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Os princípios na ordem econômica da Constituição Federal de 1988

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Agenda 29/09/2016 às 13:24

A Constituição de 1988 organiza a ordem econômica sob o sistema capitalista, pautado na livre iniciativa, mas também na valorização do trabalho humano, com a finalidade de assegurar a dignidade da pessoa humana.

1. INTRODUÇÃO

Toda sociedade tem suas necessidades básicas – materiais ou imateriais, individuais ou coletivas etc. – a serem satisfeitas. A economia,[2] ciência social, tem por objetivo estudar as formas dos comportamentos humanos resultantes da relação entre as necessidades dos homens e os recursos disponíveis para satisfazer aquelas necessidades (lei da escassez ou da raridade).[3] De outra forma, a economia estuda os processos de produção, distribuição e consumo de bens e serviços (ordem do ser).

Em um Estado Democrático de Direito, o Direito reconhece diversos valores (ordem do dever ser) - dentre eles direitos fundamentais individuais, sociais, coletivos e difusos -, que estão presentes no seio da sociedade e o consagram. Esses valores, positivados no ordenamento jurídico como princípios, estabelecem a base e delineia a forma do sistema jurídico e econômico, bem como cria diretrizes para a atuação do Estado na ordem econômica, de forma a estabelecer deveres jurídicos estatais na busca da concretização desses valores.

Nesse sentido, o presente trabalho tem por objetivo analisar a classificação desses princípios, bem como a sua influência sob a ordem econômica na Constituição Federal Brasileira de 1988, de forma a analisar a forma como a Carta Magna organizou a ordem econômica brasileira, qual a sua base, diretrizes e as justificações/legitimações para o Estado intervir e, consequentemente, limitar direitos dos cidadãos e da sociedade.


2. OS PRINCÍPIOS E O DIREITO

Na última metade do século passado,[4] os princípios passam a constituir uma espécie do gênero norma jurídica. Se no positivismo jurídico de Norberto Bobbio, os princípios eram entendidos como mandamento nuclear do sistema, com a função de fundamentar as normas e atuar nos espaços vazios deixados pelas regras, atualmente entende que eles são espécies de normas jurídicas, tais como as regras.

A Constituição é o centro do sistema jurídico, parâmetro de validade de todas as normas, a atuar de forma aberta à realidade, através das suas regras e princípios[5], com aplicabilidade direta e imediata.[6]

Os princípios trazem em seu bojo os valores presentes no seio da sociedade[7] com a função de garantir a esfera axiológica, a justiça do sistema jurídico, bem como a abrir o sistema jurídico à realidade, além de orientar a hermenêutica constitucional. Ou seja, os princípios espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos e seus fins. Podem ser entendidos, pois, como normas que “protegem” determinados valores consensuais no seio social ou indicam fins públicos a serem realizados por diferentes meios. Os princípios constitucionais, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico, dando-lhe unidade e harmonia, integrando suas diferentes partes e atenuando os conflitos normativos.[8]

Em sendo assim, os princípios prescrevem valores, possuindo uma maior abstração, o que possibilita a “adaptação” da Constituição às mudanças ocorridas na sociedade. Ou seja, são os princípios que garantem a renovação (mutação[9]) da Constituição a partir da hermenêutica constitucional, que deverá pautar-se em virtude do momento histórico e de cada sociedade.

A abstração dos princípios permite, a depender do caso, o seu delineamento por normas inferiores, de modo a fechar o sistema jurídico a uma mudança mais célere. Dessa forma, a atualização do sistema jurídico é possível sem que a Norma Fundamental – na qual estão inseridos os valores sociais - seja alterada. Essa abstração principiológica e os conceitos normativos indeterminados possibilitam também a abertura do ordenamento jurídico a partir de decisões judiciais no caso concreto e abstrato, pelo controle de constitucionalidade.

A abstração principiológica será deveras importante na seara da ordem econômica (mundo do ser), em que a Constituição prescreve diversos princípios a serem observados pelo legislador constituinte e infraconstitucional e os intérpretes da Constituição, de modo a possibilitar que o livre jogo político democrático atue ora intervencionista ora mais liberalizante, a depender do programa político escolhido pelo povo nas eleições e a necessidade econômica e social do Estado. A Constituição estabelecerá limites a serem observados por seus aplicadores, como os limites de um quadro, a ser desenhado por cada momento histórico e a necessidade de cada sociedade.

2.1 OBSERVAÇÕES DE DWORKIN

Para Dworkin, nos casos difíceis, os profissionais do direito não usam nem regras nem princípios, mas fazem uso de pautas (standards), que funcionam como regra, mas atuam de forma diferente, como os princípios, diretrizes (standards) ou outra espécie de pauta. Então, ele propõe-se a usar o termo “princípio” como um gênero para se referir ao conjunto: standards, princípios, diretrizes.[10]

O autor afirma que as diretrizes estabelecem objetivos a serem alcançados, normalmente de natureza econômica, social ou política. Os princípios, por sua vez, devem ser observados por consistirem em um imperativo de dimensão moral, como a justiça, honestidade etc.[11]

Conforme o critério de Dworkin, são princípios, por exemplo, o art. 1º, caput e incisos; art. 2º; art. 4º; art. 5º, caput e incisos; art. 170, caput (parcialmente) e incisos; e são diretrizes, por exemplo, o art. 3º, art. 4º, parágrafo único; art. 170, caput (parcialmente). A dignidade da pessoa humana, por sua vez, comparece, no art. 1º, inc. III, como princípio e no art. 170, caput, como diretriz.

2.2 OBSERVAÇÕES DE CANOTILHO

Canotilho, ao estudar a Constituição da República Portuguesa, classifica os seguintes princípios constitucionais:

1.Princípios jurídicos fundamentais: são “os princípios historicamente objetivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica geral e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional”.[12] Aqui estão compreendidos os princípios da publicidade dos atos jurídicos; da proibição do excesso – o que importa exigibilidade, adequação e proporcionalidade dos atos dos poderes públicos; o princípio do acesso ao Direito e aos Tribunais; o princípio da imparcialidade da Administração, dentre outros. Ex: art. 5º, XXXV e LV; art. 37, caput, CFB/88;

2.Princípios constitucionalmente conformadores: são os “princípios constitucionais que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte”.[13] São princípios constitucionais conformadores os princípios definidores da forma de Estado (onde os princípios da organização econômico-social; os princípios definidores da estrutura do estado); unitário ou federal, com descentralização local; os princípios estruturantes do regime político (princípio do Estado de Direito, princípio democrático, princípio republicano, princípio pluralista etc.; e os princípios caracterizadores da forma de governo e da organização política em geral); a separação e interdependência dos poderes, princípios eleitorais etc. Ex: art. 170 (forma do estado); art. 1º, caput (estrutura do estado); art. 1º, inc. V (regime político); art. 2º e 14 (forma do governo e organização política), CFB/88;

3.Princípios constitucionais impositivos: “subsumem-se todos os princípios que no âmbito da constituição dirigente impõem-se aos órgãos do Estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a execução de tarefas.”;[14] São princípios dinâmicos e muitas vezes designados por preceitos definidores dos fins do Estado, princípios diretivos fundamentais ou normas programáticas, definidoras de fins ou tarefas. Ex: art. 3º e art. 170, caput (assegurar a todos existência digna), CFB/88.

Esses princípios, na medida em que impõem a realização de fins a órgãos estatal, atuam da mesma forma que as diretrizes, de Dworkin, e as normas-objetivos contempladas no nível constitucional.

4.Princípios-garantia: são princípios que visam instituir direta e imediatamente uma garantia dos cidadãos. São atribuídas a eles a densidade de autêntica norma jurídica e uma força determinante, positiva e negativa, estando o legislador estreitamente vinculado a sua aplicação.[15] Ex: art. 5º, inc. III, VIII e XXXIX, CFB/88.

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2.3 OBSERVAÇÕES DE ALEXY[16]

Alexy procura definir os princípios pela sua estrutura normativa, e não pela sua fundamentalidade, como o faz as doutrinas clássicas. Conforme Alexy, os princípios são “mandamentos de otimização”: normas que “devem ser realizadas na máxima medida, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas (regras e princípios colidentes)”. Dessa forma, os princípios exprimem razões prima facie (não é definitivo), pois apresentam razões que podem ser desprezadas por razões opostas.[17]

Nesse sentido, os princípios se diferenciam das regras, que são mandados de definição, pois ou são cumpridas ou não. Elas contêm determinações (definitivas) no âmbito fático ou juridicamente possível. Assim, elas são aplicadas pelo método de subsunção, enquanto os princípios são aplicados pela ponderação.[18]


3. A ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO

3.1 A ORDEM ECONÔMICA E A CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA

 A economia é o conjunto de atividades realizadas pelos homens com o objetivo de produção, distribuição e o consumo de bens e serviços indispensáveis à sobrevivência humana e necessários à qualidade de vida. A ciência econômica é a ciência social que estuda a economia, sob o pressuposto de alocação eficiente de recursos escassos (bens finitos) para realizar necessidades humanas infinitas. Ou seja, o estudo da eficiência e equidade. Neste sentido, a ciência econômica visa analisar como a economia resolve três problemas básicos: a) O quê e quanto produzir? b) Como produzir? e c) Para quem produzir?

O exercício da atividade econômica é regulado por um conjunto de normas (regras e princípios) e instituições jurídicas, mais especificamente pela ordem jurídica econômica.[19] [20] De outra forma, podemos dizer que a ordem jurídica econômica consiste no sistema jurídico correspondente à disciplina das relações econômicas.

A Constituição Econômica consiste na norma ápice da ordem jurídica econômica. Ela é a parte da Constituição que dispõe sobre o sistema econômico, dando-lhe forma; mais especificamente o conjunto de princípios e regras constitucionais ordenadoras da economia.[21] Conforme o ensinamento de Jorge Miranda,[22] ela é “o conjunto de normas constitucionais que têm por objeto a dimensão econômica da sociedade política.”

Conforme afirma João Pacheco Amorim[23] (p. 97/98)

“com a expressão Constituição Econômica (CE) pretende-se designar os “princípios fundamentais que dão unidade à atividade econômica geral e dos quais decorrem todas as regras relativas à organização e funcionamento da atividade econômica de uma certa sociedade; constituem uns e outras, pois, um sistema jurídico-econômico dotado de elementos definidores e tendencialmente caracterizado por uma unidade e coerência internas, o mesmo é dizer, uma determinada ordem jurídico-econômica. A noção de CE é assim menos ampla de que a de ordem jurídica da economia: ela abrange apenas os princípios fundamentais ou básicos e não já os princípios ou regras deles decorrentes que constam da legislação ordinária.”

Vital Moreira,[24] por sua vez, conceitua Constituição Econômica como

 “o conjunto de preceitos e instituições jurídicas que, garantindo os elementos definidores de um determinado sistema econômico, instituem uma determinada forma de organização e funcionamento da economia; ou, de outro modo, aquelas normas ou instituições jurídicas que, dentro de um determinado sistema e forma econômicos, que garantem ou instauram, realizam uma determinada ordem econômica concreta.”

Nesse sentido, podemos entender a ordem jurídico-econômica como o mundo do dever ser responsável pela disciplina/regulação (sentido lato)[25] da ordem econômica (mundo do ser), cuja Constituição Econômica é a norma ápice, mas que não se esgota nessa.

As Constituições Econômicas podem ser divididas em Constituições Estatutárias ou orgânicas e Constituições Diretivas, dirigentes ou programáticas. As Constituições Estatutárias ou orgânicas afirmam normas econômicas que enunciam competências e processos de forma a definir o estatuto do poder como instrumento de governo e a caracterizar e identificar uma determinada forma econômica.[26] 

João Pacheco Amorim[27] afirma que as normas da Constituição Estatutária têm por objetivo proteger as características básicas de um determinado sistema econômico através de disposições: a) garantísticas, que objetiva manter o que está; e b) modificativas, no sentido de consolidar determinado sistema. Dessa forma, os princípios da Constituição Estatutária podem ser tanto princípios políticos constitucionalmente conformadores quanto princípios-garantia, conforme a classificação de Canotilho. Os princípios conformadores definem as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte, ou seja, as opções políticas basilares que inspiram a Constituição, tal como o princípio democrático e o princípio da efetividade da democracia econômica, social e cultural. Por outro lado, os princípios garantia têm por objetivo prever uma garantia, de forma a proteger o cidadão contra os abusos do poder político. João Pacheco Amorim[28] afirma que esses princípios, ao mesmo tempo, possuem um elevado grau de abstração, o que lhes fornece um vasto âmbito de aplicação; bem como um maior grau de determinabilidade, o qual possibilita a sua aplicação direta, de modo a vincular legislador e, assim, reduzir a sua discricionariedade.

Por sua vez, as Constituições Diretivas, dirigentes ou programáticas têm por objetivo traçar as diretrizes e finalidades das políticas públicas econômicas de modo a alterar a realidade social e econômica.[29] Luís Cabral Moncada[30] afirma que ela “encerra o conjunto de normas que visam reagir sobre a ordem econômica de modo a provocar certos efeitos, modificando-a e alterando-a em certo sentido estabelecido.” O destinatário das normas da CE programática é os órgãos político-legislativo, com objetivo de alterar a estrutura econômica, de modo a estabelecer uma determinada ordem econômica e concretizar certos direitos sociais através da atuação política estatal, um verdadeiro programa de realizações econômico-sociais.[31] 

No caso das CE programáticas, há princípios constitucionais impositivos (Canotilho), que estabelecem aos órgãos estatais, principalmente ao legislador, a execução de tarefas e a realização de fins.[32]

A doutrina ainda chama a atenção para a difícil compatibilidade da CE programática e a legitimidade democrática. Isso porque, segundo Luís Cabral Moncada,[33] transfere-se para o âmbito da interpretação e aplicação do direito o conjunto de objetivos da política econômica, quando deveria ficar ao livre jogo de forças político-democráticas. Isso implica em atribuir caráter jurídico matéria de pura luta política e em possibilitar a fiscalização de constitucionalidade de normas com conteúdo eminentemente político. E ainda: há a possibilidade de ser eleito Presidente com programa econômico em sentido oposto às tais diretivas.[34]

3.2 A ORDEM ECONÔMICA E A REFORMA DO ESTADO

A Constituição Federal de 1988 traça as linhas de um Estado Social[35] capitalista[36], com forte intervenção[37] estatal na ordem econômica, seja de forma direta, por absorção ou participação, seja de forma indireta, por direção ou indução.

Apesar de o constituinte ter optado por um Estado Social provedor, a década de 90 é caracterizada por uma mudança na forma do Estado atuar na economia (a “Reforma do Estado”)[38], sob a justificativa de o Estado brasileiro precisar se aproximar - assim como redefinir a sua relação – da (com) sociedade e tornar-se mais eficiente na gestão dos recursos públicos, na implementação de políticas públicas e, por conseguinte, na concretização dos direitos fundamentais.

Assim, argumentou-se que seria necessário o Estado deixar de atuar diretamente na atividade econômica (em sentido amplo), tanto no que se refere às atividades econômicas (em sentido estrito) quanto na prestação dos serviços públicos; “devolver” tal atividade à iniciativa privada[39] e passar a regulá-las. Seria imprescindível a mudança na gestão de administração, de burocrática, pautada na formalidade dos procedimentos e na qual facilitava a corrupção e a preponderância dos interesses pessoais, para uma administração gerencial e democrática, pautada nos resultados e na autonomia da gestão.

O marco da “Reforma do Estado” foi a edição da Lei n.8.031, de 12 de abril de 1990, que instituiu o Plano Nacional de Desestatização (PND), reformulado pela Lei 9.491, de 9 de setembro de 1997 (com as alterações da Medida Provisória 2.161-35, de 23 de agosto de 2001). Ao analisar este dispositivo normativo, no artigo 1º,[40] o qual dispõe sobre os objetivos fundamentais do PND, já fica clara a transição do Estado Social para o Estado Regulador[41].

À nível constitucional foram editadas diversas Emendas Constitucionais[42] que afetaram especificamente os monopólios criados pela Constituição Federal de 1988 e a Emenda n° 6/2005, suprimindo o art. 171 daquela Carta, a qual trazia a proteção e benefícios especiais à empresa brasileira de capital nacional, desfazendo o conceito de empresa nacional[43].

As modificações que vieram a alterar os monopólios criados pela Constituição Federal de 1988 são: a Emenda Constitucional n° 5/95, a qual afetou especificamente o monopólio da exploração de serviços públicos locais de distribuição de gás canalizado; a Emenda Constitucional 8/95 privatizou o setor de telecomunicação e radiodifusão; e a Emenda Constitucional 9/95, o setor petrolífero. Mais recentemente, foi promulgada a Emenda Constitucional n° 36, de 28.5.2002, que permitiu a participação de estrangeiros em até trinta por cento do capital das empresas jornalísticas e de radiodifusão.

A Emenda Constitucional 19/98 vem, ainda, no esteio da mudança, implementar o princípio da eficiência no caput do artigo 37, por fim ao regime jurídico único dos servidores públicos; flexibilizar a taxativa estabilidade funcional e impor mudanças substanciais no sistema de previdência social.

Em resumo, as reformas econômicas brasileiras envolveram 3 (três) transformações estruturais que se complementam. São elas: a) Extinção de determinadas restrições ao capital estrangeiro; b) a flexibilização dos monopólios estatais; e c) a privatização e desestatização, a qual teve como principais mecanismos a alienação, em leilão na bolsa, do controle das entidades estatais que prestavam atividade econômica (em sentido amplo) e a concessão de serviços públicos a empresas privadas[44].

Percebe-se, pelo PND, a alteração no modo de atuação no domínio econômico, ocorrida por meio de lei (infraconstitucionalmente), o que gerou diversas discussões na doutrina. Muitos doutrinadores de renome no cenário nacional manifestaram-se pela inconstitucionalidade das reformas. Para Eros Roberto Grau[45], apesar da reforma ser constitucional do ponto de vista formal, ela seria inconstitucional materialmente. A Carta Magna de 1988 teria estabelecido um modelo econômico de bem-estar, cuja alteração pelo legislador infraconstitucional não seria possível. Para o autor, os programas dos Presidentes é que deveriam se adaptar ao modelo adotado pela constituinte, e não o inverso [46].

José dos Santos Carvalho Filho entende que, apesar da reforma não estar prevista nos moldes clássicos de atuação da administração pública, ela consiste no “mero resultado de uma evolução natural no processo cometido ao Estado de gestão dos interesses coletivos.”[47]

Ora, devemos atentar que o modelo econômico adotado pelo Estado é instrumental, com a finalidade de cumprir os seus deveres e objetivos.[48] Não importa o regime assumido pelo Estado brasileiro (meio), o seu fim será sempre o interesse público, a promoção da justiça social[49] e os demais objetivos previstos na Constituição, notadamente em seu art. 3º. Os instrumentos necessários para tal fim poderão mudar, a depender do momento histórico e do livre jogo político democrático, sem importar se a atuação no domínio econômico se dará de forma direta ou indireta. Qualquer que seja o modo de atuação no domínio econômico, o Estado tem de basear-se nos fundamentos constantes no art. 1° da CF/1988[50], ter como objetivos aqueles delineados no art. 3° da CF/1988[51] e obedecer aos princípios gerais da atividade econômica[52] positivados no art. 170 da própria Constituição.

Cabe ao Estado, por meio da atuação[53] no domínio econômico, seja de forma direta seja de forma indireta, buscar concretizar os valores socioeconômicos consagrados na Carta Magna[54], tendo como base a dignidade humana, núcleo gerador de todas as demais finalidades sociais e econômicas da regulação[55].

3.3 A INTERVENÇÃO[56] DO ESTADO NA ORDEM ECONÔMICA

Entendemos a intervenção em sentido amplo como gênero, cujas espécies consistiriam na atuação do Estado na e sobre a atividade econômica[57]: em intervenção em sentido estrito, quando o Estado atuasse diretamente na atividade econômica (atuação na economia), por absorção e participação; e em regulação (atuação sobre a economia)[58], na atuação indireta sobre a atividade econômica em sentido estrito, por direção ou indução e, ainda, pelo planejamento[59].

Salienta-se que a classificação acima, realizada por Eros Grau, incide apenas sobre a atividade econômica em sentido estrito. No entanto, não podemos esquecer a atuação estatal sobre os serviços públicos, seja na prestação direta seja de forma indireta, através da regulação sobre o contrato de concessão e permissão daqueles serviços (ver artigo 175 da Constituição de 1988).

A atividade econômica (em sentido estrito) foi deixada aos particulares, cuja atuação direta do Estado está limitada à necessidade para a segurança nacional e relevante interesse coletivo (artigo 173 da Constituição Federal) e nos demais casos expressos na Constituição. Essa atuação ocorre por absorção ou participação. Apesar da atuação subsidiária do Estado (art. 170 e 173 da Constituição Federal de 1988), a Constituição, através de conceitos amplos, tal como a segurança nacional e o relevante interesse coletivo – a ser disciplinada por norma infraconstitucional – acaba por conferir ao ente político a possibilidade de atuar diretamente, sob o regime de direito privado, em determinada atividade, a depender da situação política, econômica e social do momento histórico.

Em linhas gerais, a atuação por absorção compreende o regime de monopólios: aquela atividade econômica em sentido estrito, sob o regime jurídico de direito privado, no qual o Estado entende ser essencial a sua prestação isolada, com o controle dos meios de produção e/ou troca de determinado setor. Esse regime é adotado de forma restritíssima, atualmente, pela Carta Política, apenas naquela hipótese do artigo 177.

O regime de participação compreende a atuação do Estado na atividade econômica, de forma parcial, sob o regime concorrencial com os agentes do mercado ou, ainda, quando participa do capital daquele que possui o controle patrimonial dos meios de produção e/ou troca.

A regulação econômica, por sua vez, deve ser entendida como a implementação de normas jurídicas (normas gerais e abstratas e normas de efeito concreto) com a finalidade de corrigir falhas de mercado (intra-sistêmico) – manter o equilíbrio do mercado – e alcançar determinado interesse público fora do setor econômico regulado (extra-sistêmico), por entender que a atuação privada é essencial para atingir esse interesse. A regulação consiste em toda a atividade estatal sobre a ordem econômica, tanto sobre as atividades econômicas em sentido estrito quanto nos serviços públicos, salvo a atuação direta[60].

Marçal Justen Filho afirma que a regulação é

um conjunto ordenado de políticas públicas, que busca a realização de valores econômicos e não econômicos, reputados como essenciais para determinados grupos ou para a coletividade em seu conjunto. Essas políticas envolvem a adoção de medidas de cunho legislativo e de natureza administrativa, destinadas a incentivar práticas privadas desejáveis e a reprimir tendências individuais e coletivas incompatíveis com a realização dos valores prezados. As políticas regulatórias envolvem inclusive a aplicação jurisdicional do Direito.

Floriano de Azevedo Marques Neto afirma estar envolta à ideia de regulação econômica: a) a intervenção do estado sob a esfera da livre iniciativa; b) uma ação estatal com a implementação de regras e atividades administrativas concretizando políticas normativas; c) buscar equilibrar o mercado e concretizar interesses públicos em que seja necessário a atuação sobre o processo econômico[61].

A base constitucional da atividade regulatória é encontrada no artigo 174, o qual dispõe “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”

Portanto, cabe ao Estado não apenas fiscalizar o domínio econômico, mas também traçar as diretrizes normativas e incentivar essa atividade. E quando se tratar de atividade econômica em sentido estrito, claro está que a regulação estatal deve observar os princípios da atividade econômica, constante no artigo 170 da Constituição Federal.

Ao analisar esses princípios do art. 170, vê-se a necessidade do instrumento regulatório para coaduná-los. Não fosse a presença estatal, não seria possível alcançá-los, em razão do seu caráter distributivo (objetivos de interesse geral) e da necessidade de “conduzir”/”dirigir” a iniciativa privada em prol da concretização de interesses públicos.[62]

Não se pode esquecer que a ordem econômica, conforme dispõe o caput do art. 170, apresenta como fundamento desta a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, com a finalidade de assegurar existência digna a todos, conforme os ditames da justiça social[63]. Dessa forma, entendemos que apesar da livre iniciativa ser essencial à ordem econômica, ela está limitada pelos interesses públicos descritos acima, os quais justificam a regulação estatal na busca da sua concretização. Nesse sentido, o STF afirma que

"é certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus arts. 1º, 3º e 170. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho." (ADI 1.950, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 3-11-2005, Plenário, DJ de 2-6-2006.) No mesmo sentido: ADI 3.512, julgamento em 15-2-2006, Plenário, DJ de 23-6-2006

Como já afirmamos acima, na regulação o Estado desempenha as funções de fiscalização, incentivo e planejamento. Essas funções devem ser exercidas na forma da lei (princípio da legalidade[64]).

A fiscalização corresponde em “vigiar” a atuação dos particulares, se ela está adequada aos preceitos constitucionais e infraconstitucionais, no sentido de evitar comportamentos abusivos que causem gravames aos demais players e à coletividade. Através da fiscalização o Estado busca dar eficácia às normas e medidas adotadas na regulação econômica[65] para concretizar os princípios do art. 170 da Constituição Federal.

Na fiscalização, há uma pressão estatal (direção) sobre a economia através do comando imperativo deontológico, decorrente do poder de polícia, compulsório para os agentes do mercado, inclusive para as próprias empresas estatais exploradoras do setor regulado.

No que concerne ao incentivo – denominado por alguns de “fomento” e por Eros Grau de intervenção por indução[66] -, há um estímulo, positivo ou negativo, para o desempenho de determinada atividade econômica ou para a adoção de determinada atitude[67], com o objetivo de buscar o desenvolvimento econômico e social através da iniciativa privada.

As normas que concedem o incentivo (normas de intervenção por indução) são dispositivas, sem a obrigatoriedade da sua aderência[68], com a finalidade de levar os agentes do mercado a concretizarem interesses públicos. Nelas a sanção é substituída por um expediente de “convite”, oferecidos, pela lei, a quem participar de determinada atividade de interesse geral e patrocinada, ou não, pelo Estado. Aos particulares é facultada a sua aderência.

Há indução tanto em termos positivos quanto negativos. Na primeira, há sanções premiais, benefícios àqueles que adequarem seus comportamentos ao disposto pelo ente estatal. A redução ou isenção de impostos seriam exemplos. Já em termos negativos o Estado sanciona economicamente, de forma indireta, aqueles players que atuam ou agem, de forma legal, contrariamente aos interesses públicos, v.g., onera por impostos elevado o exercício de determinado comportamento, tal como na importação de certos bens[69].

O Estado induz, ainda, o particular não em razão de normas de intervenção por indução, mas sim em decorrência da execução, por ele, de obras e serviços públicos de infra-estrutura, que tendem a otimizar o exercício da atividade econômica em sentido estrito em certos setores e regiões.

O Planejamento[70] é um processo técnico, que racionaliza e sistematiza as diretrizes[71], com o objetivo de transformar a realidade existente em direção da concretização dos objetivos previamente estabelecidos no texto constitucional. Nesse sentido, planejar o texto constitucional é uma atividade voltada para o futuro, através do estabelecimento de metas a serem atingidas pelo governo no ramo econômico[72] e social.

Para Gilberto Bercovici[73], “o planejamento coordena, racionaliza e dá unidade de fins à atuação do Estado, diferenciando-se de uma intervenção conjuntural ou casuística.” Ele ensina ainda que o planejamento deve corresponder aos valores constitucionais, assim, como a transformação do mundo do ser econômico e social[74], sempre com o objetivo de buscar a realização dos objetivos predeterminados pela Constituição (art. 3º).

De acordo com Marcos Juruena Villela Souto[75], “o planejamento deve refletir a vontade eleitoral, definindo preferências de eleitores e consumidores quanto às ações e alocação de recursos”. O plano de governo deve ser elaborado pelo Chefe do Executivo (função de direção), cujas propostas partidárias sufragadas devem ser levadas em consideração (CF, art. 14, §3°, V, c/c 84, VI e XI)[76], orientando o desenvolvimento da sociedade, observando os princípios da ordem econômica. Ademais ele é apenas facultado à iniciativa privada, enquanto obrigatória ao Estado (art. 174, CF).

A Constituição considera o planejamento como pressuposto para a organização institucional. Esse raciocínio decorre da interpretação do caput do art. 174, no qual obriga ao Estado a função do planejamento[77]. É um dever-poder estatal.

Sobre o autor
Ricardo Duarte Jr.

Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL); Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Especialista em Direito Administrativo pela UFRN; Especialista em Direito Constitucional e Tributário pela Universidade Potiguar (UnP); Vice-Presidente do Instituto de Direito Administrativo Seabra Fagundes (IDASF), Coordenador da Pós-Graduação em Direito Administrativo no Centro Universitário Facex (UniFacex), Professor Substituto da UFRN, Advogado e sócio no Duarte & Almeida Advogados Associados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUARTE JR., Ricardo. Os princípios na ordem econômica da Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4838, 29 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51897. Acesso em: 5 nov. 2024.

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