionais, outros, por sua vez, têm a natureza de garantias fundamentais, tal como o devido processo legal e o princípio da ampla defesa.

Há, ainda, o argumento de identidade ou confusão e de que a lesão a direitos de uma entidade pública por outra entidade pública é questão de conflito de competência, e não de lesão a direitos fundamentais.

Quanto ao argumento de identidade ou confusão, cabe primeiro observar que não há como alterar os polos da relação dos direitos fundamentais. Desde já, se exclui a possibilidade de as pessoas jurídicas de direito público serem titulares de direitos fundamentais contra o cidadão, pois não só falta a fundamentalidade material nessa relação, como também inverte toda a noção de direitos fundamentais.

Entender o Estado como titular de direitos fundamentais em face dos demais cidadãos é desvirtuar por completo a sua natureza, a sua esfera axiológica e sua fundamentalidade, de modo a instituir um verdadeiro “cavalo de Troia” na dogmática dos direitos fundamentais. Segundo afirma Paulo Otero, isso pode gerar uma forte “concorrência limitativa, condicionante ou compressiva de direitos, liberdade ou garantia de particulares”, em benefício de tarefas estatais. Isso, na prática, poderia “subverter a razão de ser dos direitos em escopo e comprometer a ordem livre e democrática de um sistema constitucional.”[89]

Por outro lado, parcela da doutrina entende não ser possível a titularidade desses entes coletivos, em razão da impossibilidade de o Estado assumir uma dupla posição, sendo tanto o sujeito ativo quanto o sujeito passivo em causa, ou seja, ser titular e destinatário dos direitos fundamentais ao mesmo tempo.

Entretanto, esta argumentação necessita ser melhor delineada. Na verdade, podemos afirmar que há uma igualdade entre os entes federativos do Estado brasileiro (princípio da igualdade das pessoas políticas)[90], cujas competências foram outorgadas de forma irredutível e impenetrável pela Constituição Federal, as quais devem ser exercidas com toda independência e autonomia (art. 18 da Constituição Federal Brasileira de 1988).

Nesse sentido, caso haja interferência de um determinado ente federativo sobre outro ente federativo, há, na verdade, um problema de usurpação ou violação de competência, a ser resolvido pelos mecanismos constitucionais. Não há que se falar, portanto, de violação de direitos fundamentais, haja vista faltar os elementos para a qualificação (fundamentalidade) material dos direitos fundamentais: a) relação de poder (vertical); b) a finalidade geral de proteção e preservação de direitos contra o abuso do poder; c) finalidade específica de proteção e instrumentalização.

O mesmo raciocínio já não pode ser aplicado por completo às pessoas jurídicas de direito público integrantes da Administração Indireta. Apesar de essas pessoas fazerem parte do Estado é perfeitamente possível elas serem titulares de direitos fundamentais, mais especificamente, em uma situação de sujeição (relação de poder) perante a administração direta e ter de proteger um determinado núcleo/esfera de direitos, ou seja, em um conflito vertical entre si e a administração direta, com o objetivo de defender os seus direitos e a sua autonomia contra intervenções indevidas na sua esfera de direitos.[91]

O Tribunal Constitucional Alemão reconheceu, no BVERFGE 21, 362 (SOZIALVERSICHERUNGSTRÄGER), Reclamação Constitucional contra decisão judicial 02/05/1967, que, apesar de o art. 19, III, da GG, dispor que as pessoas jurídicas são titulares de direitos fundamentais, não seria possível fazer a equiparação da pessoa jurídica de direito privado com a de direito público. Isso porque a própria essência dos direitos fundamentais (dignidade e liberdade) leva a uma diferenciação entre os dois grupos. Dessa forma, o art. 19, III, da GG deve ser interpretado com base na ideia de que os direitos fundamentais têm por finalidade precípua proteger a esfera de liberdade do indivíduo contra intervenções estatais, o que justifica a inclusão das pessoas jurídicas de direito privado nessa esfera de proteção “somente quando a configuração e atuação destas sejam expressão do livre desenvolvimento da pessoa natural”, mais especificamente “quando a ´abrangência´ dos indivíduos que se encontram por trás da pessoa jurídica possa ser considerada significativa e necessária [ao livre desenvolvimento da pessoa natural]. Dessa forma, em razão de os direitos fundamentais se referirem à relação entre os indivíduos contra o poder público, seria incompatível, o Estado ser, ao mesmo tempo, destinatário e titular dos direitos fundamentais. Essa raciocínio deve ser aplicado não só ao Estado enquanto ente federativo, mas também as pessoas jurídicas autônomas (de Direito Público) criadas para a realização de uma tarefa estatal específica. No entanto, apesar de não se possível falar em titularidade de direitos fundamentais pelo Ente Público na realização de suas tarefas, pode-se falar, de forma excepcional, quando “a titular do direito em questão tiver relação imediata com a área da vida protegida pelos direitos fundamentais”. Por isto, o Tribunal Constitucional Federal Alemão reconheceu a “capacidade de as universidades e as faculdades serem titulares de direitos fundamentais”, especificamente o art. 5º, inc. III, GG,[92] ou seja, a liberdade de opinião, pesquisa e da ciência. O Tribunal Constitucional Alemão ainda afirma que essa fundamentação pode ser aplicada às igrejas e outras sociedades religiosas criadas como o status de órgão de direito público.[93]

O Tribunal Constitucional Alemão, no BVERFGE 31, 314 (2. RUNDFUNKENTSCHEIDUNG), entendeu que as instituições de radiodifusão podem arguir uma violação ao seu direito fundamental à liberdade de radiodifusão. Isso porque elas, apesar de instituições do Estado, são independentes deste e, assim, não podem sofrer influência dominadora do Estado sobre elas. Caso haja intervenção do ente político sobre a sua esfera de liberdade de radiodifusão, estaríamos diante de um direito fundamental, por haver, desse modo, a fundamentalidade material.[94]

Ao analisar os julgados do Tribunal Constitucional Federal Alemão, observa-se que é afastada a possibilidade da titularidade pelas entidades públicas dos direitos fundamentais que digam respeito à própria entidade, pois, nesta circunstância, ou sob tal prisma, a entidade não age em direito próprio, mas na salvaguarda de direitos de outrem, dos seus cidadãos.

Conforme a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão sobre a da possibilidade de as pessoas jurídicas de direito público serem titulares de direitos fundamentais, podemos concluir que: a) em regra, mesmo que a pessoa jurídica de direito público pertença à administração indireta, não pode ser titular, haja vista a possibilidade de esvaziar o sentido/a fundamentalidade desses direitos, já que aquelas pessoas são destinatárias das normas de direito fundamental; b) excepcionalmente, pode-se admitir que sejam titulares em virtude da importância da autonomia dessas pessoas da Administração Indireta em face do ente político e da função específica desses direitos fundamentais, como, por exemplo, é o caso da liberdade de radiodifusão, liberdade científica etc.

Após tais considerações, retomando a discussão sobre a aplicabilidade da Súmula 227 às pessoas jurídicas de direito público,[95] o Superior Tribunal de Justiça entendeu, no REsp 1.258.389-PB (Informativo 534 – STJ),[96] que “a pessoa jurídica de direito público não tem direito à indenização por danos morais relacionados à violação da honra ou da imagem.” A base da fundamentação desse Tribunal Superior decorre da discussão sobre a possibilidade das pessoas jurídicas de direito público serem titulares de direitos fundamentais. Conforme o Tribunal, a essência dos direitos fundamentais é a esfera de proteção do cidadão contra o ataque do Estado. Caso reconhecesse a titularidade dos direitos fundamentais – ou faculdades análogas a eles – ao Estado, haveria uma subversão da essência desses direitos (argumento da natureza dos direitos fundamentais), além da “confusão ou do paradoxo consistente em ter, na mesma pessoa, idêntica pessoa jurídica de titular ativo e passivo, de credor e, a um só tempo, devedor de direitos fundamentais” (argumento da identidade ou confusão).

Em suma, em regra não é possível admitir a possibilidade de as pessoas jurídicas de direito público serem titulares de direitos fundamentais, sob pena de subverter a sua essência (argumento da natureza dos direitos fundamentais) e de ter, a um só tempo, o Estado como titular e o destinatário de direitos fundamentais (argumento da identidade ou confusão). Entretanto, em casos excepcionais, é possível admitir a possibilidade de pessoas jurídicas de direito público, integrantes da administração indireta, serem titulares de direitos fundamentais, quando se encontrarem em posição de sujeição em relação às pessoas da administração direta, em situação em que sua liberdade e autonomia estejam sendo transgredidas ou em via de sê-las.

Sobre o autor
Ricardo Duarte Jr.

Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL); Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Especialista em Direito Administrativo pela UFRN; Especialista em Direito Constitucional e Tributário pela Universidade Potiguar (UnP); Vice-Presidente do Instituto de Direito Administrativo Seabra Fagundes (IDASF), Coordenador da Pós-Graduação em Direito Administrativo no Centro Universitário Facex (UniFacex), Professor Substituto da UFRN, Advogado e sócio no Duarte & Almeida Advogados Associados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUARTE JR., Ricardo. A titularidade de direitos fundamentais pelas pessoas jurídicas de direito público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4845, 6 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51896. Acesso em: 16 nov. 2024.

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